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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Foi usada arma branca? Quantos disparos foram feitos? E o carro era roubado? Cinco pontos em aberto sobre a morte de Odair Moniz

Quantos disparos foram feitos e onde atingiram Odair Moniz? O homem de 43 anos estava realmente armado? As versões em confronto e os poucos pontos em comum sobre o que se passou.

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Faltavam poucos minutos para as 6h da manhã e na Rua Principal, no bairro da Cova da Moura, a única luz era a que chegava de uns poucos candeeiros e das lanternas que um grupo de agentes da PSP apontavam para o chão. Odair Moniz estava deitado na estrada, inanimado, junto a um carro vermelho. Morreu na madrugada dessa segunda-feira, dia 21 de outubro, vítima de disparos de um agente da polícia, mas, três dias depois, alguns dos contornos do que se passou ainda estão por apurar.

Do número de disparos feitos pela polícia, alguns dos quais para o ar, à “arma branca”, que na versão da PSP Odair terá empunhado, mas que não terá sido visível nas imagens do sistema de videovigilância da Amadora, são muitas as incongruências. Três dias depois da morte do cabo-verdiano de 43 anos, que levou a noites consecutivas de protestos por várias zonas da Grande Lisboa — e à convocação de uma manifestação pela família e a uma contramanifestação por parte do Chega para o próximo sábado —, explicamos as versões em confronto e os poucos pontos em comum sobre o que se passou.

Odair Moniz estava realmente armado? E onde estava a arma?

É a questão central neste caso, mas também a que está envolta em mais dúvidas. A primeira menção de que Odair Moniz estava armado partiu da PSP, num comunicado divulgado ao final da manhã desta segunda-feira, horas depois de os agentes da polícia terem intercetado o homem na Cova da Moura e do desfecho fatal. “Na Rua Principal do referido bairro, quando os polícias procediam à abordagem do suspeito, o mesmo terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca”, lê-se no comunicado emitido pela força de segurança na sua página na internet, às 11h58 de segunda-feira.

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Esta versão, como o Observador já tinha noticiado, é muito contestada por familiares e amigos da vítima. “O Odair com uma faca? Nunca. O Odair era aquela pessoa que se te visse com uma arma na mão ia dizer-te para mandares isso fora. Nunca andaria com uma faca”, garantiu a cunhada ao jornal.

epa11676851 Members of police walk as they disperse residents of the Zambujal neighborhood protest in reaction following the death of a man shot by a police officer in Amadora, Lisbon, Portugal, 22 October 2024 (issued 23 October 2024). The riots that have been going on since 21 October following the death of a man shot by the PSP spread to various areas of Lisbon, including Carnaxide (Oeiras), Casal de Cambra (Sintra), and Damaia (Amadora).  EPA/MIGUEL A.LOPES

As forças de segurança têm estado presentes no bairro do Zambujal devido aos confrontos dos moradores

MIGUEL A.LOPES/EPA

A CNN Portugal avançou na quarta-feira que, nos depoimentos feitos no âmbito da investigação a cargo da Polícia Judiciária, os dois agentes da PSP envolvidos no caso terão dito que, afinal, não foram ameaçados diretamente pela vítima com uma arma branca em punho. Essa versão dos acontecimentos contradiz o comunicado da PSP. O mesmo canal cita os agentes a descrever um confronto físico, com o suspeito a reagir à tentativa de detenção, mas a afirmar agora que nenhuma faca foi usada e que esta estaria dentro de uma bolsa encontrada posteriormente.

“O Odair saiu do carro com as mãos para cima (...) Ele só gritava ‘não me toquem, não me toquem, não me toquem’..”
Morador da Cova da Moura

Ao final da noite de quarta-feira o Diário de Notícias avançou ainda que as imagens do sistema de videovigilância da Amadora já foram analisadas pela Polícia Judiciária. O DN refere que “terão captado o confronto físico entre Odair e o polícia, a empunhar a sua pistola com o cano para cima” e que “é possível ver no ar as mãos vazias do morador do Bairro do Zambujal”. Ainda assim, uma fonte judicial disse ao DN que haverá um momento, imediatamente antes do primeiro disparo, em que um dos braços de Odair desce, deixando de ser possível verificar se se terá tratado de um movimento em direção à bolsa que trazia à cintura e onde, alegadamente, transportava uma arma branca.

O Observador questionou a PSP sobre se, de facto, Odair Moniz tinha consigo uma arma branca, de que tipo e de que forma teria sido usada. Numa resposta escrita, a força policial disse apenas: “Relativamente à questão colocada, cumpre-nos informar que a Polícia de Segurança Pública reitera o difundido no comunicado de 21 de outubro.”

Numa resposta na noite de quarta-feira ao Observador, a PSP já tinha dito que a versão que conhece dos acontecimentos da madrugada de segunda-feira é a que está no “auto de notícia e neste o agente relatou que foi atacado com uma faca e que se defendeu”.

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Já esta quinta-feira, questionado sobre o caso, o novo Procurador-geral da República admitiu que as imagens de videovigilância da Cova da Moura serão determinantes para o apuramento da forma como Odair Moniz foi alvejado e acabou por morrer. Questionado ainda sobre se estavam cumpridos os pressupostos para que o agente da PSP tivesse recorrido à arma de fogo naquelas circunstâncias, Amadeu Guerra disse apenas que isso “tem de ser apurado no inquérito”. O PGR sublinhou ainda que “o Ministério Público é que vai ter de verificar se havia arma ou não havia arma”.

O carro foi roubado? PSP garante que não

A par da arma, era uma das questões que mais controvérsia estava a gerar. Afinal, o carro que Odair Moniz conduzia na noite em que morreu tinha sido roubado? A informação de que o veículo não lhe pertencia começou a circular sem que fosse clara a sua origem logo no dia em que o cabo-verdiano de 43 anos morreu.

Uma das primeiras referência a essa hipótese remonta a um direto da CMTV gravado no dia 21 de outubro, em que se dizia que o homem fora “surpreendido por agentes enquanto estava a tentar furtar um veículo.” A ideia começou em pouco tempo a correr também nas redes sociais. “Este ‘jovem’ foi apanhado em flagrante a roubar um carro. Tentou fugir e atacou os polícias com uma faca, acabando baleado”, podia ler-se numa de várias publicações na rede social X (antigo Twitter).

No bairro do Zambujal, vários moradores contestaram rapidamente a hipótese do carro ter sido roubado

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O primeiro comunicado emitido pela PSP sobre os acontecimentos não mencionava qualquer furto. Lia-se apenas que “o suspeito, ao visualizar uma viatura policial, encetou fuga para o interior do Bairro Alto da Cova da Moura” e que “entrou em despiste, abalroando viaturas estacionadas.”

A Polícia de Segurança Pública (PSP) já veio entretanto esclarecer que o carro não era roubado. “Eu não sei onde foram buscar essa informação”, começou por dizer o comandante do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP na primeira conferência de imprensa de responsáveis desta força de segurança desde o início de todo o caso, esta quarta-feira.

“Não sei onde foram buscar essa informação (...). A viatura não era furtada, era do próprio [condutor]."
Luís Elias, comandante do Comando Metropolitano de Lisboa

Segundo Luís Elias, isso não passa de uma história “falsa”. “A viatura não era furtada, era do próprio” sublinhou. O mesmo já tinha sido garantido nos últimos dias por vários familiares e moradores do bairro do Zambujal, como Renato, um amigo de Odair. “Ele era pacífico, uma pessoa querida aqui dentro, toda a gente o conhecia, era trabalhador e só queria cuidar dos filhos”, contou esta semana ao Observador.

Os motivos pelos quais Odair Moniz terá sido intercetado pela polícia também estão envoltos em contradições. Ao Observador, vários moradores disseram que o homem regressava de uma festa na Cova da Moura quando se cruzou com o carro de patrulha da PSP. Sobre o que se seguiu depois também há dúvidas. O jornal Público noticiou que o homem – que teria cadastro por ter sido condenado por tráfico de droga, danos contra a propriedade, furto, roubo, por condução sem carta e com álcool, mas não tinha de momento nenhum processo judicial aberto — teria fugido quando os agentes o mandaram parar por pisar um traço contínuo — uma infração considerada muito grave pelo Código da Estrada.

O comunicado não menciona essa hipótese. Lê-se apenas: “Na Avenida da República, na Amadora, o suspeito ao visualizar uma viatura policial encetou fuga para o interior do Bairro Alto da Cova da Moura, também, na Amadora. No interior do Bairro, o condutor entrou em despiste, abalroando viaturas estacionadas, tendo o veículo em fuga ficado imobilizado.” Na conferência de imprensa de quarta-feira o comandante Luís Elias, do Comando Metropolitano de Lisboa, disse apenas que os polícias intervieram após “um comportamento que [lhes] pareceu suspeito”, mas não entrou em mais detalhes.

Quantos foram os tiros e onde atingiram a vítima?

Duas perguntas que, até agora, as autoridades se têm recusado a responder. A CNN Portugal noticiou na quarta-feira que um dos agentes envolvidos no caso reconheceu nas declarações que prestou à investigação da PJ que fez três disparos naquela noite: um para o ar e dois que atingiram Odair Moniz, na zona da axila e no abdómen. Já o jornal Público falava em quatro disparos, dois para o ar e dois sobre a vítima.

Os vídeos gravados por vários moradores da Cova da Moura nessa noite também não dão respostas claras sobre este ponto. Num de vários clips a que o Observador teve acesso, vêem-se dois polícias à volta do corpo imóvel de Odair Moniz, estendido na estrada. Os moradores, preocupados, pedem que os agentes ajudem o homem e questionam a polícia sobre o local dos disparos. O diálogo, em que se distinguem particularmente duas vozes distintas, é o seguinte:

Morador 1: “Vê se ele está acordado, amigo.”

Polícia: “Ele está a respirar. Está a chamar uma ambulância [aponta com a cabeça para o colega].”

Morador 1: “Mas veja se foi na perna mesmo.”

Morador 2: “Não, parece que foi na barriga.”

Morador 1: “Eu acho que não é na perna, amigo. Eu acho que é na barriga.”

As vozes dos moradores vão-se confundido, enquanto os polícias, tensos, continuam à volta do corpo caído, um deles de Glock na mão. Ao longe começa a ouvir-se o som de sirenes e pelos rádios que carregam vão saindo mensagens indistintas. Os residentes continuam a insistir que o homem caído foi atingido na barriga e que os agentes estavam “muito próximos” no momento dos disparos, até que finalmente recebem uma resposta.

Polícia: “Não, foi da cintura para baixo.”

Morador 1: “Na virilha é preocupante.”

Polícia: “Eu sei, mas foi da cintura para baixo.”

Morador 1: “Mas foi desnecessário.”

A autópsia vai determinar exatamente onde Odair Moniz foi atingido, mas, esta quinta-feira, os familiares da vítima diziam ao Observador ainda não ter qualquer informação sobre quando esse exame estaria concluído.

Houve realmente confrontos físicos entre Odair e a polícia?

A PSP fala numa clara tentativa de agressão por parte de Odair Moniz, com recurso à tal “arma branca”. No entanto, os moradores ouvidos pelo Observador contestam esta versão. “O Odair saiu do carro com as mãos para cima. Não sei se o carro não andava mais por ter batido ou se parou porque quis”, começou por relatar um dos homens que assistiu ao que aconteceu.

“Ele só gritava ‘não me toquem, não me toquem, não me toquem’”, acrescentou o mesmo homem, explicando que “os polícias foram logo atrás dele.”

O primeiro comunicado da PSP a este respeito referia que, “na Rua Principal do referido bairro, quando os polícias procediam à abordagem do suspeito, o mesmo terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca”.

Os polícias agiram em legítima defesa?

No mesmo comunicado, a PSP é categórica a respeito deste ponto: Odair Moniz resistiu à detenção e tentou agredir os agentes com uma arma branca, “tendo um dos polícias, esgotados outros meios e esforços, recorrido à arma de fogo e atingido o suspeito”. As circunstâncias, acrescentavam, seriam apuradas em sede de inquérito criminal e disciplinar.

A morte de Odair desencadeou uma onda de protestos violentos em vários bairros periféricos de Lisboa que mobiliza a polícia há quatro noites

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Com a investigação ainda a decorrer, foi noticiado pela CNN que as conclusões preliminares da investigação da Polícia Judiciária indicam que terá havido um uso desproporcional e injustificado de força, com recurso a meios letais. A PJ ainda não se pronunciou oficialmente e até agora não respondeu às perguntas enviadas pelo Observador sobre a existência de uma arma branca e a forma como teria sido usada, informações essenciais para determinar se está em causa um ato de legítima defesa ou não.

Num lexionário do Diário da República pode ler-se que a legítima defesa “caracteriza-se por ser um recurso lícito à força destinada a afastar uma agressão contra a pessoa ou o património do agente ou de terceiro”. “Assim, pode haver legítima defesa para assegurar a tutela de direitos e o património de outrem. Por exemplo, a hipótese de alguém defender uma pessoa que está a ser agredida”, exemplifica-se.

Para que um ato em legítima defesa seja considerado lícito, “é necessário que se esteja perante uma agressão iminente e que a atuação em legítima defesa seja indispensável e proporcional”. O mesmo documento refere que, “quanto à agressão, esta tem de ser atual, no sentido de iminente ou em curso, e ilícita”.

O recurso a arma de fogo "só é permitido em caso de absoluta necessidade, como medida extrema, quando outros meios menos perigosos se mostrem ineficazes, e desde que proporcionado às circunstâncias."
Decreto-lei n.º 457/99

No decreto-lei n.º 457/99, que regulamenta a “utilização de armas de fogo e explosivos pelas forças e serviços de segurança”, esclarece-se de que forma os elementos da PSP e da GNR podem utilizar armas de fogo. No texto, pode ler-se que o recurso a arma de fogo “só é permitido em caso de absoluta necessidade, como medida extrema, quando outros meios menos perigosos se mostrem ineficazes, e desde que proporcionado às circunstâncias”. Refere-se ainda que, numa situação dessas, o agente “deve esforçar-se por reduzir ao mínimo as lesões e danos e respeitar e preservar a vida humana”.

O decreto também descreve de forma pormenorizada as várias situações em que é legítimo o uso de arma. Entre outros contextos, que não se aplicam ao caso da Cova da Moura, a lei prevê esse uso:

  1. Para repelir agressão atual e ilícita dirigida contra o próprio agente da autoridade ou contra terceiros;
  2. Para efetuar a captura ou impedir a fuga de pessoa suspeita de haver cometido crime punível com pena de prisão superior a três anos ou que faça uso ou disponha de armas de fogo, armas brancas ou engenhos ou substâncias explosivas, radioactivas ou próprias para a fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes;
  3. Como meio de alarme ou pedido de socorro, numa situação de emergência, quando outros meios não possam ser utilizados com a mesma finalidade;
  4. Quando a manutenção da ordem pública assim o exija ou os superiores do agente, com a mesma finalidade, assim o determinem.

O número 2 do mesmo artigo 3.º refere ainda que “o recurso a arma de fogo contra pessoas só é permitido desde que, cumulativamente, a respetiva finalidade não possa ser alcançada através do recurso a arma de fogo, nos termos do n.º 1 do presente artigo, e se verifique uma das circunstâncias a seguir taxativamente enumeradas”:

  1. Para repelir a agressão actual ilícita dirigida contra o agente ou terceiros, se houver perigo iminente de morte ou ofensa grave à integridade física;
  2. Para prevenir a prática de crime particularmente grave que ameace vidas humanas;
  3. Para proceder à detenção de pessoa que represente essa ameaça e que resista à autoridade ou impedir a sua fuga.

No mesmo artigo, o número 3 determina expressamente que, “sempre que não seja permitido o recurso a arma de fogo, ninguém pode ser objeto de intimidação através de tiro de arma de fogo”.

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