Durante 48 horas, Benjamim Ribeiro desceu ao inferno. Não se lembra de quase nada além do barulho ensurdecedor do capacete de ventilação e da sensação de claustrofobia. Tinha entrado num turpor inconsciente, só interrompido por breves instantes pelos gemidos de sofrimento dos companheiros de quarto nos cuidados intensivos do Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga, quase sempre de noite. Tinha Covid-19 grave, nunca tomou a vacina e esteve à beira da morte.
“Desci ao inferno e não dei pelo tempo passar”, assumiu o ovarense de 61 anos com a voz ainda rouca: “Senti que podia ter embarcado, houve momentos em que pensei que não valia a pena andar mais cá. Perdi completamente a noção de tempo, mas tive períodos de consciência em que sentia que queria desistir”. Só não o fez pelos filhos — cinco, entre os 13 e os 39 anos — e pela “dedicação, zelo, compreensão e tolerância” dos profissionais de saúde.
Bejamim sente vergonha por não ter levado a vacina: é oficial da Polícia de Segurança Pública, sabe que tem uma profissão de risco e sempre assumiu cargos de responsabilidade. Sabia que era um alvo fácil para contrair o vírus, mas o estilo de vida saudável que seguia, com uma alimentação equilibrada e sem vícios como o tabaco, levavam-no a crer que nunca ficaria gravemente doente. “Devia ter sido menos tonto”, desabafa agora.
Quando foi chamado para apanhar a primeira dose, Benjamim aceitou-a. Mas ficou “um bocado rezingão” quando se apercebeu que tinha havido uma discrepância entre o dia que lhe havia sido comunicado e aquele que estava introduzido no sistema. Não marcou novas datas por casmurrice e o tempo passou: “Como uma inconsciência, ia-me convencendo que um dia destes também me tocaria a mim e eu acabava por ter alguma imunidade”.
Em fins de novembro do ano passado, já o país começava a escalar a quinta vaga, Benjamim considerou que o número de novos casos de infeção pelo coronavírus tinha voltado a tornar-se assustadores. Pensou nessa altura que aquele era o momento para tomar finalmente a primeira dose, protegendo-se a si e aos outros. Mas já não foi a tempo: infetou-se, não sabe sequer como, perdeu o apetite e depois também o paladar e o olfato.
Durante algum tempo, mesmo sem a vacina, parecia não haver grandes consequências: Benjamim pensava que se curava e depois então ia finalmente tratar da vacina. Mas ao fim de uma semana, o quadro clínico do oficial da PSP degradou-se: desenvolveu uma pneumonia e das urgências de Santa Maria da Feira, para onde foi levado pelo INEM após o alerta da filha mais velha, entrou diretamente nos cuidados intensivos. Benjamim era “um amante da vida”: “Só que portei-me mal”, assume.
Agora dá os primeiros passos na recuperação: conduziu esta segunda-feira pela primeira vez desde que saiu do hospital, passadas duas semanas, e contava ir passear ao Porto: “Já que Deus me deu uma oportunidade, vou fazer tudo para a merecer”. Sabe que, se tivesse aceitado a vacina, talvez nunca tivesse sofrido o que sofreu nos nove dias em que esteve internado: “Fiz a asneira, paguei por ela e ainda estou a pagar”.
Perdeu nove quilos porque não se consegue alimentar e os pulmões ainda não estão plenamente recuperados, comprometendo a função respiratória. Mas ganhou fôlego para enviar uma mensagem “aos tontos e tontas”, como Benjamim considera ter sido: “Deixem de coisas e vão vacinar-se. Eu aprendi e daqui a três meses vou tratar disso também”.
“Mais de 60% não estão vacinados”. Lacerda Sales dá novo número de internados não-vacinados
Benjamim Ribeiro é um dos infetados que dão corpo aos números avançados (e mais tarde atualizados) pelo secretário de Estado adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, na última semana: em cada dez pessoas internadas nos hospitais portugueses por complicações associadas à Covid-19, seis nunca tomaram a vacina. Há mesmo instituições em que a percentagem de não vacinados nas unidades de cuidados intensivos reservadas à Covid-19 alcançam os 90%.
João Lemos: “Vivia num mundo completamente à parte”
Há algo comum aos recuperados da Covid-19 que se arrependem de não terem sido vacinados com quem o Observador conversou: todos fazem questão de esclarecer que não são negacionistas da doença, nem contra a administração das vacinas. Os motivos por que escolheram adiar a vacina é que divergem. No caso de João Lemos, organizador de eventos com 51 anos, natural de Viseu e residente em Vila Nova de Gaia, foram as dúvidas sobre possíveis efeitos secundários e as informações contraditórias com que era bombardeado sobre a segurança e a eficácia das vacinas: “Decidi que queria ficar para o fim. Havia de tomar a vacina, mas queria ver primeiro o que acontecia”.
Aconteceu que João Lemos esteve mais de uma semana internado nos cuidados intensivos do Centro Hospital de Vila Nova de Gaia/Espinho após ter contraído o vírus por contágio da filha de quatro anos. Esteve sempre deitado de barriga para baixo — uma técnica repetida pelos intensivistas que acompanham casos graves de Covid-19 para melhorar a ventilação dos doentes. Quando se está de barriga para cima, o sangue bombeado do coração para os pulmões tende a viajar para baixo por causa da gravidade. Só que, nos doentes de Covid-19, é aí que ficam a maior parte das zonas pulmonares danificadas pelo vírus, onde a ventilação não acontece corretamente.
Como tal, o sangue que passa por lá não sofre as trocas gasosas que devia: fica demasiado pobre em oxigénio e demasiado rico em dióxido de carbono, o que compromete todo o organismo. No entanto, se um doente for colocado de barriga para baixo, o sangue passa pelas zonas mais saudáveis e mais bem ventiladas dos pulmões.
A longa estada nesta posição foi um pedido que João Lemos fez à equipa médica que o acompanhava no hospital para evitar a entubação e a entrada em coma induzido: “Preferia sofrer e sentir tudo, mas estar consciente”, justificou em entrevista ao Observador, já recuperado: “Estive mesmo terminal, estive quase a passar para o outro lado, tiveram de me tirar líquido dos pulmões. Tive sorte, não era o meu momento ainda”.
No dia em que João desenvolveu os primeiros sintomas da doença tinha feito um teste rápido na farmácia porque ia estar a trabalhar num evento no Porto. Deu negativo. Quando chegou a casa, já de noite, sentiu-se febril e automedicou-se com ibuprofeno e paracetamol. O alívio era momentâneo: quando o efeito dos comprimidos passava, os sintomas ressurgiam ainda com mais intensidade. O problema é que não conseguia contactar a Saúde 24, nem mesmo o número de emergência 112, porque as linhas estavam constantemente interrompidas.
Foi assim durante quatro dias. A 2 de dezembro, sozinho em casa, voltou a pegar no telefone: tentou fazer a cama de lavado, mas nem o lençol conseguia estender sobre o colchão. Os bombeiros de Coimbrões acudiram-no e transportaram-no até ao hospital, onde permaneceu completamente isolado num quarto nos cuidados intensivos.
E foi por lá que João começou a travar uma segunda batalha: além do coronavírus, também foi infetado por uma bactéria hospitalar multirresistente a antibióticos através do cateter que lhe foi instalado para facilitar a recolha de amostras de sangue para análises. Mesmo depois de ter saído do hospital e ter continuado a recuperação da Covid-19 em casa, continuou isolado por causa dessa mesma bactéria. Só teve liberdade total no último dia do ano.
Mas “a liberdade somos nós que a criamos”, defende. João diz que “olhou a morte nos olhos”, mas encontrou conforto nas pequenas coisas da vida: assim como antes da Covid-19 gostava de correr ao pôr do Sol na Praia da Madalena, no hospital sentava-se todos os dias num cadeirão junto à janela do quarto do hospital para apreciar os últimos minutos do dia. Foi assim que conservou o ânimo que agora lhe transparece na voz: “Foi uma grande aprendizagem para mim. Vivia num mundo completamente à parte. Mas sou uma pessoa muito positiva, talvez tenha sido o que me deu força para sobreviver”. Agora não tem dúvidas: “A base de tudo é tomar a vacina. E fá-lo-ia se pudesse voltar atrás”.
Margarida Pais: “Julgaram que no dia seguinte já estava do outro lado”
De todos os casos fatais de Covid-19 registados em Portugal, quase 65% são idosos a partir dos 80 anos — apesar de esta faixa etária representar menos de 6% de todos os infetados diagnosticados pelas autoridades de saúde. Margarida Pais tem 81 anos, é natural da Póvoa de Varzim e esteve internada nos cuidados intensivos do Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga com Covid-19. Houve duas ocasiões em que sentiu que ia morrer. Mas sobreviveu para contar a história e apelar à toma da vacina — a mesma que recusou logo no início do processo de vacinação em Portugal.
Margarida também foi ventilada de forma não invasiva, tal como Benjamim Ribeiro, com o “Helmet”, assim se chama o capacete médico, que retoma um conceito descrito pela primeira vez no século XVI e foi desenvolvido durante a pandemia de poliomielite nos anos 50. O objetivo é auxiliar os doentes em hipoxemia — isto é, baixa concentração de oxigénio no sangue arterial. O capacete submete os alvéolos dos pulmões a uma pressão atmosférica mais elevada, permitindo uma maior retenção de oxigénio no interior.
O tempo mínimo de ventilação com o Helmet é de 48 horas, mas os médicos que assistiram Margarida não acreditavam que a reformada de 81 anos suportasse tanto tempo: “Julgavam que, no dia seguinte, quando chegassem para o turno da manhã, já me encontrariam do outro lado”. Nada mais errado: apesar do “barulho incrível” que ouvia no capacete, os profissionais de saúde deram com Margarida totalmente desperta a tentar fazer um telefonema. “Gritaram vitória”, recordou comovida: “Diziam que a dona Margarida estava viva, que eu era uma guerreira”.
Para ela, no entanto, os guerreiros são os auxiliares, enfermeiros e médicos que a acompanharam durante duas semanas no hospital: “Pareciam passarinhos durante a noite, autênticas crianças com 20 e poucos anos a darem tanto amor, tanta atenção e carinho e a receberem tão pouco em troca”. Entre lágrimas, Margarida encontra humor para falar de todas as vezes que pediu o livro de reclamações: “Só passei fome. Queria rojões, só me davam chá. No dia seguinte pedi leitão, só me deram leite”, diz entre risos.
Com 81 anos, a caminho dos 82, Margarida Pais diz que nunca apanhou vacina “rigorosamente nenhuma”. E a contra a Covid-19 não seria diferente, até porque conhece médicos e enfermeiros que também não foram vacinados. “Porque seria eu diferente?”, pensou quando foi chamada para a primeira dose. Quase um ano depois do início do processo de vacinação, e depois da experiência quase letal por que passou, Margarida admite: “Vi passar gente com vacina e sem ela. Mas se tivesse apanhado, talvez o meu sofrimento tivesse sido aliviado. Só não passei para o outro lado porque Deus achou que não era a minha hora”.