Teresa Martins, de 62 anos, está na fila para votar desde as 11h00. Passou uma hora. Ao seu lado vê-se a Faculdade de Farmácia, mas tem de chegar até à Faculdade de Direito, a cerca de 600 metros dali, onde vai votar. É funcionária parlamentar, mas não tem medo de dizer aquilo que vê. Perdeu a paciência. E decidiu fazer aquilo que não é suposto: ir embora sem exercer o direito de voto antecipado por mobilidade este domingo. “Não vou votar, quero lá saber, não tenho vergonha. Há um ano que não vou a casa. A fila está quase no Hospital de Santa Maria, tenho um problema na cervical, não posso ficar aqui. Ando a proteger-me para quê? É a primeira vez que não voto na minha vida”, conta ao Observador.
Vota em Abrantes, veio de autocarro, mas não pode estar muito tempo de pé, desconfiando de que nem todos os que pediram a antecipação estejam fora do seu concelho de residência. Voltou para a fila, zangada, quase a atirar a toalha ao chão. Mas voltou.
A possibilidade de votar antecipadamente este domingo, em Lisboa e noutras cidades do país, foi uma das exceções à regra geral do confinamento, mas transformou-se numa imagem já rara nos últimos meses, com longas filas junto aos locais de voto e muito tempo de espera — num dia em que os números de novos infetados voltaram a estar acima dos 10 mil, com mais de 150 mortes e uma enorme pressão sobre os hospitais, alguns à beira da rutura, como o Santa Maria, ali tão perto.
Inscritos para votar antecipadamente na cidade universitária estavam 33.364. Há quem venha acompanhado, outros de fato de treino, cansados e de cara rosada, quem traga o cão ou os filhos mais pequenos. E freiras, que recusam falar, mas quiseram cumprir o dever cívico. Faz menos frio do que em semanas anteriores e o sol ajuda a cumprir a missão desta manhã, começada às 8h00, e que só vai terminar por volta das 19h00, quando as urnas fecharem. Já no caminho para a Alameda da Universidade, a confusão continua a instalar-se. Muita gente recebeu a mensagem para votar na Reitoria, mas não consultou o edital disponível. À chegada, existe um posto de informação, numa tenda verde improvisada. Vários panfletos foram sendo distribuídos, mas, a certa altura, por cada membro do staff, estavam dezenas de pessoas para serem distribuídas pelas quatro zonas de voto: Faculdade de Direito, de Letras, Cantina Velha e Reitoria (parte da frente e de trás).
Antes da chegada ao ponto central, as filas são pintadas de telefones ao alto, troca de informações entre desconhecidos — sempre de máscara. Mas ninguém conseguiu ajudar José Carlos, 64 anos, trabalhador na área do trading internacional, que anda à procura da mulher, que deixou o telemóvel em casa. Vieram os dois votar, porque um deles está recenseado em Serpa. Em passo apressado vai descendo a rua, olhando ora para a fila, ora para o telemóvel. A máscara caiu para a boca, não há tempo a perder. Já votou, “mais à direita”. “Não tive de esperar nada porque sou de Lisboa, mas a minha mulher não e não sei onde está”, diz. Ainda que falte uma semana de campanha, José Carlos garante que, até agora, não tem sido muito esclarecedora. Até porque havendo “um candidato eleito”, o resto, transforma-se “numa luta de galos”, que não lhe agrada. “O populismo primário não serve para esclarecer ninguém. Não educa a democracia”, finaliza. Foi discreta, sim, mas estava dada a primeira alfinetada da manhã, da direita à esquerda, de André Ventura a Ana Gomes.
Mirones ciclistas, batons vermelhos nas máscaras e uma primeira vez
No grande manto verde que, noutras alturas, costuma ser palco de eventos académicos ou musicais, desta vez estão pessoas em linha reta, de cara escondida. Há carros de patrulha nos dois lados da estrada, com uns holofotes a avisar para se manterem as regras de proteção individual. Muita gente continua sem saber onde é suposto estar. Aliás, basta ter um panfleto informativo na mão para se formar um pequeno ajuntamento. Há mirones, equipados à ciclista e com bicicleta, que captam o momento à distância. Preferem ir às urnas no próximo domingo, mas não faltaram ao dia, nem que seja para um post viral nas redes sociais. É o sinal de que nem tudo está a correr bem, ainda que a afluência continue a aumentar. Saldo positivo para a participação, saldo negativo para a pandemia.
A meio da fila, uma família, meio perdida, quer saber onde cada um vota: mãe, avó, neto e neta. Precisam de o fazer esta manhã, porque têm de ir tratar de alguns assuntos da casa no Norte. Sofia, a segunda mais nova, com 26 anos, é assistente de operações de voos. Apesar do mar de gente, nunca equacionou voltar para trás. Nem mesmo por causa do novo coronavírus. “Durante muitos anos. as mulheres não o puderam fazer, a nossa voz tem de ser ouvida. Faço-o desde os 18 anos, nunca falhei”, responde. O irmão, mais calado, assiste ao discurso da irmã. Os dois seguem para a Faculdade de Direito, a mãe e a avó para a de Letras. Não se sabe se as cruzinhas vão todas para o mesmo candidato. Sabe-se, sim, que ainda há uma viagem longa para fazer.
Um pouco mais acima, evitam-se aglomerados, sendo quase impossível fazê-lo. Pára-se para fumar um cigarro, mexer as pernas ou dar água aos cães. Ou para dar nas vistas com uma máscara com uns lábios vermelhos cosidos por cima. Há caras conhecidas, de deputados do PSD, como Duarte Marques, ou ministros, como Francisca Van Dunem. Passam despercebidos, porque a cabeça está noutro lado. Quanto a Maria Isabel, de 68 anos, prefere descansar à espera do marido. Foi professora de inglês durante 30 anos no Algarve e na capital. À sua frente tem a Reitoria, estabelecimento que ainda guarda o seu diploma, que nunca foi buscar. Ri-se da memória quando se lembra.
Conseguiu votar sem problemas, passando à frente, por ter um problema físico. Demorou meia hora. Mas está preocupada. Especialmente com quem anda revoltado com 2020: pessoas que perderam o emprego, que não têm dinheiro para comer ou que viram agora o seu negócio a fechar portas, uma vez mais. “O voto é a voz que tem de ser ouvida, mas há quem não venha. Sentem revolta”, diz, tendo pena da provável abstenção histórica. Preferiu escolher Marcelo Rebelo de Sousa, por lhe parecer o mais capaz, mas não deixa de considerar que o presidente da República “devia estar calado mais vezes”. Dos outros seis, aponta notas positivas, ainda que com algumas desilusões, como André Ventura ou Marisa Matias. Diz que lhe falta, no entanto, experiência, da esquerda à direita.
Dentro da Reitoria, o ambiente muda por completo. Pouca fila, muitos funcionários. As caixas com os boletins vão sendo desinfetadas, e o voto não é colocado pelo eleitor. De ar sereno, Manuel Braga, de 19 anos, estudante de engenharia aeroespacial da Universidade Técnica de Lisboa, não mostra nervosismo por ir votar pela primeira vez. Nem por ter vindo sozinho, sem amigos que tenham escolhido a mesma opção. Preferiu fugir do provável aglomerado de dia 24 de janeiro, não sabendo que quase não escapou a um, oito dias antes. “Sou de Lamego, achei que era mais seguro vir hoje. O pior que pode acontecer é a abstenção”, afirma. Não faz parte de juventudes partidárias, mas já sabe em quem não vai votar (André Ventura) e que quer participar neste ato, a partir de agora, numa das 77 mesas de voto disponíveis.
“Fico aqui até me fartar”, “vergonha”, “uma estupidez” e o cansaço da espera
Atrás da Reitoria, do outro lado da estrada, a Cantina Velha tem um lençol humano igual ao que quase fez Teresa Martins desistir. Faro, Madeira, Açores, Leiria e Guarda. Quem reside nesses locais é nestas filas que deve estar. Antes, há quem grite “vergonha” ou “isto é uma estupidez” e decida retomar o dever cívico de recolhimento. São poucos, mas audíveis aos mais atentos, que retomam o olhar para o telemóvel, à procura de garantir o posto de votação. Podem tentar para a semana, se assim o quiserem.
Já Manuel Nicolau, de 54 anos, engenheiro civil, aguenta a espera, mas a prazo. E com muitas críticas ao processo eleitoral. “Pensei que ia estar bem organizado, devia ter desconfiado. Não sabia que ia estar este caos. Vou ficar aqui até me fartar”, confessa alguém que, ao fim de 30 anos, regressou a Portugal, vindo do Dubai. Desiludiu-se e continua desiludido desde que voltou para Leiria, a sua terra. O que vê é o reflexo da “falta de planeamento, visão, ousadia, liderança na gestão, mas também da demagogia” no país. “Estas eleições são o exemplo disso. Aliás, são o bilhete de identidade da nossa administração pública”, ataca. Inflamado, lá deixa fugir para onde vai cair o seu voto, que seguirá para Ana Gomes. Apesar da indignação, manteve-se na fila e não deixou que outra pessoa lhe passasse à frente.
De volta à fila na Faculdade de Farmácia estão duas irmãs, Sofia, de 27 anos, e Catarina Cordeiro, de 33. Uma tem residência na Madeira, outra em Portalegre. Catarina é psiquiatra a escassos metros de onde está, no Hospital de Santa Maria. Ainda não foi chamada para trabalhar no covidário, mas pode acontecer. Confessa que, mesmo não estando em contacto direto com doentes infetados com o novo coronavírus, o ambiente é tenso. Mesmo assim, veio e já votou. Não havia outra opção. “É um cenário instável, porque nunca sabemos se vamos ser chamados, é insólito estar a votar ao lado do hospital onde trabalho”, conta. Teve dúvidas em quem escolher dos sete candidatos, até porque não queria “mudanças extremas”. Mas quer mudar. Quanto à irmã, confessa que, ainda que longa, a “fila não alterou o voto”. As duas foram para a direita nestas presidenciais. Mas o caminho deste domingo, ainda longo, é sempre em frente.