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Ano e meio após de ter sido nomeado, e depois de muita contestação e polémicas, o diretor-executivo do SNS, Fernando Araújo, bateu com a porta e apresentou esta terça-feira a demissão à ministra da Saúde — Ana Paula Martins já aceitou o pedido e fez saber que será encontrada uma solução para a Direção Executiva do SNS, que terá como missão levar a cabo “efetivas reformas”.
O Observador apurou que foi a forma como o Ministério da Saúde tratou a questão do pedido de contas à Direção Executiva (sobre o trabalho realizado até agora) que precipitou a demissão de Fernando Araújo. Fontes ouvidas pelo Observador, próximas de Fernando Araújo, dizem que o facto de o pedido de um relatório com o trabalho feito pela DE-SNS ter sido feito em simultâneo com o anúncio público da ‘prestação de contas’, por parte do Ministério da Saúde, “não caiu bem” a Fernando Araújo e demonstrou “falta de cordialidade”.
Anúncio público do pedido de prestação de contas foi “falta de cordialidade”, diz fonte próxima de Araújo
Fernando Araújo não terá gostado que o Ministério da Saúde tivesse divulgado publicamente, numa nota enviada às redações, o pedido de prestação de contas feito à sua equipa e muito menos que essa divulgação pública tivesse sido feita ao mesmo tempo que o pedido chegava à sede daquele organismo, no Porto. “O facto de a ministra ter divulgado o pedido do relatório é um sinal público de ‘presta lá contas’, que não caiu bem” a Fernando Araújo, diz uma fonte próxima do ainda diretor-executivo, que já exerceu funções governativas.
“O diretor-executivo só soube da decisão da senhora ministra de requerer um relatório sobre a evolução das mudanças ao mesmo tempo que a notícia saiu na comunicação social. Foi uma falta de cordialidade e que levou ao pedido de demissão“, diz outra fonte próxima de Fernando Araújo.
No comunicado em que anuncia a demissão, o diretor-executivo do SNS deixa, aliás, uma crítica à atuação da tutela que, segundo Fernando Araújo, não informou previamente a DE-SNS sobre o pedido do relatório com as mudanças em curso, preferindo antes enviar o pedido àquela entidade ao mesmo tempo que remetia à comunicação social uma nota em que dava conta da solicitação. “Solicitaremos que a data de produção de efeitos da demissão seja o dia seguinte a apresentarmos o relatório da atividade exigido pela Tutela, do qual tivemos conhecimento por email, na mesma altura que foi divulgado na comunicação social”, sublinhou Fernando Araújo, numa crítica implícita à tutela.
Recorde-se que, no último dia 18 de abril, o gabinete de Ana Paula Martins informou que tinha solicitado à DE-SNS, num prazo de 60 dias, um relatório sobre o “estado atual de todas as mudanças” em curso e com as principais medidas adotadas pela DE-SNS, nomeadamente no que diz respeito à reforma das Unidades Locais de Saúde e à concentração de competências na DE-SNS — duas reformas que o atual governo quer ver revertidas, pelo menos em parte.
A questão em torno do anúncio público do pedido do relatório terá sido a ‘gota de água’ que levou Fernando Araújo a tomar a decisão de sair mas não foi o único motivo. Outro dos fatores que fizeram pender o diretor-executivo para a demissão foi a questão da retirada de competências àquele organismo, uma intenção já assumida pelo governo, de modo reequilibrar a distribuição de funções entre os vários organismos na esfera do Ministério da Saúde.
Para já, pouco se sabe de concreto sobre as alterações que o Ministério da Saúde pretende introduzir na estrutura orgânica da DE-SNS. No Programa de Governo, o executivo de Luís Montenegro expressa a intenção de reformular a Direção Executiva, alterando a estrutura orgânica daquele organismo e as competências funcionais. No que diz respeito a último ponto, o objetivo do governo será o de retirar à DE-SNS algumas competências que lhe foram atribuídas e que esvaziaram em demasia os poderes de outras entidades, nomeadamente os da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), da Direção-Geral da Saúde — colocando a DE-SNS no centro do sistema.
“O governo vai retirar à DE-SNS as competências que são da Direção Geral da Saúde, da ACSS, dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, tentando simplificar, definir o que fica num lado e do outro. Vão tentar não esvaziar tanto a ACSS e equilibrar as estruturas”, diz fonte próxima de Fernando Araújo, que revela que essas alterações, contrárias ao modelo defendido por Fernando Araújo (de concentração de competências numa só estrutura, no caso a DE-SNS) terão levado o médico e gestor a optar por prevenir futuros conflitos com Ana Paula Martins, apresentando a demissão.
“Havia fricção” entre a ministra da Saúde e Fernando Araújo
“A redução de competências, com o reforço de poderes da ACSS, deve tê-lo feito pensar que iriam surgir problemas e a rutura iria certamente chegar. E deve ter pensado ‘É melhor sair pelo meu pé agora’”, revela a mesma fonte, que sublinha o “arrefecimento” progressivo da relação entre os dois desde o momento em que a Ana Paula Martins decidiu renunciar ao cargo de Presidente do Hospital de Santa Maria.
“Havia uma tensão evidente desde a demissão de Santa Maria, havia fricção, o clima ficou frio”, diz um ex-governante ouvido pelo Observador, que considera que, neste quadro de retirada de poderes à Direção Executiva (associado à reversão parcial da reforma das ULS), Fernando Araújo “fez bem em demitir-se”. “Deixou espaço ao novo governo (que vem com uma nova orientação), salvaguardou-se e deixou espaço à ministra para imprimir uma nova marca”, sublinha.
A pesar na decisão de Fernando Araújo de apresentar a demissão do cargo terá estado também a reversão parcial que o governo pretende fazer à reforma das ULS. No programa de governo, o executivo de Luís Montenegro reafirma a intenção de “avaliar o desempenho das ULS, e rever a sua planificação com particular destaque para as que integram hospitais universitários”.
A medida vai ao encontro do defendido pela ministra da Saúde que, no final de 2023, anunciou a renúncia ao cargo de Presidente do Santa Maria, por discordar da extensão das ULS aos hospitais universitários, como o caso do Santa Maria. Ana Paula Martins explicou, já em janeiro, numa entrevista ao Público, que o modelo de ULS agrava o subfinanciamento destas unidades hospitalares, devido à aplicação de um financiamento por capitação e não tendo em conta a complexidade e os custos gerados pelos doentes tratados nestes hospitais.
Já Fernando Araújo não queria ver desvirtuada a reforma das ULS, que apresentou como “a maior reforma” alguma vez feita no SNS e que, sublinhava o ainda diretor-executivo, iria “alterar de forma profunda, do ponto de vista da organização, os cuidados de saúde”.
No entanto, a atual e o ex-ministro da Saúde têm entendimentos diferentes quanto ao que motivou a demissão de Fernando Araújo. Enquanto o gabinete de Ana Paula Martins fala — num comunicado divulgado ao início da tarde desta quarta-feira — num pedido de demissão “apresentado de modo voluntário e espontâneo”, Manuel Pizarro (que foi o titular da pasta durante o último ano e meio) escreveu, na rede social Facebook, ao início da manhã, que Fernando Araújo foi forçado a apresentar a demissão. “Não vou comentar as circunstâncias que o forçam a esta atitude“, escreveu o ex-ministro, realçando que o país “vai perceber rapidamente” a falta que Fernando Araújo faz. Manuel Pizarro elogiou ainda o diretor-executivo do SNS, porque diz ter “apreço e admiração […] pela sua verticalidade e pela sua independência”.
Governo prepara-se para simplificar estrutura da DE-SNS
Ao mesmo tempo que se prepara para retirar poderes à DE-SNS o governo quer também uma estrutura “mais simplificada”, o que vai invariavelmente implicar uma redução do quadro de pessoal e da comissão de gestão da DE-SNS. “Tudo indica que haverá uma redução da equipa, para uma coisa mais enxuta e menos pesada”, diz a mesma fonte.
A criação da Secretaria de Estado da Gestão da Saúde, entregue à gestora Cristina Vaz Tomé, é um indício de que o Ministério quer também recuperar parte dos poderes transferidos pelo anterior governo para a DE-SNS, nomeadamente as funções operacionais e de decisão estratégica. “A criação dessa Secretaria de Estado é um sinal político para dizer que dão importância à gestão. O Ministério terá muito maior interferência com a estrutura administrativa”, antecipa o mesmo ex-governante ouvido pelo Observador, que prevê que uma das competências que deverão voltar à Avenida João Crisóstomo (a sede do Ministério da Saúde) é a das nomeações dos gestores das unidades de saúde, nomeadamente das ULS.