Em condições normais, a Assembleia Geral do Benfica desta segunda-feira para aprovação do orçamento para o próximo exercício tinha tudo para não ser calma. Seja pelos vários casos de Justiça em que o clube tem sido envolvido, seja pelo claro insucesso das modalidades de pavilhão, seja pela perda do tão desejado pentacampeonato nacional, Luís Filipe Vieira poderia ser confrontado pela fase (digamos assim) menos boa do clube. Mas, pelo contrário, até saiu por cima, quase “ratificado” por cerca de 80% dos 925 votantes que participaram na reunião que decorreu no pavilhão da Luz. E todos percebem que, nos grandes clubes, a não ser que algo de anormal aconteça, os resultados da aprovação das contas são, na essência, um barómetro para a atuação do presidente.
Mas o líder encarnado não ficou só pela contas. Já depois de um associado benfiquista ter atirado um “Oh Rui, vai buscar estes e depois vendemos, que o Soares Oliveira fica contente”, falando para o diretor do futebol Rui Costa a propósito dos três jogadores do Sporting que rescindiram esta segunda-feira contrato, Vieira soltou a frase que, ainda para mais dita no contexto em que foi, promete agitar este Verão: “Vou fazer uma pequena loucura que se calhar não devia. Mas vou. Há 25 anos brincaram connosco, mas não brincam mais”. Ou seja, e sem que nada o “obrigasse”, o presidente do Benfica colocou na mesa a hipótese de contratar Bruno Fernandes e/ou Gelson Martins e/ou William. E revelou-o em termos públicos, em frente a quase mil sócios. E para os milhões de benfiquistas (e sportinguistas) que logo depois ficaram a conhecer a sua intenção de vingança através dos media.
O presidente do Benfica puxou o filme atrás até ao Verão Quente de 1993, uma época que acabou por ficar na história do futebol português quando Paulo Sousa e Pacheco trocaram a Luz por Alvalade. Mas esse período está longe de se denominar assim apenas por causa dessas duas trocas, até porque a história de movimentações de jogadores entre os dois rivais de Lisboa começou ainda no final dos anos 80, em sentido contrário contrário. Ou, sendo mesmo rigorosos, há mais de um século. Só que aí não havia ainda o conceito de rivalidade.
Uma rivalidade de trocas que começou em 1907 e até envolveu o ciclismo
Em 1907, aproveitando uma maior solidez em termos financeiros, o Sporting conseguiu desviar um total de oito jogadores do Benfica, na altura apenas Sport Lisboa: o guarda-redes Emílio de Carvalho; o defesa Queirós dos Santos; os médios António Couto e Albano dos Santos; e os avançados Henrique Costa, Cruz Viegas, António Rosa Rodrigues e Cândido Rosa Rodrigues. O que lhes ofereceu? Campo próprio para treinar e jogar (conhecido como o Sítio das Mouras) e algo que, na altura, constituía um verdadeiro luxo para qualquer atleta que jogasse futebol – duches no final com direito a água quente.
História à parte, é preciso ir até aos anos 30 para se começar realmente a falar de um despique entre Benfica e Sporting na contratação de atletas aos adversários, neste caso não com a bola nos pés mas sim montados em bicicletas. E falamos de dois grandes nomes: José Maria Nicolau e Alfredo Trindade, glórias do ciclismo da altura.
A rivalidade passou depois para o futebol, com o Sporting mais forte no tempo dos Cinco Violinos (anos 40 e 50) e o Benfica muito por cima na era de Eusébio (anos 60 e 70). E é neste contexto que chegamos ao final da década de 80, quando os leões atravessaram uma grave crise institucional, financeira e desportiva que terminou com a queda de Jorge Gonçalves apenas um ano depois de ter assumido a presidência do clube com uma surpreendente vitória por mais de 60% naquele que foi um dos atos eleitorais com maior participação ainda nos tempos do antigo Pavilhão de Alvalade (mais de 15 mil associados).
Eleições no Sporting. As noites longas com esperas, assaltos e invasões
A saída de Fernando Mendes para a Luz e o contrato assinado com Figo
As prometidas “Unhas de leão” mal arranharam e o conjunto verde e branco terminou o Campeonato no quarto lugar, tendo ainda sido afastado na segunda ronda da Taça UEFA (Real Sociedad) e nas meias-finais da Taça de Portugal (Belenenses). Em junho de 1989 houve de novo eleições, Sousa Cintra ganhou mas havia alguns males que já estavam feitos, com ataques ao plantel dos dois grandes rivais: aproveitando um clima complicado de tesouraria, o central Morato mudou-se para o FC Porto e a jovem promessa Fernando Mendes acabou por rescindir e assinar pelo Benfica.
Os encarnados sempre se disseram inocentes de qualquer “manobra”, justificando que tinham apenas ficado com alguém que não tinha clube. Mais tarde, numa reunião da Liga de Clubes presidida então por Valentim Loureiro, o tema foi recuperado com algum humor à mistura. “Eu só estava a pescar no Algarve quando isso aconteceu”, disse Gaspar Ramos, responsável pelo futebol benfiquista à época. “Oh Gaspar Ramos, que grande pescaria que você teve nesse dia. Tão grande que até pescou um Fernando Mendes”, ironizou Pimenta Machado, líder do V. Guimarães.
Saiu Fernando Mendes para a Luz, mas podia não ter sido o único: nesse mesmo ano, Luís Figo teve um acordo assinado com o Benfica que acabou por ser desfeito por Sousa Cintra quando o extremo estava de férias no Algarve (mais tarde, os encarnados acabaram por ser indemnizados por essa situação). Contrato esse que, curiosamente, foi assinado com Gaspar Ramos na casa que Pimenta Machado, o líder do V. Guimarães, tinha na Costa da Caparica…
Seguiu-se a complicada assinatura de dois contratos, com o Parma e a Juventus, que obrigaram Figo a ficar mais uns tempos em Alvalade antes do Barcelona se entender com o Parma e conseguir resgatar um dos melhores 7 do mundo naquela altura.
Mas havia outro pormenor que melindrava o clube de Alvalade – sempre que estava interessado num jogador, ia para assinar contrato e ele já estava garantido no Benfica. Como aconteceu, por exemplo, com Hélder e Mário Jorge, quando estavam no Estoril. Ou com Pedro Roma, então guarda-redes da Académica que chegou a ser apresentado oficialmente no camarote da Direção dos leões mas que acabou por ir parar ao rival da capital.
Ou com Paulo Futre, que quando saiu no início de 1993 do Atl. Madrid tinha tudo certo para regressar ao clube da formação mas acabou por ir parar à Luz, tendo mesmo decidido o dérbi dessa temporada com o Sporting (além de ter feito um extraordinário jogo na final da Taça, com o Boavista). Pelo meio surgiram depois notícias de que a transferência dos colcheneros teria sido feita graças à renovação do contrato de cedência dos direitos televisivos dos jogos do Benfica por mais dois anos à RTP, num negócio que ainda hoje continua mal explicado.
Fernando Mendes: “Se há coisa de que me arrependo foi de ter trocado o Sporting pelo Benfica”
Pacheco escondido no Algarve e Sousa a mudar mobílias de madrugada
No tal Verão quente de 1993 os papéis inverteram-se. Foi então o Sporting a “atacar” jogadores do Benfica. Há dois casos de sucesso conhecidos, os de Paulo Sousa e Pacheco. E há um caso de insucesso conhecido, o de João Vieira Pinto. Mas houve mais dois (um mais que outro) que nunca se chegaram a conhecer dessa altura, e que não tiveram sucesso por dois motivos distintos.
O Sporting vinha de uma época frustrante com Bobby Robson, o carismático inglês contratado um ano antes ao PSV (que tinha Manuel Fernandes como adjunto e José Mourinho como tradutor/assessor), mas que não conseguira resultados por aí além. Por isso, essa temporada foi uma espécie de aposta total para quebrar o jejum de títulos. E com ambição máxima. Exemplo? O britânico tinha pedido um guarda-redes para substituir Ivkovic na baliza e apostava muito em Costinha, jovem internacional nas camadas jovens do Boavista que era visto como uma garantia de futuro. Passados uns dias, e quando estava de férias, recebeu uma chamada de Sousa Cintra: na incursão ao Bessa, os leões tinham assegurado não um mas dois guarda-redes, porque no mesmo pacote de Costinha veio também o outro guardião axadrezado, Lemajic.
Depois, no vizinho do lado, Pacheco foi o primeiro a rescindir contrato com o Benfica, alegando salários em atraso. O negócio, que ainda foi longo e envolveu na altura o advogado Vasco Rodrigues, foi tratado num sábado, numa casa longe de Alvalade e de hotéis para cumprir o máximo sigilo que tinha de existir. O extremo, internacional português, chegou a acordo, assinou contrato e seguiu de forma escondida para o Algarve (de onde é natural), longe de qualquer olhar indiscreto.
Poucos dias depois, aconteceu o mesmo com Paulo Sousa. Depois de não ter assinado pela Juventus em 1993, acabou por assinar pelos leões sem conhecimento do seu empresário, Manuel Barbosa, um dos que mais trabalhava com o Benfica. Se a saída de Pacheco causara mossa, a do médio que era tido como uma das grandes promessas da Europa e formava com Rui Costa a dupla que fazia mexer todo o jogo dos benfiquistas, foi um enorme balde de água fria. Sousa ficou “resguardado” alguns dias numa moradia fora de Lisboa que pertencia a um sócio do Sporting, após retirar todos os seus bens da casa que ocupava.
João V. Pinto levado na avioneta de Cintra e resgatado no Mercedes de Jorge de Brito
Seguiu-se João Vieira Pinto, neste caso com episódios absolutamente caricatos (e um final bem diferente).
Todas estas operações, em junho, estavam a ser feitas em segredo sem que nenhum pormenor pudesse falhar porque todos os novos contratos só poderiam ser oficiais a 1 de julho. Assim, e enquanto não chegava o dia para ir ao notário registar o acordo e os entregar na sede da Federação Portuguesa de Futebol, faziam-se noitadas secretas para negociar contratos… e não só.
Os advogados que estavam a aconselhar o Sporting garantiam que o João Vieira Pinto podia também alegar justa causa devido aos ordenados em atraso no Benfica (três meses), apesar do cheque em branco que teria sido dado pelo Benfica a João Vieira Pinto para que ficasse na Luz (as condições passavam até por um contrato vitalício). O empresário José Veiga esteve à frente do negócio, que ficou fechado ao final da noite. Como o internacional português, que tinha sido campeão mundial Sub-20, tinha também na casa do clube em que morava mobílias que lhe pertenciam e que passariam para outro apartamento que tinha entretanto comprado, as mudanças tiveram de ser feitas quase de madrugada. Só depois disso, o avançado rumou para Espanha na avioneta particular do próprio Sousa Cintra, tendo ficado a passar férias uns dias em Torremolinos, supostamente incontactável para que o Benfica não lhe desse a volta.
No entanto, houve um dado que acabou por esfriar o negócio: um parecer de um advogado que trabalhava com os leões advogava que havia um cheque passado pelos encarnados que retirava a possibilidade de rescisão por justa causa e, contas feitas, caso o Sporting perdesse esse processo, poderia ter de pagar a avultada verba de quatro milhões de contos (cerca de 30 milhões de euros), o que rebentaria com as finanças dos verde e brancos. Os cálculos eram feitos pelo valor da última transferência a que se somava uma ponderação que multiplicaria essa verba, que já era elevada (tratava-se de um jogador internacional, campeão do mundo Sub-20 etc.). Neste impasse, Jorge de Brito conseguiu resgatar o jogador, com uma ajudinha de Valentim Loureiro, padrinho do primeiro casamento de João Vieira Pinto.
João Vieira Pinto e a sua mulher na altura (com quem tinha casado aos 16 anos) tinham em Valentim Loureiro um ‘pai’, já que fora ele que sempre apoiara o crescimento do jogador no Boavista. Era dos poucos que, por isso mesmo, conseguia chegar ao seu contacto, através da família. Com essa chamada feita e o local do ‘recolhimento’ identificado, o presidente boavisteiro informou os dirigentes do Benfica. Jorge de Brito, o presidente dos encarnados na altura, meteu-se no seu Mercedes de luxo, guiado pelo motorista, e viajou dia e noite até ao local. Por um triz chegou primeiro que os dirigentes do Sporting, já que pelo meio se enganou no caminho. Errou uma saída da estrada e andou quase mais… 200 quilómetros do que era suposto. Mesmo assim, haveria de voltar com o jogador no banco de trás.
O recém-casado Rui Costa pressionado no seu descapotável
O raide podia não ter ficado por aqui. Por altura do seu casamento, Rui Costa chegou a ser sondado para rescindir com o Benfica e assinar pelo Sporting, numa operação que teria de ficar fechada nesse fim de semana antes de seguir de lua de mel. Mas aí foi o segredo que falhou. Antes do negócio se consumar, os jornais anteciparam a possível saída. No meio da confusão, o menino querido do Benfica passou pelo Estádio da Luz e viu uma turba de adeptos e jornalistas rodear o descapotável em que seguia com a mulher, Rute. Houve máquinas fotográficas partidas, ameaças no ar, antes de todos terem percebido que Rui Costa tinha dito não, por não conseguir deixar o seu clube do coração. Fê-lo só mais tarde, saindo para a Fiorentina, porque o Benfica preferiu o dinheiro italiano ao dos espanhóis do Barcelona, para onde o ‘maestro’ realmente gostaria de se ter transferido.
Já Isaías, médio ofensivo brasileiro conhecido pelos golos de fora da área (e pelos muitos remates muito, mas muito, por cima da trave), mostrou-se disponível para seguir Paulo Sousa e Pacheco. Até admitiu rever por baixo as condições para assinar pelos leões numa altura em que tinha também ordenados em atraso. Acabou por ser o Sporting a abortar o negócio, por considerar que se tratava de um jogador com muita qualidade mas que atuava numa zona onde o plantel leonino já estava composto.
Uns anos depois, Santana Lopes, já presidente do Sporting, acabou por ter de pagar uma compensação ao Benfica nos tribunais. Mas inferior, por exemplo, ao que os leões tinham recebido da venda de Paulo Sousa para a Juventus.
Mais tarde, houve algumas “respostas” dos encarnados, que envolveram Peixe, Amaral e Marinho, por via direta ou indireta. Mas nada que se comparasse à agitação daquele Verão.
Jorge Jesus em 2015 e a vingança agora prometida
Na era Bruno de Carvalho, este “despique” direto voltou com uma grande bandeira: Jorge Jesus, técnico que se sagrou três vezes campeão no Benfica em seis temporadas (com um total de dez títulos), mas que acabou por trocar a Luz por Alvalade, naquela que foi a grande bomba do Verão de 2015.
Mas houve mais porque, na ótica de Luís Filipe Vieira, e polémicas de discursos à parte, a contratação de Nelson Évora para o atletismo, a sondagem com uma proposta concreta feita à judoca Telma Monteiro e o possível regresso de Ricardinho ao futsal nacional de verde e branco (a que se juntam outras movimentações com menor “visibilidade” a nível de modalidades) foram interpretados como ataques com o objetivo de enfraquecer os encarnados, algo que nem a mudança de Carrillo para a Luz conseguiu atenuar, tendo em conta o rendimento desportivo do jogador (ou a falta dele).
Sporting-Benfica. Só eu sei porque almoço em casa (e não num hotel)
Agora, com os leões mergulhados numa profunda crise institucional e desportiva (pelo menos ao nível do futebol), o Benfica parece tentar inverter de novo os papéis. De acordo com informações recolhidas pelo Observador, nenhum dos jogadores que está na Seleção Nacional e que rescindiu com o Sporting tem qualquer pré-acordo para se mudar para o rival. No entanto, o clube verde e branco já anunciou uma queixa na FIFA contra os encarnados a propósito de uma eventual abordagem a Rui Patrício. Apesar dos jogadores terem colocado como prioridade uma mudança para o estrangeiro, Luís Filipe Vieira já terá mesmo indagado das reais possibilidades de contratar Bruno Fernandes e Gelson Martins. E a forma como agora prometeu vingança ao que aconteceu em 1993, faz antever um novo verão muito quente.