Um hindu foi ter com o seu vizinho muçulmano e pediu-lhe uma cópia do Alcorão emprestada. “Claro que sim. Temos muitos! Vou buscar-te um da minha biblioteca”, respondeu-lhe o vizinho. Uma semana depois, o hindu regressou apreensivo e disse ao muçulmano: “Muito obrigado. É fascinante. Mas podias dar-me uma cópia do outro Alcorão?” A pergunta intriga o muçulmano. “É o que tens na mão”, respondeu-lhe. “Sim, eu li este. Mas precisava de uma cópia do Alcorão que é seguido pelos muçulmanos”, retorquiu o hindu.
A anedota, de origem indiana, tem sido usada por académicos islâmicos para ilustrar a diversidade de possíveis interpretações do Alcorão, a escritura sagrada de um quarto da população mundial (e ganha ainda maior interesse numa altura em que está a ser discutido o futuro do Afeganistão): em 2015, estimava-se que existissem 1,8 mil milhões de muçulmanos em todo o mundo, o segundo grupo religioso, apenas atrás dos cristãos. O Islão é, também, a religião com o crescimento mais rápido e prevê-se que ultrapassará o Cristianismo em número de seguidores por volta do ano 2070.
Contudo, as últimas décadas tornaram inevitável a associação entre os textos sagrados dos muçulmanos e o fundamentalismo islâmico. Os atentados de 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gémeas de Nova Iorque, os múltiplos ataques terroristas que ocorreram na Europa nos últimos anos e o desrespeito sistemático pelos direitos humanos em países teocráticos do Médio Oriente — em que lei religiosa e lei civil se confundem ao ponto de serem uma só — têm em comum o facto de os seus perpetradores usarem um argumento central para as suas ações: está no Alcorão.
Agora que, vinte anos depois de terem sido derrubados pela invasão norte-americana, os talibãs voltaram ao poder no Afeganistão, intensifica-se na comunidade internacional a preocupação com o radicalismo islâmico, sobretudo com o que este regresso ao poder vai significar para os direitos humanos, particularmente das mulheres. Nos primeiros dias do regime talibã, algumas transformações foram visíveis: as mulheres desapareceram da televisão pública e passaram a usar burca para andar na rua; muitas perderam os seus empregos e teme-se que as raparigas deixem de poder frequentar a escola. Ainda assim, esta terça-feira, em conferência de imprensa, os talibãs passaram uma imagem de maior abertura — isto, além de um porta-voz do movimento ter dado uma entrevista conduzida por uma apresentadora à televisão privada Tolo. Ainda assim, apesar destes sinais de uma aparente moderação, os talibãs já deixaram claro que querem estabelecer uma nação islâmica e que vão impor estritamente a sharia — a lei islâmica —, punindo crimes morais com penas bárbaras (incluindo o apedrejamento ou o corte de membros).
Na base deste modo de governar está uma interpretação literalista do Alcorão que choca alguns académicos islâmicos contemporâneos. “As pessoas usam-no para qualquer argumento que queiram defender. Chegam [ao Alcorão] com as suas ideias feitas e procuram os versículos que confirmam o que querem ouvir”, disse à jornalista inglesa Carla Power o xeque Mohammad Akram Nadwi, antigo investigador no centro de estudos islâmicos de Oxford, num livro sobre o estudo do Alcorão publicado em 2015 — o mesmo onde surge a anedota indiana do início do texto. De facto, tal como com a Bíblia ou qualquer outro livro sagrado, tudo pode ser extraído do Alcorão. Há versículos para todos os gostos. Basta isolá-los do seu contexto e selecionar bem o que se pretende para fazer o Alcorão pode parecer simultaneamente um tratado sobre direitos humanos e igualdade de género ou uma proclamação inaceitável de discriminação institucionalizada.
O novo regime talibã do Afeganistão ainda está longe da consolidação. 48 horas depois da tomada da capital, Cabul, a comunidade internacional tem os olhos postos no país. Enquanto milhares de pessoas tentam desesperadamente escapar à mais que certa opressão que o futuro lhes reserva, os talibãs estão a construir um novo governo cujos detalhes são ainda pouco conhecidos, e o resto do mundo aguarda para perceber de que modo poderá — se é que poderá — relacionar-se com os novos senhores do Afeganistão. Para já, apesar da aparente moderação, a história e alguns outros sinais fazem prever que o regime vai basear-se no radicalismo islâmico. Mas quão muçulmanos são os talibãs?
Do regresso à pureza do Islão e às interpretações radicais do Alcorão
Ao contrário do que acontece com a Bíblia cristã, que os religiosos consideram ser um conjunto de textos divinamente inspirados (ou seja, Deus é autor, mas os humanos que os escreveram também são autores, o que significa que há interpretações a fazer no que toca ao tempo, ao espaço e ao estilo literário de cada texto), o Alcorão é, para os muçulmanos, uma revelação direta de Deus. Segundo a teologia islâmica, foi o próprio Deus que ditou, através do arcanjo Gabriel, todo o conteúdo do Alcorão a Maomé, considerado o último de uma linhagem de profetas que começa com Adão e passa pela maioria dos nomes conhecidos da tradição judaico-cristã, como Abraão e até o próprio Jesus.
Torna-se, por isso, mais complexo falar de “interpretações” do Alcorão. Não há uma doutrina central. Numa religião sem liderança central, pululam por todo o universo islâmico escolas de pensamento distintas. Das mais radicais, que vão às raízes e desconfiam de qualquer tentativa de interpretar a palavra de Deus, às mais moderadas, que optam por ler o Alcorão à luz do tempo em que foi escrito e transpor para cada momento da história os seus ensinamentos.
No Islão, não há uma hierarquia de liderança definida como noutras religiões, muito menos uma figura comparável à do Papa católico, nem órgãos centrais colegiais. A hierarquia islâmica organiza-se, sobretudo, em torno de alguns clérigos e estudiosos do Alcorão que, devido ao respeito que inspiram na comunidade, aos seus grandes conhecimentos e à sua influência num determinado território, recebem títulos honoríficos como mulá ou xeque — e que podem, depois, assumir a liderança formal de uma mesquita, com o título de imã. (É, por exemplo, o caso do xeque David Munir, imã da mesquita central de Lisboa, o maior centro islâmico de Portugal.)
A nível global, alguns clérigos de grande relevo tornam-se figuras centrais do Islão mundial e assumem um papel de liderança, ainda que informal, de determinadas correntes de pensamento. É o caso do xeque Ahmed Mohamed e-Tayeb, o Grande Imã da mesquita de al-Azhar, no Egipto, considerado de modo relativamente unânime como o principal clérigo do Islão sunita. Já se encontrou com o Papa Francisco no Vaticano, já recebeu Marcelo Rebelo de Sousa no Cairo e já visitou a mesquita central de Lisboa.
Estas correntes de pensamento no seio do Islão formam-se habitualmente nas madraças, as escolas corânicas onde os muçulmanos memorizam o Alcorão e aprendem os ensinamentos do profeta Maomé. Foi justamente no contexto das madraças conservadoras do sul do Afeganistão que os talibãs surgiram, no início da década de 1990.
É impossível desligar o surgimento dos talibãs do contexto do revivalismo islâmico que se viveu na segunda metade do século XX no Médio Oriente como reação às sucessivas intervenções do Ocidente na região. Durante décadas, as potências ocidentais exerceram domínio sobre o Médio Oriente — retalhando o território sem atenção às sensibilidades culturais e religiosas —, impuseram práticas culturais por vezes artificiais e inadequadas à tradição islâmica e desmontaram os sistemas político-religiosos que regiam as sociedades orientais. Esta abordagem criou em alguns segmentos populacionais do Médio Oriente terreno fértil para uma reação dura e para um desejo de regresso à pureza religiosa, que se manifestou especialmente a partir da década de 1970 — um dos exemplos mais claros deste revivalismo é a revolução iraniana de 1979, em que o aiatolá Khomeini implementou uma república islâmica no país.
No caso afegão, à queda da monarquia em 1973 seguiu-se um período de instabilidade agravado pela intervenção militar soviética em 1978. Durante uma década, violentos confrontos entre a União Soviética e a resistência financiada pelos Estados Unidos dilaceraram o país. Depois, a guerra civil agravou o estado da região e inquietou ainda mais os jovens muçulmanos que estudavam nas madraças: anos de conflito não só evidenciavam a falta de implementação da lei islâmica como só poderiam ser resolvidos com ela. No contexto da guerra civil, Mohammad Omar, um jovem combatente que havia lutado contra os soviéticos durante a ocupação, instalou-se no sul do Afeganistão e começou a ensinar numa madraça na província de Kandahar. Lá, terá tido uma visão divina que o inspirou a levar a paz ao país e estimulou um grupo de estudantes (“talib”, em árabe) a juntarem-se a ele numa guerra santa (“jihad”) para estabelecer um emirado no país.
Em poucos anos, Mohammad Omar tinha juntado centenas de apoiantes e tomado várias cidades do sul do país. Em 1996, os talibãs capturaram a capital, Cabul, e impuseram um regime fundamentalista no país, que durou cinco anos, durante os quais as mulheres praticamente não tiveram direitos básicos. O Afeganistão talibã, baseado em interpretações puramente literais do Alcorão, tornou-se também num refúgio para extremistas islâmicos de outros países — e seria isso a ditar o seu fim. Foi lá que Osama bin Laden, o mentor dos atentados do 11 de Setembro, procurou abrigo, e a recusa de Mohammad Omar em extraditá-lo para os EUA motivou a invasão norte-americana que ditou o fim do regime.
Mas os talibãs mantiveram-se atentos às oportunidades para regressar ao poder e a prova de que estavam prontos para voltar foi a rapidez com que tomaram a totalidade do Afeganistão em menos de dois meses depois do anúncio da retirada norte-americana do país. Agora, os talibãs têm o Afeganistão numa mão e o Alcorão na outra — e é com a escritura sagrada que planeiam governar o país. Sem uma autoridade global com jurisdição sobre o Islão, os insurgentes têm liberdade para interpretá-la como quiserem. Dessa interpretação vai depender o futuro do Afeganistão. Sobretudo, das mulheres afegãs.
Lei islâmica no Afeganistão? Em 2013, 99% diziam que sim
A primeira decisão de um governo fundamentalista islâmico é, evidentemente, a de criar uma nação verdadeiramente islâmica. Por exemplo, sob a designação de califado (como o Estado Islâmico procurou fazer no Iraque e na Síria), resgatando uma designação dos primeiros tempos do Islão que vários estados ao longo da história procuraram replicar, forçando a proclamação de um califa como sucessor legítimo de Maomé e líder de todos os muçulmanos do planeta, ou então sob a designação de emirado, como agora os talibãs fizeram no Afeganistão — liderado por um emir, um termo habitualmente usado como título nobiliárquico no mundo árabe.
Independentemente da designação, um aspeto é certo: num estado com estas características, não há qualquer separação entre estado e religião. A lei da nação é a lei religiosa — a sharia —, os líderes do país são os líderes religiosos e o quotidiano é regido pela interpretação dos escritos sagrados.
Contudo, e apesar de uma interpretação mais fundamentalista da lei poder significar a perda de direitos básicos para uma parte significativa da população (nomeadamente as mulheres), a implementação da sharia no Afeganistão poderá ser o tópico menos polémico da chegada dos talibãs ao poder.
Um estudo do conceituado Pew Research Center publicado em 2013 mostra que, na verdade, havia no Afeganistão uma grande aceitação da sharia. De acordo com o inquérito, 73% dos afegãos consideravam que a sharia é a palavra direta de Deus, enquanto apenas 21% consideravam que era um sistema legal desenvolvido pelos humanos com base nos ensinamentos divinos. Mais revelador ainda: 67% dos afegãos consideravam que a sharia só tem uma interpretação possível, enquanto apenas 29% sustentavam que era possível que existissem várias interpretações da lei islâmica.
Mas o dado que mais salta à vista no estudo do Pew Research Center prende-se com a pergunta sobre se a sharia deveria ser adotada como lei civil. Entre os 38 países com uma presença islâmica maioritária ou considerável onde foram conduzidos inquéritos, o Afeganistão é aquele em que há um maior desejo de que a lei islâmica e a lei civil sejam uma só: 99% dos inquiridos disseram que sim. Além disso, a maioria dos inquiridos (61%) disse que a sharia deveria aplicar-se a todos os cidadãos do país, independentemente da religião, enquanto apenas 37% defenderam que se devia aplicar apenas aos muçulmanos. Este posicionamento contraria diretamente o ensinamento do Alcorão, como lembrava em 2008 o xeque David Munir numa conferência em que foi abordado o problema do extremismo islâmico: “O Corão diz que aqueles que rejeitarem o Islão terão que se enfrentar diretamente com Deus. Os homens não têm poder para os julgar.”
Como as mulheres podem sofrer com uma interpretação estrita do Alcorão
O grande problema com o regresso dos talibãs ao poder em 2021 prende-se com o modo como se perspetiva que os novos líderes afegãos virão a tratar as mulheres — aliás, um problema generalizado e bem identificado em vários países de maioria muçulmana. Os relatos das primeiras horas de ocupação davam conta de um rápido desaparecimento da presença feminina do espaço público e basta um regresso ao final da década de 1990 para recordar a maneira como as mulheres eram tratadas pelo governo dos talibãs.
Sob o domínio dos talibãs, as mulheres estavam expressamente proibidas de sair à rua sem estarem acompanhadas por um guardião masculino que tinha de ser o marido ou um homem da família direta (pai ou irmão). Além disso, era obrigatório o uso da burca — a mais restritiva de todas as vestes islâmicas, uma vez que cobre a totalidade do corpo, incluindo o rosto, havendo apenas uma pequena janela rendada na zona dos olhos.
Outras normas incluíam a proibição de falar em voz alta na rua, a proibição de usar saltos altos ou outros sapatos barulhentos, a exibição de qualquer fotografia de uma mulher em público (incluindo na comunicação social ou em cartazes na rua), a proibição de mulheres na televisão e na rádio, a utilização de autocarros separados para mulheres e homens, o encerramento de salões de beleza e até o desaparecimento da palavra “mulher” do espaço público. Tudo isto porque, argumentavam os talibãs com base no Alcorão, a mulher é uma fonte de tentação para os homens. Por isso, e para que fosse mantida a honra e a decência na vida coletiva, as mulheres deviam ser invisíveis para a sociedade — visíveis apenas para o marido e para os familiares mais próximos, em casa.
Esta prática islâmica do Médio Oriente recebe até uma designação própria: “purdah”. Trata-se de um conjunto de normas próprias que incluem tanto a cobertura do corpo das mulheres no espaço público como a separação física entre homens e mulheres como modo de manter o seguimento estrito das virtudes religiosas.
Por considerarem que violaria tanto a sharia como a purdah, os talibãs decidiram que todas as mulheres seriam proibidas de ter um emprego. Só assim evitariam o escandaloso contacto entre homens e mulheres no local de trabalho. A única exceção aberta foi para os profissionais de saúde, uma vez que aí foi preciso resolver um dilema: se os homens não podem ver mulheres que não sejam a(s) sua(s) esposa(s), então um médico não poderia ver uma paciente mulher. Assim, os talibãs permitiram a existência de mulheres enfermeiras e médicas que prestassem cuidados de saúde exclusivos a mulheres. Porém, a enorme escassez de mulheres qualificadas para a profissão levou a que durante o regime dos talibãs aumentasse significativamente a mortalidade feminina no país por falta de acesso a cuidados de saúde, sobretudo durante a gravidez.
Por outro lado, os talibãs proibiram também todas as raparigas e mulheres de frequentarem qualquer grau de ensino à exceção do estudo do Alcorão durante a infância, até aos 8 anos.
Os talibãs foram buscar a maioria destas regras a passagens específicas do Alcorão, de onde se depreende que os homens têm uma importância superior às mulheres, podendo ser donos delas e determinar as suas vidas. Algumas passagens, lidas individualmente, parecem dizer mesmo isso: “As tuas mulheres são como terra fértil para ti, por isso aborda-as quando quiseres” (2:223 — aqui as traduções costumam acrescentar “com consentimento”); “As mulheres têm direitos semelhantes aos dos homens, mas os homens estão um grau acima delas” (2:228 — aqui, alguns académicos contemporâneos afirmam que se trata de um grau de responsabilidade, e não de poder).
No que toca às heranças, diz o Alcorão que, quando um homem morre, a porção que cabe ao filho será o dobro da que cabe às filhas (4:11). A divisão só é feita equitativamente se apenas houver filhas. E, noutra passagem, o Alcorão determina que quando alguém contrai um empréstimo, deve assinar um contrato com testemunhas: “Chama dois homens como testemunhas. Se não for possível encontrar dois homens, então um homem e duas mulheres da tua escolha são testemunhas — para que se uma mulher se esquecer a outra a possa lembrar” (2:282). Na prática, a palavra de uma mulher vale metade da de um homem. Em 4:24, o Alcorão determina que um homem pode ter escravas sexuais. Em 4:3, que um homem se pode casar com até quatro mulheres.
Numa das passagens mais controversas do Alcorão, em 4:34, o livro sagrado dos muçulmanos explica inclusivamente que “os homens estão encarregues das mulheres”, uma vez que Deus lhes deu a tarefa de as supervisionarem. Porém, se o marido “temer” — basta isso — que a sua mulher seja arrogante, não seja devota a Deus ou não seja obediente, então deve primeiro “admoestá-la”; depois “deixá-la sozinha na cama”; e finalmente “bater-lhe”. As traduções contemporâneas introduzem “gentilmente” em parênteses retos.
Procurando bem, o Alcorão também determina que é lícito casar com raparigas menores de idade. “Quando se divorciarem das vossas mulheres, divorciem-se no início do período de espera e contem o tempo”, apela o Alcorão em 65:1, numa passagem que regula os divórcios e explica que durante um período de tempo determinado o divórcio deve ficar em suspenso: a mulher não deve sair de casa do marido e não devem ter relações sexuais, já que é preciso confirmar que a mulher não está grávida. Mais à frente, o Alcorão desenvolve: “Quanto às vossas mulheres que já passaram a idade da menstruação, caso não saibam, o período de espera é de três meses, bem como para aquelas que ainda não menstruaram. Para as que estão grávidas, o período de espera acaba quando derem à luz.”
Por outro lado, o Alcorão não explicita o uso da burca pelas mulheres. Em 24:31, são dadas instruções para que as mulheres se vistam de modo discreto, baixe o olhar, cubram os peitos e não mostrem o corpo a não ser aos maridos, pais, sogros, filhos, netos, irmãos, sobrinhos e outras mulheres. Mais à frente, em 33:59, é pedido às mulheres que se cubram com longas vestes para que sejam reconhecidas como mulheres de virtude e não sejam assediadas. Por outro lado, a palavra “hijab” é usada no Alcorão, não como código de vestuário, mas como indicação para a separação entre vida privada e vida pública (dos homens) — de onde se extrai a necessidade, para os muçulmanos, de preservar a privacidade e a discrição das mulheres.
Simultaneamente, o Alcorão não proíbe de maneira alguma a educação das mulheres nem o seu acesso ao emprego. Na verdade, a tradição islâmica até o incentiva. Além do Alcorão, outra das principais fontes da sharia são os chamados hádices, um conjunto de ensinamentos de Maomé aos seus companheiros, que ficaram registados e que são usados como complemento ao Alcorão. Num deles, Maomé afirma mesmo: “A busca do conhecimento é um dever de todos os muçulmanos, homens ou mulheres.”
Para alguns académicos e líderes religiosos muçulmanos contemporâneos, o modo como os fundamentalistas tratam as mulheres resulta de uma interpretação distorcida dos pressupostos do Alcorão, e não de uma análise legítima e contextualizada do livro sagrado. O xeque Mohammad Akram Nadwi, atualmente investigador na universidade islâmica de Cambridge, no Reino Unido, é um dos principais defensores dessa tese e acredita que, na verdade, as mulheres tiveram um papel mais preponderante do que se acreditava na fundação do Islão — mas a tal modéstia a que o Alcorão apela levou a que os seus nomes não ficassem registados na história.
“Não conheço outra religião em que as mulheres tenham sido tão centrais na sua história formativa”, disse Akram Nadwi no livro de Carla Power. A investigação do xeque seguiu aquele caminho por mero acaso, quando Akram Nadwi descobriu um número invulgarmente elevado de nomes femininos em alguns textos clássicos do Islão e começou a fazer a lista. Chegou a milhares de referências femininas que, ao longo de séculos, foram juristas, académicas e professoras, tendo como estudantes alguns dos principais líderes do Islão — incluindo califas. Porém, os seus nomes passaram praticamente despercebidos ao longo da história, mais ou menos pelo mesmo motivo que algo semelhante aconteceu na história europeia: a história foi sendo escrita por homens, que escreviam sobre outros homens. Além disso, a virtude islâmica da modéstia feminina contribuiu para que as referências ao trabalho das mulheres fossem menos do que as merecidas.
No entender de alguns académicos islâmicos, o universo muçulmano sofreu exatamente das mesmas dores de crescimento que o Ocidente. “Em alguns países europeus, as mulheres só começaram a votar nos anos 1970”, diz Mohammad Akram Nadwi. Assim, numa tradição religiosa regida quase exclusivamente pelos textos sagrados, a interpretação masculina foi sempre primordial. Mas, nas últimas décadas, também os historiadores islâmicos têm reinterpretado a história à luz dos novos valores sociais — e até as traduções do Alcorão começam a mudar. Por exemplo, na famosa passagem 4:34, considerada por muitos o “ADN do patriarcado”, já há traduções que não dizem que os homens estão “encarregues” das mulheres, mas sim que são seus “protetores” ou “cuidadores”.
Mas os talibãs de 2021 poderão não ser os talibãs de 1996.
Nos últimos dias, através de comunicados e entrevistas, os líderes talibãs fizeram um conjunto de promessas que indiciam que o movimento poderá estar a tentar moderar-se e modernizar-se, até na interpretação do Alcorão, de modo a afirmar-se como liderança legítima do país no plano das relações internacionais. “Vamos respeitar os direitos das mulheres. A nossa política é que as mulheres vão ter acesso à educação e ao trabalho, e ao uso do hijab”, disse um porta-voz dos talibãs à BBC, indiciando que as imagens pré-2001 poderão não se repetir. Se as promessas vão ser cumpridas, é preciso esperar para ver.
Chicotadas, corte de mãos e pés e apedrejamentos. Vão os talibãs seguir o Alcorão à risca?
Noutro plano, a comunidade internacional teme que os talibãs possam voltar a implementar, com toda a brutalidade, um sistema judicial inteiramente baseado na sharia com penas corporais bárbaras para os criminosos. Em causa está o conceito de “hudud”, um sistema de punições corporais ao abrigo da lei islâmica que os muçulmanos consideram ser estabelecidas diretamente por Deus e que se destinam a punir os crimes cometidos contra Deus e a religião.
Entre os crimes punidos ao abrigo do hudud encontram-se práticas como o adultério e o sexo fora do casamento, mas também o abandono da religião islâmica, a rebelião contra os sucessores do profeta e o roubo — mas não, por exemplo o homicídio, uma vez que aí se considera que é um crime contra a vítima e a família, mas não contra Deus. Os crimes que cruzam o limite da ofensa a Deus são punidos com penas que podem incluir as chicotadas (a punição mais comum), a amputação de membros (habitualmente para roubos), a morte por apedrejamento (para o adultério, por exemplo) ou a infamante crucificação.
Muitos académicos islâmicos contemporâneos convergem num aspeto: as punições hudud eram, antigamente, raríssimas. Foi o próprio Maomé quem determinou que só poderiam ser aplicadas punições corporais quando os crimes ficassem provados sem qualquer margem para dúvidas. Isto implicava, por exemplo, a existência de pelo menos quatro testemunhas em crimes de adultério e a inexistência de qualquer ambiguidade no crime. Bastava que alguém voltasse atrás na confissão, ou que entre os juízes houvesse ainda um vestígio de incerteza, para que uma pena hudud fosse posta de parte. Além disso, havia também penas corporais para quem apresentasse uma queixa de um crime de adultério sem apresentar as quatro testemunhas necessárias. Assim, a aplicação destas punições era particularmente rara: funcionavam, essencialmente, como dissuasores para que os fiéis compreendessem a especial gravidade de violar aquelas disposições da lei islâmica, até porque as penas eram aplicadas em público.
Porém, a aplicação da sharia nas últimas décadas por grupos fundamentalistas pôs de parte a maioria dos travões burocráticos determinados pela tradição islâmica e as penas corporais tornaram-se muito comuns, quase diárias, em regimes teocráticos do Médio Oriente — incluindo no Afeganistão talibã dos anos 1990.
Os fundamentalistas sustentam a aplicação destas punições numa leitura literal — e exclusiva — do Alcorão.
De facto, os escritos sagrados do Islão incluem determinações muito concretas sobre estas penas. Por exemplo, a fornicação, ou sexo fora do casamento, é punida com 100 chicotadas (24:2). Por outro lado, “quem acusar uma mulher casta de adultério e não apresentar quatro testemunhas” recebe oitenta chicotadas e nunca mais poderá ver a sua palavra acreditada perante a justiça (24:4). Já os ladrões, homens ou mulheres, são punidos com a amputação das mãos (5:38). A pena mais dura está reservada para os dissidentes, descritos como os que “fazem guerra contra Deus ou o seu mensageiro”. A eles são-lhes cortados os pés e as mãos, ou então crucificados (5:33). Relativamente ao apedrejamento, o Alcorão não o menciona — mas os hádices de Maomé incluem referências ao apedrejamento, pelo que a prática foi seguida ao longo dos séculos, incluindo pelos talibãs dos anos 1990, que organizavam apedrejamentos públicos em estádios de futebol.
As punições hudud têm sido usadas ao longo dos últimos anos em vários países de maioria muçulmana, incluindo a Arábia Saudita, o Irão, o Paquistão, o Sudão e em alguns casos também no Afeganistão. O regresso dos talibãs ao poder, contudo, poderá significar uma intensificação forte do recurso a este sistema de penas — e uma entrevista recente de um comandante talibã à BBC deu a entender que isso está nos planos dos insurgentes. “Se alguém rouba, há uma punição. Por exemplo, para alguns roubos a punição é o corte da mão e do pé. E se alguém cometer adultério, então deverá ser apedrejado”, disse o responsável.
Também neste caso, só o tempo dirá se os talibãs vão manter a lógica contemporânea de recorrer frequentemente às punições corporais ou se, pelo contrário, vão regressar ao sistema ancestral do Islão e usá-las apenas como método dissuasor. Para já, os talibãs começaram o seu domínio com uma amnistia completa a todos aqueles que tenham trabalhado com o governo anterior e com os norte-americanos — e que, em teoria numa interpretação estrita do Alcorão, seriam crimes puníveis com a mais grave das penas hudud. Se é um genuíno sinal de boa fé ou uma manobra de propaganda para as relações internacionais, ainda não é certo.
A julgar pelo estudo do Pew Research Center de 2013, parece haver uma grande adesão dos afegãos à justiça dura dos talibãs. Segundo os resultados do inquérito, de entre os afegãos que consideravam que a sharia devia ser a lei do país (99%), um total de 81% diziam apoiar o recurso a punições corporais para crimes de roubo e 85% concordavam com o apedrejamento como pena para o adultério. Além disso, 79% estavam de acordo com a pena de morte para quem abandonasse o Islão.
Os talibãs de 2021 são os mesmos de 1996? Para já, só há incerteza
Para os talibãs, a interpretação do Alcorão continua a ser a mais estrita e literal possível — mas além da interpretação masculina do Alcorão é preciso somar um conjunto de fatores culturais, que marcam profundamente a tradição das tribos que habitam aquela região do mundo (os talibãs provêm da tribo pachtum, maioritária no Afeganistão).
O xeque David Munir, que lidera uma comunidade islâmica muitas vezes apontada como um exemplo excecional de integração muçulmana na sociedade europeia, aponta insistentemente, em várias intervenções públicas, a necessidade de separar o que são práticas religiosas e o que são práticas culturais — que nos países do Médio Oriente, se fundem, passando uma imagem muitas vezes incompleta do que é o Islão.
“São exemplos disso a proibição de conduzir na Arábia Saudita, que não existe em mais país islâmico nenhum, e o acesso a lugares de direção política, que também não é vedado às mulheres, como se viu no Paquistão, com a senhora Benazir Bhutto, que foi primeira-ministra por duas vezes, num país islâmico”, dizia o xeque em 2008, acrescentando que o acesso ao mercado de trabalho também não está vedado às mulheres pela prática islâmica: “Vejam o meu caso pessoal, a minha mulher é médica, trabalha e até ganha muito mais do que eu. É claro que isso não vai contra o Islão.”
E mesmo as práticas de Maomé não precisam de ser replicadas à letra pelos muçulmanos contemporâneos. “Era tradição do profeta comer com as mãos, mas uma pessoa comer com talheres não é cometer um pecado. Era tradição do profeta sentar-se no chão para comer, mas uma pessoa utilizar a mesa não é pecado. Temos de saber adaptar-nos”, afirmava Munir à Renascença.
No caso dos talibãs, de etnia pachtum, a influência da purdah — a prática de separar física e socialmente as mulheres dos homens que é observada por comunidades islâmicas e hindus no sul da Ásia, incluindo Afeganistão, Paquistão e Índia — soma-se às determinações do Alcorão e acaba por intensificar o tratamento discriminatório praticado pelos talibãs já com base na doutrina islâmica. Os sinais dados pelos talibãs nas últimas horas são ainda insuficientes para perceber como vai, exatamente, funcionar o novo regime afegão. Por um lado, os responsáveis políticos do movimento já garantiram que pretendem ter mulheres no novo governo, asseguraram que não querem ter inimigos internos nem externos e sublinharam que a sua prioridade é a segurança do país. Por outro lado, também explicaram que vão permitir que as mulheres estudem e trabalhem, desde que dentro da “lei islâmica” — mas não acrescentaram pormenores sobre o que isto significa.
Como fica bem claro na rábula do hindu que busca o Alcorão que os muçulmanos usam, há múltiplos modos — até contraditórios — de interpretar os escritos sagrados do Islão. A interpretação que os talibãs escolherem determinará, em larga medida, o modo de vida dos afegãos nos próximos tempos.