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Ao telefone, na primeira chamada, brevíssima, Fernando garante que não tem histórias para recordar. “A sério, não sou nada bom a contar isso”, é sempre a resposta que devolve.
Depois de alguma insistência, o encontro, ainda que sem promessa de entrevista, lá se agenda para a manhã de segunda-feira. Cedo. Pois é cedo que Fernando chega à Valentim de Carvalho. Mesmo já reformado, chega diariamente. No estúdio, em pé, sempre às voltas, pousa o olhar atento (e mais atento está o ouvido) numa empoeirada bobine de António Mourão, que transpõe para formato digital. Fernando Cortez tem hoje 84 anos. “Foi em fevereiro que os fiz. Venho para aqui porque não queria estar metido em casa. E venho porque me sinto útil aqui. Copiar da bobine para o digital, eu copio. Vejo se os níveis estão bons. Mas o resto não. Isso dos computadores não é para mim. Vejo-os a fazer isso aí mas já não é para mim.”
É técnico de som, um decano em Portugal e na Valentim de Carvalho, casa que é a sua mesmo antes de se tornar adulto. Chegou à editora, ainda nos idos do Chiado, com 14 anos. “Tinha uma tia que trabalhava na Valentim de Carvalho, nas limpezas. E a minha mãe pediu-lhe que me empregasse cá, pronto. Foi assim. A Valentim de Carvalho queria pagar-me os estudos. Mas eu era miúdo, o que queria era jogar à bola, ser miúdo. No começo era marçano, fazia recados. Nunca pensei que trabalharia a vida toda aqui. Nunca pensei. Cheguei a passar cá mais tempo do que em minha casa. Esta era a primeira e a outra a segunda. Lamento? Só mesmo por causa dos filhos. Eles mal me viam. Às vezes vinham para cá brincar e aí é que os via”, explica.
A mudança da Valentim de Carvalho, de Lisboa para Oeiras, representou também uma mudança para o aprendiz de caixeiro. Outro histórico técnico de som daquela editora, Hugo Ribeiro, procurava um ajudante. E viu em Fernando um. “Ele sugeriu-me ao senhor Rui [Valentim de Carvalho] e vim. Vim em 1964. Perguntei-lhe o que é que ele queria que fizesse. Respondeu-me: ‘Oh pá, oh Fernando, é p’ra ser meu ajudante, com as gravações e tal…’ E vim. A nossa relação foi sempre boa. [Pausa] Mas o Ribeiro era ele, ele e ele. Percebe? Não ensinava. Se quisesse aprender, aprendia a ver. Uma vez o senhor Rui, na régie, diz-lhe: ‘Oh Ribeiro, quando é que você põe o Fernando a gravar também?’ E o Ribeiro: ‘Estou farto de lhe dizer, ele é que não quer…’ Era mentira”, graceja.
Os dois trabalharam até se reformarem. “A mulher do patrão, o senhor Rui, uma vez admirou-se comigo e o Ribeiro: mesmo passado tanto tempo a trabalhar, ainda o tratava por você, você isto, o Ribeiro isto, aquilo. Tinha muito respeito. Ele conhecia-me desde os 14 anos — ele tinha uns 19, era pouco mais velho. Agora é mais fácil a gente tratar os outros por tu.”
Amália, a vedeta (que não sabia que era) que aceitou o “tímido” no estúdio
Ao lado de Hugo Ribeiro gravaria discos a perder de conta, artistas a perder de conta. “Quantos discos gravei? Eishhh, não sei. Eh pá, não sei. É impossível. Gravámos tudo o que na Valentim de Carvalho se gravou. Eu agarrava-me às máquinas e o Ribeiro à consolette. Ele gravava. A montagem era feita por mim.” De um artista em particular, Fernando recorda as gravações com saudade: Amália. E as histórias, que dizia não ser “nada bom a contar”, surgem, vindas quase em catadupa.
“Sabe: não havia takes. Isto era quase tudo à primeira connosco. Lembro-me que gravei sozinho com o fadista, o… o… o… [Fernando] Farinha. Gravava, o Farinha ouvia e dizia “está ótimo, está ótimo”. Era à primeira. Não havia takes. Só a Amália é que tinha muitos takes. Ela às vezes lá sentia que tinha desafinado num sítio – às vezes nem nós percebíamos que ela tinha desafinado – e parava, ‘isto não está bom’, voltava ao princípio, gravava tudo de novo”, recorda. No estúdio, durante a gravação, Amália queria estar rodeada de pouca gente. Pouca ou quase ninguém. “Ela não queria ninguém no estúdio, não. O Ribeiro lá me apresentou, explicou-lhe que eu era o assistente, e ela lá autorizou. Ela só deixava ficar na gravação aqueles em quem mais confiava. Mas quando confiava, deixava-nos à vontade. Admiro-a. Admiro-a muito. Porque era uma vedeta e não sabia que era. Era uma mulher com a quarta classe mas culta, culta, culta. Até me era difícil estar ao pé dela e dizer alguma coisa. Então, nunca fui de muita conversa. Até tenho um disco com uma dedicatória da Amália que diz: ‘Para o Fernando, o tímido’. Eu sentia-me pequenino ao pé dela”, explica.
Amália não tinha horário para gravar. “O estúdio tinha que estar sempre aberto para ela gravar. De manhã ela nunca gravou. Porque só se deitava às seis da manhã. Geralmente gravávamos de noite. Às onze, meia-noite, uma da manhã. Às vezes ela vinha gravar e dizia ‘estou a sentir-me chocha hoje’, subia às escadas em direção à régie e não gravava.” Fernando e Ribeiro chegaram a ser visitas da fadista, na casa de Lisboa. E gravaram-na lá. Mas não só ela. “Foi lá que a gente, eu e o Ribeiro, gravou o Vinicius de Moraes com a Amália, em 1968 [o álbum Amália/Vinicius só seria editado em 1970]. Só garrafas de whisky na gravação para ele foram duas…”, graceja.
O tímido Fernando perdeu-se muitas vezes nas horas em São Bento. Em silêncio, a observar. E recorda: “Às vezes ela convidava-me, a mim e ao Ribeiro, para ir lá a casa, ao pé da Assembleia, à noite. Ele era do Camões. Eu da Graça. E lá chegavam as visitas, amigas da Amália, o Raul Nery, tudo para a sala. As conversas eram meio filosóficas. Aquilo para mim era uma grande chachada, sou honesto. A empregada começava a servir café, chás. A Amália bebia bules e bules! E fumava muito, ainda mal tinha fumado um e já tinha outro. Conversa puxa conversa, olho para o relógio e é tardíssimo, duas e meia da madrugada. O patrão, o senhor Rui, já estava deitado ao comprido na carpete. ‘Oh Ribeiro, olha que às nove há gravação, vamos…’ E a Amália: ‘Oh, deixem-se estar mais um pouco’. Aquilo terminava sempre tardíssimo”, recorda.
O arrufo conjugal de Natália e copinho de whisky que tirou Ary do sério
No estúdio a bobine vai a meio já. É tempo de falar, não de música mas de poesia, razão maior para esta conversa com Fernando. É que a Valentim de Carvalho volta agora a editar, ou reeditar, com inéditos gravados então e vozes do presente (Isabel Abreu, Pedro Lamares, Rui Portulez ou Susana Menezes) a declamar, a histórica colecção “A Voz e o Texto”, que entre 1959 e 1975 desafiou David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neill, Mário Cesariny, Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, José Carlos Ary dos Santos ou Natália Correia a gravar a própria poesia. Fernando gravou-os todos. E recorda-os.
“Gravei-os todos, gravei. Ary, Natália… [longa pausa] e mais. A minha cabeça para nomes está terrível. No outro dia apareceu-me cá aquele dos Trovante, aquele, o… o… o… [João] Gil, estava a falar com ele e não me lembrei do nome. A Natália Correia era uma porreira”, atira. Então? “Trazia sempre o cigarro na boquilha, falava assim [estica o queixo], altiva. Certo dia, na gravação, ela apareceu cá com o Dórdio Guimarães [, o marido]. Ela declamava numa sala envidraçada. E enquanto ela declamava, o senhor Dórdio parecia que estava meio a dormir cá fora. A meio do poema ela para e solta um grito: ‘Eu para aqui a declamar e você adormece-me?! Vá para casa dormir, Dórdio, saia-me daqui!'”, lembra numa risada, Fernando.
E prossegue: “O Ary era porreiro também, um tipo cheio de piada. Mas às vezes era malcriado p’ra burro! [Risos] Era intempestivo, falava sempre alto.” Fernando hesita quanto a contar uma história com o poeta. Mas conta mesmo. “Então é assim: uma vez fomos até ao bar e ele pediu um whisky. E serviram-lhe o whisky num copinho pequenino. Ele olha para o copinho, voltou-se para a senhora e disse-lhe assim: ‘Oh minha senhora, e se a senhora metesse o copinho na…’ Pronto. [Risos] A senhora ficou ofendida, claro. ‘Oh Maria, não ligue, ele é mesmo assim’, expliquei eu, encavacado com a situação”.
Fernando garante que a um poeta “nada se diz” na gravação, nada se pode corrigir. E explica: “Alguns eram bons declamadores, eram. Outros não. A Natália, por exemplo, tinha uma voz colocada até quando não declamava. O Cesariny, que veio com a Graça Lobo no dia da gravação, era muito baixinho, muito magrinho, e tinha uma dicção pior, tinha. O David [Mourão Ferreira], que era da família do patrão, gravou cá muito e era muito bom. Aquele que era professor lá na América, o… o… o… Sena, não era tão bom. O que é que se diz? Aos poetas não se diz nada. Não desafinam. Não podes dizer que declamaram bem ou declamaram mal os poemas que escreveram. Eles é que têm que saber as paragens, a entoação. É curioso: aqueles que declamavam melhor eram meio ‘pavões’.”
“Tu punhas aqui um fadista a gravar e isto saía como os Bealtes”
A bobine chega ao final. “Olha, queres ir lá abaixo ao arquivo ver aquilo?”, pergunta Fernando, recordando na ida uma história daquela gravação com o fadista António Mourão, que acabara de digitalizar: “Era humilde, muito desconfiado mas humilde. E tinha as suas manias, pronto. Na gravação pergunta se pode tirar a camisa porque está cheio de calor. E tira. Passado um bocado já estava a gravar só de cuecas”.
Ao lado de Ribeiro gravaria quase todos os fadistas, os maiores fadistas. E até os maiores têm percalços quando se troca a boémia e negrura das casas de fados pela frieza dos aparelhos num estúdio de gravação. “O Marceneiro, por exemplo, tinha que gravar sem luz nenhuma, mesmo às escuras. Nós gravámos O Fabuloso Marceneiro, em 1961, às escuras. Esse até fomos gravar a casa dele, em Campo de Ourique. Era tarde, meia-noite, uma da manhã. E não é que ele se esquece das letras todas? Entrou em pânico. Ele não utilizava papelada, sabia aquilo de cabeça. Acabou por ser o Ribeiro a resolver. Ele fazia muito isto: começava uma conversa sem interesse, uma coisa que se dizia num minuto, e prolongava aquilo durante mais de uma hora se precisasse. Isso deixava os cantores à vontade. E o Marceneiro lá se lembraria…”
Ribeiro era o pronto-socorro. Sempre foi. “É normal para os fadistas decorar. E esquecer. A mãe do Carlos do Carmo, a Lucília, gravou certa coisa e não atinava com uma palavra. E o Ribeiro foi ter com ela: ‘Desculpe, Lucília, como isto é para ficar no disco, e fica para sempre, há aqui uma palavra que não está bem, não se importa de repetir?’ Ela tinha a letra ao contrário, nem olhava, estava a cantar de cabeça”, lembra.
O que a Fernando mais custava numa gravação, mais do que o esquecimento, era a desafinação. “O Hermano da Câmara desafinava p’ra burro. E o Marco Paulo…” O custo da desafinação pagava-o ele, que edita. “Nesses casos o meu trabalho é cortar, cortar, cortar. E colar. E o corte não era como é hoje. Era à mão, com tesoura e pedaços de cola. Quem cortei mais? Foram tantos. Alguns tinham problemas graves de afinação. Mas tirando os cantores, lembro-me de um pianista, clássico, um bocado esgazeado. Ele esborrachava uma nota e depois queria tirá-la. Então, quando ouvíamos a gravação, ele tinha que me dizer onde é que tinha que cortar. E dizia-me sempre: ‘Já passou…’ ‘Oh senhor, não pode ser depois de passar a nota, tem que ser antes de passar!’ E foi preciso chamar um maestro para ajudar a cortar.”
Antes da chegada ao arquivo, à porta, Fernando pára e aponta para duas máquinas gravação antigas, expostas no corredor. “Os Beatles gravaram nestas máquinas. Palavra que sim! O nosso estúdio era igual, sem tirar nem pôr, ao de Abbey Road. Vieram cá os ingleses e tudo montá-lo. Quando eles resolviam mudar o material lá em Inglaterra, nós ficávamos com ele, o velho. Até se dizia, meio a brincar meio a sério, que isto já quase que gravava sozinho. Tu punhas aqui um fadista e isto saía como os Beatles”, graceja.
Mas havia quem, mesmo a gravar “à Abbey Road”, não soava a música, quanto mais a Beatles. É Fernando quem o garante e recorda: “Sabe quem é o Damasceno? O Damasceno Covão? Não? Era ricalhaço, era dele a Robbialac. A mulher dele, a Maria Pereira, uma enfermeira, não cantava nadinha. Era horrível. Mas ele pagou e ela grava aqui um disco connosco. Era horrível.” Outros havia que, músicos, se julgavam do quarteto de Liverpool: “Algum são muito picuinhas, queriam alterar certas coisas que não precisavam de ser alteradas. O Ribeiro fazia de conta que alterava a gravação, perguntava se estava melhor, eles respondiam que sim, mas ele não tinha alterado coisa nenhuma. [Risos] Às vezes era uma tragédia para gravar. A gente tinha oito pistas e eles queriam mais, mais, mais. Quando tínhamos vinte e quatro eles já queriam mais do que vinte e quatro. Os músicos têm as suas pancadas. É normal. O [António Manuel] Ribeiro dos UHF certo dia chega cá e diz-nos que vai gravar na retrete, porque queria uma coisa com… com… com… eco. E montei o microfone na retrete, pronto.”
“Sabes, Tiago: hoje há para aí engenheiros… mas nem eu nem o Ribeiro éramos. Nunca estudámos engenharia. Mas em termos técnicos éramos, claro. Fazíamos o mesmo que os engenheiros fazem.” Mas um técnico de som precisa de saber tocar? “Não… O que é preciso é ter ouvido. Agora não tenho muito. Depois de tantos anos a fazer isto, agora já ouço pior. Mas ouvido ganha-se, atenção. O que não se ganha é intuição. O Ribeiro tinha muita intuição, por exemplo. E cantava, cantava umas coisitas napolitanas. Eu nada, zero.”
Sendo um dos melhores no que fazia, chegou a ter convites para sair da Valentim de Carvalho. Não aceitou nenhum. “Cheguei a ter, sim. Uma editora chegou a comprar uma máquina de corte igual à nossa. E convidaram-me. Primeiro convidaram-me para ir lá só num fim-de-semana, para os ensinar e tal. Perguntei ao senhor Rui, ao patrão, se podia ir e ele respondeu-me: ‘Não me podes levar a mal, oh Fernando, mas és meu empregado e não podes ir…’ É óbvio que fui lá na mesma. Era dinheiro, não é?”, lembra, em risada, entrando depois no arquivo, imenso arquivo da editora.
— Aqui estão as bobines todas de fitas.
— Eishhh…
— Muito já está formato digital, claro. Ainda falta umas três mil [bobines]. Passámos mil-e-tal. Ainda falta este armário todo…
— E sabe tudo o que tem aqui?
— Olha, Amália é isto tudo… Há aqui muitos que nem sei quem são, não.
– Com que então não tinha nada para me contar? Já estamos aqui há uma hora!
– Oh, mas isto não interessa nada! E peço desculpa por não saber mais.