Reportagem em Grenoble, França
Elizabeth nunca pensou que o seu pensamento político coubesse num trava-línguas. Mas é mesmo assim que ele lhe sai, pouco antes de assistir a um comício do candidato da extrema-esquerda, Jean-Luc Mélenchon, que vai aparecer daqui a momentos sob a forma de um holograma. A médica de 55 anos respira fundo e lá diz o que pensa: “Hamon é o candidato do meu coração, Mélenchon é o candidato do meu segundo coração, Macron é o candidato da minha razão”.
O marido, Gilles, de 58 anos, está ao lado e parece ficar agradavelmente surpreendido com esta frase. “É isso mesmo!”, diz. “Nós não fazemos ideia para que lado é que nos havemos de virar”, diz o empresário do ramo das telecomunicações.
Gilles e Elizabeth não são propriamente as pessoas que mais se esperaria encontrar num comício de Mélenchon, o candidato da extrema-esquerda, cuja campanha segue o nome de “França Insubmissa” e que conta com o apoio do Partido Comunista Francês, entre outros. Ele veste um pólo de uma marca cara, ela leva ao pescoço o lenço de uma marca ainda mais cara. Nenhum dos dois leva em si autocolantes vermelhos com slogans inflamados, nem erguem bandeirolas com o logótipo da campanha de Mélenchon: um 6 estilizado, em representação da VI República Francesa, que ele quer fundar, assim os franceses lho permitam. Este não é o meio de Gilles e de Elizabeth — mas aqui estão eles, no Alpexpo, em Grenoble. Depois de saírem do trabalho, entraram no Mercedes dele e conduziram até este pavilhão com vista para os Alpes. Mas, nas palavras de Gilles, não foi o carro topo-de-gama que os trouxe até aqui. “Foi a curiosidade e sobretudo o medo”, explica.
Por definição, dizem-se “socialistas”. Em 2012 votaram em François Hollande nas duas voltas. Nessa ocasião, explicam, a escolha era simples. “Era só escolher entre um homem socialista [Hollande] e um homem de direita [Nicolas Sarkozy]”, diz Gilles, com um sorriso na cara, de quem se ri da simplicidade de outrora. “Cinco anos depois, as coisas já não se processam nesses termos.”
Atualmente, as sondagens para a primeira volta das eleições presidenciais francesas deixam mais dúvidas do que certezas. Ao todo, há quatro candidatos que têm perspetivas realistas de chegar à segunda volta. Em melhor posição está Marine Le Pen, da Frente Nacional e extrema-direita, e Emmanuel Macron, ex-ministro da Economia de Hollande e um centrista liberal. Logo a seguir, segue François Fillon, ex-primeiro-ministro e candidato d’Os Republicanos, e finalmente Jean-Luc Mélenchon. É a este último que pertence a reta final mais espetacular nesta campanha, chegando a ocupar o terceiro lugar de algumas sondagens — mas com possibilidades de, por obra e graça da margem de erro, chegar inclusive ao primeiro lugar.
E, depois, há o candidato socialista: Benoît Hamon, que venceu as primárias do centro-esquerda com um discurso ecologista e esquerdista. Com as sondagens a preverem-lhe um resultado aquém dos 10% e um quinto lugar — o que, a concretizar-se, seria ao pior resultado de sempre de um candidato do PS francês —, as hipóteses de este passar à segunda volta são inexistentes. Ao Observador, Gilles fala de Hamon com um certo sentimento de pena. “Ele foi assassinado por todos os seus colegas”, lamenta, como se de um filho seu se tratasse. “É tudo gente sem honra, sem fidelidade nem respeito pela escolha da maioria. O pior deles é Valls.”
Gilles fala de Manuel Valls, que foi primeiro-ministro até ter decidido entrar na corrida às primárias do centro-esquerda. No final, já na segunda volta, o antigo número 2 de François Hollande e um dos homens mais à direita dentro do PS, foi derrotado por Hamon. Já em plena campanha, declarou que não ia apoiar o candidato do seu partido. A sua escolha seria o centrista liberal e independente Macron. Até agora, são mais de 600 os eleitos socialistas — entre eles quatro ministros — que declararam o seu apoio a Macron em detrimento de Hamon.
“São uns traidores”, sublinha Elizabeth, de olhos arregalados. Também ela fala como se Hamon fosse seu filho e este lhe tivesse chegado a casa a chorar, depois de os meninos mais velhos lhe terem roubado o lanche. Mas, ao contrário do que uma mãe extremosa faria numa situação destas, Elizabeth parece estar pronta a esquecer e a avançar. “Agora temos de olhar para a frente”, diz.
O problema é que este casal ainda não sabe muito bem como será isso de “olhar para a frente”. Faltam cinco dias para domingo, o dia da primeira volta, e tanto um como o outro não sabe em quem votar. As dúvidas de um são as tormentas do outro. E também de vários amigos que entram neste pavilhão e passam por Gilles e Elizabeth. “Também vieram?!”, pergunta-lhes uma amiga, espantada por vê-los num evento da extrema-esquerda. O casal lá lhe sorri de forma circunstancial, ainda que atrapalhada. Quando a amiga avança pela plateia em busca de um sítio, Elizabeth diz: “Esta também é socialista. Estamos todos perdidos”.
Gilles reconhece rapidamente algumas qualidades em Mélenchon. “Ele é um bom orador, gosto das ideias dele para a economia e a ecologia, e acho que fez a melhor campanha entre todos os candidatos”, garante este empresário, que lhe elogia a ideia que, com recurso a um holograma, lhe permite discursar ao mesmo tempo a partir de Dijon para sítios como Grenoble ou Le Port, na Ilha da Reunião, ao largo de Madagáscar. Porém, Gilles não hesita em elencar-lhe o que acredita serem “posições bizarras”. Fala, por exemplo, da posição de França na União Europeia. “Acho que é extremamente perigoso ele achar que, enquanto Presidente, vai chegar a pé da Angela Merkel e dizer que as coisas são como ele as quer e pronto”, diz. “Isso é uma coisa que me assusta verdadeiramente. Tal como a sua posição com a Rússia e com a Síria”, explica. “No estrangeiro, ele é perigoso. Em termos nacionais, é mais seguro.”
Para este empresário, o inverso aplica-se a Macron. Se a face europeísta do ex-ministro da Economia o relaxa, dentro de fronteiras, o seu pendor liberal preocupa-o. “Ele é um freak da economia”, diz. “Esta história de pedir às pessoas para ‘trabalharem mais para ganharem mais’ [nota: A expressão original pertence a Nicolas Sarkozy, Emmanuel Macron disse que é possível ‘trabalhar mais para ter mais vantagens’] é assustadora”, diz Gilles. “Vamos viver só para trabalhar, é isso? E quem não fizer isso acaba na rua?”
O trauma das eleições de 2002
Há conversas que servem para clarificar os temas e pôr tudo em pratos limpos — mas esta não é uma delas. Gilles continua indeciso e Elizabeth também. “Nós temos muito medo, sabe?”, refere o marido. O medo, explica, é “da direita e da extrema-direita”. “Nunca mais quero ter de fazer o que fiz em 2002”, diz, em alusão à segunda volta das eleições presidenciais onde um homem de direita, Jacques Chirac, era a única alternativa a um Presidente de extrema-direita, Jean-Marie Le Pen.
“Eu fiquei traumatizada com essas eleições”, assegura Elizabeth.
Agora, a médica de 55 anos ainda não sabe em quem votar. “Acho que só quando chegar à cabine de voto é que vou saber ao certo em quem deposito a minha confiança”, diz. “Até lá, vai ser uma angústia muito grande para mim.”
Ainda faltam alguns minutos para Mélenchon começar a falar. Nesta altura, a parte do pavilhão Alpexpo reservada a este evento está praticamente cheia. Para o holograma poder funcionar, à volta da multidão estão pendurados cortinados pretos, com vários metros de altura, do teto até ao chão. A entrada de luz em excesso seria o suficiente para estragar o efeito.
Enquanto se espera pelo início do evento, dois écrãs gigantes transmitem vídeos da campanha “França Insubmissa”. Num deles, fala o criado do Fiscal Kombat, um jogo de computador disponível online inspirado no Mortal Kombat, que tem Mélenchon como personagem principal. O objetivo do jogo é pegar nos adversários — banqueiros e milionários franceses, Christine Lagarde e adversários políticos, como Sarkozy, Macron ou Fillon —, abaná-los fortemente para que as notas que guardam nos bolsos caiam no chão e sejam “devolvidas” ao erário público.
O comunista turco que está indeciso entre Macron e Mélenchon
Ozcelik Mustafa ri-se quando vê esta cena. Aos 52 anos, este turco já leva 29 vividos em França. Em 1988 fugiu da Turquia como exilado político. “Eu sou comunista e já há muito tempo que isso deixou de ser seguro no meu país”, disse. Nos primeiros anos, teve o estatuto de refugiado. Hoje, tem dupla cidadania e fala francês com facilidade. Trabalha num prédio. “Como todos os portugueses”, acrescenta.
Para falar das eleições francesas, Ozcelik começa antes por lembrar o referendo na Turquia, deste domingo, que ao dar uma vitória por pouco ao “Sim” garantiu ainda mais poder ao Presidente, Recep Tayyip Erdoğan. A partir de França, Ozcelik votou “Não”.
“Já que perdi na Turquia, agora vou ter de ganhar aqui em França”, diz, sorridente. O problema é que também Ozcelik não sabe em quem vai votar. Só sabe que, de uma maneira ou de outra, quer ganhar.
“Eu vou votar em quem passar à segunda volta”, diz, para depois abrir as mãos, em jeito de quem quer explicar melhor o que disse. “Evidentemente, eu não sei quem é que da esquerda vai passar à segunda volta. Mas o que se está a passar do outro lado [a direita] obriga-me a ter de pensar muito bem no que vou fazer.”
Nos últimos tempos, depois do trabalho, Ozcelik tem-se reunido com os amigos, a maior parte imigrantes como ele. Não é a política que os leva até ao café do costume, mas é ela que os ocupa grande parte do tempo. Trocam impressões, referem notícias e chegam até a fazer recortes de jornal.
Ozcelik e os amigos ainda não decidiram em quem votar. “Pode ser em Mélenchon, em Macron”, diz o comunista turco. “Neste momento, já não olho a ideologias. Desde que o candidato seja de esquerda ou de centro, eu voto nele se isso servir para impedir o fascismo”, garante. O seu objetivo parece ser claro: quer que o seu voto seja útil.
Até há pouco tempo, na esquerda francesa, a expressão “voto útil” era um termo usado para apelar ao voto nos socialistas em detrimento daqueles que estavam à esquerda destes. Foi assim, por exemplo, em 2012. Perante o crescimento de Marine Le Pen, e a hipótese de uma reeleição de Sarkozy, o socialista Hollande foi tirar votos à extrema-esquerda logo na primeira volta. Ou seja, a Mélenchon, que na altura já ensaiava um discurso anti-milionários — que Hollande aproveitou, prometendo na altura subir os impostos aos mais ricos até 75%.
Agora, Ozcelik ri-se da ironia da situação: apenas cinco anos depois, Mélenchon pode dizer que ele é o voto útil e que, à esquerda, votar no socialista Hamon é um desperdício. “É verdade, é verdade, em cinco anos houve muita coisa que mudou”, diz, ainda entre risos.
A boa disposição termina quando pensa em Marine Le Pen enquanto Presidente de França. “É altamente assustador”, explica, para depois sublinhar que esta opinião nada tem a ver com o facto de ele ter sido refugiado e depois imigrante. “Não sou só eu que devo ter medo, enquanto estrangeiro. Toda a gente, incluindo os franceses, deve ter medo de ser governado por um partido fascista”, diz. “Isso é perigoso para todos.”
A ironia é uma arma e Mélenchon aponta-a contra Macron
Os ponteiros do relógio vão passando, a pouca luz que ainda consegue penetrar os cortinados pretos vai cedendo e a plateia aguarda ansiosa. No palco, a organização do comício vai preenchendo o tempo com vídeos, alguns discursos breves e também palavras de ordem. Nada levanta tanto os ânimos como uma referência à nova lei do trabalho, conhecida como a “lei El Khomri” por ser esse o apelido de Myriam El Khomri, a ministra do trabalho. Sem mais nem menos, a sala desfaz-se em apupos contra a lei que ajudou a liberalizar o mercado laboral, facilitou os despedimentos, permitiu reduzir o pagamento das horas extraordinárias e que deu primazia às negociações entre empresas e trabalhadores em relação aos contratos coletivos de trabalho.
Passados estes momentos, a multidão volta a olhar para os seus telemóveis e para as conversas que ficaram por breves instantes interrompidas. Um burburinho constante torna a encher o Alpexpo, com a contribuição de todos os que aqui estão: jovens estudantes, alguns até menores de idade; casais novos com filhos ao colo; homens velhos com pinta de sindicalistas; algumas mulheres com véu; e muita gente com cara de “deixa-lá-ver-o-que-isto-vai-dar”.
Enfim, o burburinho dá lugar a um imenso bruáa. Mélenchon, o homem-holograma que aprendeu a ser voto útil, surge no palco. Ao lado, os écrãs gigantes demonstram como ele está a ser aplaudido simultaneamente em sete cidades. Deve ter sido para momentos como este que se criou a expressão “orwelliano”.
“Hoje tivemos uma má notícia”, diz, referindo-se aos dois homens que foram detidos em Marselha por prepararem um atentado durante a primeira volta das eleições. “Disseram-nos que dois criminosos estiveram próximos de cometer crimes contra os meus concorrentes nestas eleições. Eu quero dizer, solenemente, às três pessoas cujos nomes foram evocados, ou seja, o senhor Fillon, a senhora Le Pen e o senhor Macron, que exprimo a minha solidariedade total”, diz, na primeira ovação da tarde. “Jamais daremos o presente a estes criminosos de nos dividirmos à sua frente.”
Esta foi, perante a perspetiva de mais um atentado terrorista em solo francês, a parte conciliatória do discurso. Tudo o que se seguiu teve um tom diferente — centrando-se sobretudo em Macron.
Sobre o ex-ministro de Hollande, disse: “Ele diz-nos que quer que França seja uma start-up, mas isto não é uma empresa. É um povo!”. “Eu sou contra a uberização (…) A uberização é o regresso do século XIX!”, acrescentou. E, depois de se referir ironicamente a Macron como “o inteligente, o moderno, o despenteado”, disse de uma rajada: “O que é moderno é a Segurança Social, o que é moderno é um código do trabalho, o que é moderno é a lei para todos e o trabalho que nos permite viver!”.
Depois, pegando numa declaração polémica de 2015, em que o então ministro da Economia disse que “é preciso que os jovens franceses tenham vontade de se tornarem bilionários”, Mélenchon fez troça. “Ser bilionário não serve para a felicidade pessoal de ninguém. É apenas uma acumulação de problemas dos quais nos queremos livrar”, disse. E depois sublinhou que “ser bilionário é uma doença mental”.
Mas, explicou, uma “doença mental” que tem beneficiado alguns. “Sabiam que 30 dos 39 bilionários franceses viram a sua fortuna aumentar 21%?”, perguntou. “Esta gente custa-nos muito caro, temos de encontrar outros!”, exclamou. Pouco depois, referindo-se à fuga aos impostos dos mais ricos e aos paraísos fiscais, prometeu: “Até no inferno vai haver um agente fiscal da República Francesa!”. A ironia é uma arma e Mélenchon gosta do cheiro a pólvora.
Porém, chega uma altura em que o candidato da extrema-esquerda começa a falar de uma maneira mais direta. O objetivo é claro: quer, a todo o custo, apaziguar aqueles que, como Gilles e Elizabeth, têm receio da sua política externa. “Não acreditem quando eles vos dizem ‘ele quer sair da Europa e do euro’!”, disse. “Vá lá, sejamos um pouco sérios”, pediu, dizendo depois que ainda assim estará disposto a “discutir” com a “senhora Merkel”.
“Nunca pensei que votar fosse tão complicado”
O discurso de Mélenchon já se arrasta há mais de uma hora. Aténé, de 18 anos, saiu para apanhar ar, enquanto ouve ao fundo as palavras do candidato da “França Insubmissa”. Apesar deste tempo todo, esta estudante de Direito ainda guarda algumas dúvidas.
A sua hesitação é entre Mélenchon e Hamon. “Eu fui ao comício de Hamon em Lyon e agora vim ver Mélenchon”, explica. “Eles dizem praticamente tudo o que eu quero ouvir de um político. Têm valores de esquerda, têm bons projetos sociais, são os dois ecologistas.”
Ainda assim, há uma coisa que a preocupa em Mélenchon: a Europa. Apesar daquilo que o candidato e o seu holograma acabam de dizer, Aténé não está totalmente segura das convicções europeístas de Mélenchon. “A UE é uma coisa muito importante para mim, um dia vou querer fazer Erasmus, quero continuar na UE a minha vida toda”, assegura. “Mélenchon fala bem, fez uma campanha muito boa, mas isso preocupa-me.”
Quando pensa na Europa, pensa para si mesma que vai votar em Hamon. Quando pensa em Le Pen presidente, muda de ideias e garante que vai votar em Mélenchon. E, por vezes, embora lhe custe admitir, por vezes também acredita que a sua cruz será colocada ao lado do nome Macron.
Aos 18 anos, Aténé tem à sua frente as primeiras eleições em que pode votar. “Nunca pensei que votar fosse tão complicado.” Em casa, discute com os pais o sentido de voto dela e deles. Os pais sempre votaram em candidatos socialistas. Agora, a mãe diz que vai votar em Mélenchon e o pai está a pensar votar num “pequeno partido”. E Aténé, afinal, vai votar em quem?
“Sei lá”, diz, cansada. “Acho que vou chegar à cabine de voto, tapo os olhos e faço uma cruz ao calhas. Com sorte, pode ser que calhe nalgum candidato de esquerda.”