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Os talibãs entraram na capital do Afeganistão, Cabul, neste domingo
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Os talibãs entraram na capital do Afeganistão, Cabul, neste domingo

Anadolu Agency via Getty Images

Os talibãs entraram na capital do Afeganistão, Cabul, neste domingo

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Burcas, medo silencioso e regresso da justiça medieval. Como é agora a vida no Afeganistão que os talibãs controlam

As mulheres desapareceram da televisão e vestiram a burca. Nas cidades afegãs capturadas pelos talibãs o medo impera na rua. Escondidos em casa, os afegãos temem que os extremistas lhes batam à porta.

“Adoro pintar as unhas. Hoje, a caminho de casa, olhei para o salão de beleza onde costumava ir à manicura. A montra, que estava decorada com belas fotografias de raparigas, tinha sido pintada de branco durante a noite.

O relato é de uma mulher afegã, residente na capital Cabul, que escreveu sob anonimato no jornal britânico The Guardian, e ilustra cruamente a transformação radical que se operou nas últimas horas no Afeganistão depois da tomada da capital pelos talibãs — vinte anos após a invasão norte-americana que tinha derrubado o regime daquele movimento fundamentalista islâmico e remetido os seus combatentes à clandestinidade nas montanhas, onde tiveram tempo de se reorganizar e esperar pelo momento certo para reentrar em cena. A retirada das tropas dos EUA do país foi a oportunidade e, em menos de dois meses, os talibãs capturaram todo o país. A entrada em Cabul, este sábado, e a fuga do presidente democraticamente eleito, Ashraf Ghani, confirmaram o que já se esperava há várias semanas: o Afeganistão é, de novo, dos talibãs.

Para muitos afegãos, e sobretudo para as mulheres, o que está a acontecer é um retrocesso de duas décadas no que toca a direitos fundamentais.

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Apesar de os talibãs prometerem um regime aberto, que inclui liberdade de imprensa e direitos das mulheres (embora as punições criminais islâmicas, como o apedrejamento ou a amputação dos membros, estejam mesmo de volta), a verdade é que a vida no país mudou radicalmente. Na manhã desta segunda-feira, o primeiro dia do regime Talibã, a maioria das mulheres pivôs já não apareceram nas emissões dos canais televisivos afegãos e as rádios praticamente não passaram música. Vários relatos recolhidos pela imprensa internacional nas cidades já tomadas pelos talibãs mostram que, em poucos dias, a população perdeu direitos básicos e, nas ruas do Afeganistão, impera o medo e a incerteza com o futuro.

"Todas queríamos ir para casa, mas não podíamos usar os transportes públicos. Os motoristas não nos deixavam entrar nos carros porque não se queriam responsabilizar por transportar uma mulher."
Estudante universitária afegã, ao jornal The Guardian

“No domingo de manhã, eu estava a caminho da universidade para uma aula quando um grupo de mulheres saíram a correr do dormitório feminino. Perguntei-lhes o que se passava e uma delas disse-me que a polícia estava a retirá-las porque os talibãs tinham chegado a Cabul e iriam espancar as mulheres que não tivessem uma burca”, descreve a mesma estudante universitária que escreveu no The Guardian. “Todas queríamos ir para casa, mas não podíamos usar os transportes públicos. Os motoristas não nos deixavam entrar nos carros porque não se queriam responsabilizar por transportar uma mulher.”

Aos 24 anos, a estudante explica que esperava completar a sua formação universitária em novembro deste ano, mas o sonho caiu por terra com o avanço dos talibãs. Teve uma amostra do terror que a espera ainda no domingo da ocupação, quando testemunhou a diferença entre o pânico no rosto das colegas mulheres e o escárnio nos colegas homens. “Vai pôr a burca”, disse-lhe um. “São os teus últimos dias na rua”, atirou outro. “Vou casar com quatro de vocês no mesmo dia”, garantiu ainda outro.

“Senti que já não poderia rir-me alto, não posso voltar a ouvir as minhas canções favoritas, não posso voltar a encontrar-me com os meus amigos no nosso café favorito, não posso voltar a usar o meu vestido amarelo favorito ou o meu batom cor-de-rosa. E não vou voltar a ter o meu emprego nem acabar os estudos universitários para os quais trabalhei tantos anos”, lamenta. “Eu tinha planos para o futuro. Não esperava que tudo acabasse assim. (…) Quando as províncias iam caindo [para os talibãs], uma após outra, pensava nos meus sonhos de menina. As minhas irmãs e eu não conseguíamos dormir a noite inteira, a lembrar as histórias que a nossa mãe nos costumava contar sobre a era dos talibãs e sobre o modo como eles tratavam as mulheres.

“Tenho de vestir uma burca e um homem tem de vir comigo”

A liberdade das mulheres foi um dos primeiros alvos dos talibãs nos lugares que já controlaram completamente, explicou à BBC a parteira Nooria Haya (um nome fictício para a proteger de retaliações), uma profissional de saúde numa clínica pública em Ishkamish, no norte do país.

Até à semana passada, o seu quotidiano incluía reuniões frequentes com outros profissionais de saúde, homens e mulheres, em que eram discutidos os procedimentos clínicos do hospital. Mas, depois de os talibãs terem capturado a povoação — uma região fronteiriça vital para controlar o país —, a primeira ordem que chegou ao hospital foi clara: acabaram as reuniões entre homens e mulheres.

Agora há muitas restrições. Quando saio à rua, tenho de vestir uma burca como os talibãs mandam, e um homem tem de vir comigo”, explicou a parteira à BBC. “De repente, a maioria das liberdades foram-nos retiradas. É muito difícil, mas não temos alternativa. Eles são brutais. Temos de fazer o que eles dizem. Eles estão a usar o Islão para as intenções deles; nós também somos muçulmanos, mas as crenças deles são diferentes.”

epa09403516 Afghan security officials and private militia loyal to Ismail Khan, the former Mujahideen commander patrol after they took back control of parts of Herat city following intense battle with Taliban militants, in Herat, Afghanistan, 07 August 2021. Heavy fighting continued in Kandahar, Lashkargah, and Herat cities as the Taliban continued pressing on with their surge in Afghanistan and breaking through a tough resistance by the government forces. The fighting in Herat displaced hundreds of families as people left their houses to seek refuge in central parts of the city, mostly settling with relatives.  EPA/JALIL REZAYEE

Os talibãs capturaram o Afeganistão em menos de dois meses

JALIL REZAYEE/EPA

Para Nooria Haya, que tem 29 anos e era uma criança quando os talibãs controlaram o Afeganistão entre 1996 e 2001, esta é a primeira vez que as duras restrições dos extremistas — de que só ouvira relatos familiares — lhe são impostas.

A duas horas de Ishkamish, em Kunduz, o cenário é parecido. De acordo com o testemunho de um profissional de saúde daquela cidade ao The New York Times, o hospital foi uma das primeiras instalações de que os talibãs tomaram conta — precisamente porque muitos dos seus próprios combatentes estavam feridos e precisavam de cuidados médicos. Ainda antes de qualquer ordem, e devido ao medo que os talibãs inspiram, as mulheres que trabalham no hospital passaram a vestir burca durante o trabalho — até mesmo durante as cirurgias. E as armas passaram a ser frequentes dentro do hospital. “Dentro do hospital eles andam armados, no pátio do hospital andam armados. Até os talibãs doentes entram no hospital com armas”, disse o profissional de saúde.

Em Cabul, a capital do país, os dias que antecederam a chegada dos talibãs foram passados em preparações. “A minha primeira preocupação foi deixar a barba crescer e fazê-la crescer rápido. Também vi com a minha mulher se havia burcas suficientes para ela e para as meninas”, disse à Reuters um padeiro de Cabul, Gul Mohammed Hakim. Sob o regime dos talibãs, os homens não podem cortar a barba — por ser considerado contra a religião islâmica — e até os barbeiros estão proibidos de fazer cortes de cabelo que pareçam “ocidentais” (nomeadamente, cortando mais o cabelo nos lados e atrás).

Os talibãs têm a sua própria polícia da moral. Dão pelo nome de Amri bil Marof (que se traduz por algo como “ordem dos bons”) e só o nome faz os afegãos, lembrados dos anos 1990, tremer de medo. Segundo a BBC, a regra é simples: à primeira violação, um aviso; à segunda, uma punição, que pode passar por chicotadas públicas, espancamentos, penas de prisão ou outras humilhações públicas. Novamente, são as mulheres quem mais sofre com esta polícia da moral. Sair à rua sem um acompanhante masculino — o marido ou, em alternativa, um familiar, como um irmão ou o pai — pode significar uma pena duríssima.

"A minha primeira preocupação em deixar a minha barba crescer e em fazê-la crescer rápido. Também vi com a minha mulher se havia burcas suficientes para ela e para as meninas."
Gul Mohammed Hakim, padeiro em Cabul, à Reuters

Nos primeiros dias, os talibãs têm prometido que não vão impor um regime atentatório dos direitos humanos. “Vamos respeitar os direitos das mulheres”, disse no domingo um porta-voz do movimento fundamentalista. “A nossa política é a de que as mulheres terão acesso à educação e ao trabalho, e a usar o hijab”, acrescentou Suhail Shaheen. A referência ao hijab — um véu que tapa a cabeça e o pescoço, mas que não é uma veste completa como a burca ou o nicabe — foi feita como modo de salientar que a prática do regime talibã será mais parecida com aquilo a que no Ocidente se descreve como “Islão moderado” do que propriamente com as tenebrosas práticas do radicalismo islâmico.

Ainda assim, os afegãos duvidam da veracidade das promessas — e nas ruas impera o medo.

Medo nas ruas desertas e uma operação de charme dos talibãs

Enquanto o mundo aguarda para entender de que modo os talibãs vão organizar o regime, a melhor maneira de perceber como poderá vir a ser o Afeganistão dos talibãs é olhar para como já estão a ser geridas as cidades capturadas pelos insurgentes ao longo das últimas semanas. É o caso de Kunduz, no norte do país, totalmente controlada desde o dia 8 de agosto, como explica uma reportagem do The New York Times.

A cidade caiu às mãos dos talibãs após várias semanas de guerrilha entre os insurgentes e as forças armadas afegãs. No dia em que as forças talibãs capturaram definitivamente Kunduz, a cidade estava irreconhecível e disfuncional. A rede elétrica, gravemente danificada pelas explosões, deixara a cidade sem luz — e, em consequência, sem água, já que os sistemas de bombagem dependiam da eletricidade. As ruas, cheias de lixo e detritos, estavam vazias. Praticamente todos os residentes estavam escondidos em casa havia vários dias, para se protegerem dos conflitos e, agora, para se esconderem dos talibãs.

Para os próprios talibãs, isto é um desafio difícil. Com todos os habitantes da cidade em casa, não há funcionários públicos, eletricistas, padeiros ou médicos. A cidade não funcionava — nem para os seus novos ‘donos’.

Em Cabul, os combatentes talibãs estão em cada esquina

Anadolu Agency via Getty Images

Assim, os talibãs começaram uma série de esforços para reerguer a cidade, agora sob o seu domínio. “A nossa jihad [guerra santa] não é contra o município, a nossa jihad é contra os ocupantes e contra aqueles que defendem os ocupantes”, disse ao The New York Times o novo presidente da câmara de Kunduz, Gul Mohammad Elias, nomeado pelos talibãs para administrar a cidade. Foi essa a mensagem que o autarca tentou passar aos funcionários públicos nos primeiros dias da ocupação, para os tentar convencer a regressarem aos seus postos de trabalho.

A primeira estratégia dos talibãs foi uma autêntica operação de charme. Primeiro, os extremistas telefonaram a um conjunto de trabalhadores da autarquia, convocando-os para uma reunião pessoal com o novo presidente da câmara. Os nove funcionários que acederam ao convite encontraram-se com Gul Mohammad Elias, um jovem talibã de grandes barbas e ar amigável que lhes garantiu que não eram um alvo. Pelo contrário, a mensagem passada foi a da libertação: os talibãs tinham capturado a cidade aos ocupantes e, agora, podiam atender as necessidades da população. Para isso, precisavam da ajuda dos funcionários da autarquia, a quem deu o número de telemóvel pessoal — para que lhe pudessem telefonar se em algum momento os combatentes talibãs os importunassem.

O autarca repetiu a estratégia com vários setores da população. Cobriu as despesas dos lojistas que precisavam de mudar os bens armazenados nas instalações danificadas pela guerra, para evitar roubos; ordenou aos combatentes talibãs que oferecessem água e bónus financeiros aos trabalhadores do hospital; e pôs as empresas públicas de eletricidade e saneamento novamente a funcionar. A abordagem simpática deu resultados nos primeiros dias: as linhas elétricas voltaram a funcionar, as ruas ficaram desimpedidas e o hospital continuou a acolher pacientes.

Contudo, no decorrer da semana, a estratégia revelou-se ineficaz: a maioria dos trabalhadores da cidade mantinham-se, com medo, fechados em casa. O passo seguinte foi intensificar a mensagem, recorrendo ao medo. À porta do hospital foi colocado um cartaz ameaçador: todos os funcionários devem regressar ao trabalho; caso contrário, haverá punições por parte dos talibãs.

Os habitantes de Kunduz sentiram o terror. “Estou com medo, porque não sei o que vai acontecer ou o que eles vão fazer. Temos de sorrir para eles, porque estamos assustados. Mas, no fundo, estamos descontentes”, disse ao The New York Times um habitante, sob anonimato. “As pessoas estão assustadas, não estão felizes, e se alguém diz que as pessoas estão felizes, está a mentir. Toda a gente se questiona sobre o que vai acontecer ao seu futuro”, disse um outro funcionário público ao mesmo jornal.

Em poucos dias, o dispositivo de terror estava montado: 500 combatentes mantinham operacionais dezenas de checkpoints por toda a cidade. No hospital, os talibãs encontraram listas de contactos de todos os funcionários e começaram a telefonar e a bater às portas de todos os trabalhadores, exigindo-lhes o regresso ao serviço. Ao fim de alguns dias de abordagem ligeira, o novo presidente da câmara de Kunduz voltou a chamar os funcionários públicos ao edifício da autarquia, para uma reunião indiscutivelmente mais assustadora. Foram dadas indicações explícitas para que as mulheres que trabalhavam para o Estado não se apresentassem ao serviço e permanecessem em casa. Atrás do autarca, combatentes armados ditavam o tom pesado da declaração: a partir daquele momento, estava proibida a venda de bebidas alcoólicas e de carne não halal (alimentos puros segundo a religião islâmica; no caso da carne, refere-se a animais autorizados pela lei islâmica, abatidos por um muçulmano de acordo com rituais próprios).

"As pessoas estão assustadas, não estão felizes, e se alguém diz que as pessoas estão felizes, está a mentir. Toda a gente se questiona o que vai acontecer ao seu futuro."
Funcionário público afegão, ao The New York Times

O cenário de Kunduz encontra-se um pouco por todo o país, agora inteiramente sob controlo talibã.

Em Arghistan, junto à fronteira com o Paquistão, “todos estão aterrorizados”, disse à BBC um habitante da região, Jan Agha, de 54 anos. Ali, diz o homem, todos os residentes se trancaram em casa — mas isso não tem sido suficiente para escapar aos talibãs, que montaram postos de controlo por todas as vilas da província e têm demonstrado insistentemente o seu domínio sobre a região. Segundo os relatos recolhidos no local pela BBC, os combatentes ocupam as ruas e têm batido com frequência às portas dos habitantes para lhes exigir comida. “Agora, todas as casas têm três ou quatro pães ou pratos prontos para eles”, disse Jan Agha, explicando que os talibãs entram nas casas das pessoas sem enfrentar resistência para comer — até mesmo quando se trata das famílias mais pobres. Por medo, ninguém recusa comida aos combatentes.

O regresso da justiça medieval, vinte anos depois

Uma reportagem de sete minutos emitida esta segunda-feira pela CNN oferece uma das perspetivas mais privilegiadas para o interior da capital afegã, Cabul, dominada pelos talibãs: nas ruas, quase não se veem mulheres (e as poucas que se veem andam vestidas com nicabes ou burcas). Em sentido contrário, a esmagadora maioria dos transeuntes são, na verdade, combatentes talibãs que operam postos de controlo em todas as esquinas. Por outro lado, algumas crianças, maioritariamente rapazes, percorrem as ruas, curiosos com a agitação: como lembra a repórter Clarissa Ward, para muitos afegãos os talibãs são, na verdade, uma espécie de heróis.

Para a maioria, porém, representam o pior do fundamentalismo islâmico — e nada havia preparado o país para um regresso tão rápido dos extremistas ao poder.

Conscientes de que isto aconteceria mais tarde ou mais cedo, muitos afegãos dedicaram-se nas últimas semanas a obter o passaporte para tentarem abandonar o país. Contudo, o avanço veloz dos talibãs deixou milhares de afegãos presos no país sem passaporte, bilhete de avião ou acesso ao aeroporto, agora também controlado pelos extremistas. O fluxo de afegãos desesperados a tentar fugir do país tem-se traduzido em imagens dramáticas que mostram milhares de pessoas na pista do aeroporto tentando entrar nos poucos aviões — maioritariamente aparelhos militares norte-americanos — que ali estão. Alguns conseguiram mesmo agarrar-se à fuselagem dos aviões que descolavam e acabaram por morrer, alguns metros mais à frente, caindo dos aviões em pleno voo.

As imagens do caos no aeroporto de Cabul, onde há relatos de cinco mortos

Além do tratamento desumano que é dado às mulheres no regime fundamentalista islâmico erguido pelos talibãs, um outro aspeto deixa os afegãos aterrorizados com o futuro: o regresso do sistema judicial talibã.

Eles tomam decisões muito rapidamente em assuntos como o crime. Não há burocracia, não há regulações. Todo o tipo de problemas pode ser resolvido em poucos dias e ninguém pode questionar as decisões”, disse à BBC um taxista de Farkhar, no norte do Afeganistão, uma região já ocupada há vários dias pelos talibãs. Os crimes morais estão entre os mais graves e, embora esteja completamente capturado há menos de 24 horas, o país já mudou de rosto. “As pessoas costumavam ir a festas às sextas-feiras à noite, ouvir música e dançar, divertir-se. Tudo isso está completamente banido agora.”

No que toca ao funcionamento do sistema judicial, e apesar das promessas dos talibãs relativamente à implementação de um regime moderado, não subsistem dúvidas sobre um conjunto de práticas que vão mesmo regressar ao quotidiano dos afegãos. Recentemente, numa entrevista à BBC, um dos principais comandantes talibãs explicou que as punições para o crime estão “claramente expressas no Alcorão” e deu exemplos: “Se alguém rouba, há uma punição. Por exemplo, para alguns roubos a punição é o corte da mão e do pé. E se alguém cometer adultério, então deverá ser apedrejado.”

Na mesma entrevista, esse comandante reafirmou o que o movimento pensa sobre os direitos das mulheres e o acesso das raparigas à educação: “Nem uma rapariga foi à escola nas nossas vilas e distritos, porque a nossa área é muito remota. As instalações não existem, e nós nem sequer o permitiríamos.”

Talibãs governaram Afeganistão com mão de ferro entre 1996 e 2001

É preciso recuar pelo menos até ao início da década de 1970 para compreender o contexto geopolítico que permitiu o surgimento e crescimento dos talibãs. Em 1973, o ex-primeiro-ministro afegão Mohammed Daoud Khan protagonizou um golpe de Estado que derrubou a histórica monarquia afegã — que desde o século XVIII estivera organizada sob a forma de impérios, emirado e reino —, depondo o último Xá do Afeganistão e autoproclamando-se como o primeiro presidente do país. Em plena Guerra Fria, Daoud Khan recebeu inicialmente algum apoio da União Soviética, mas acabaria mais tarde por afrouxar esses laços e por ser morto num novo golpe de Estado, em 1978 — a chamada revolução de Saur —, protagonizada pelos partidos comunistas.

A revolução comunista transformou consideravelmente o Afeganistão, promovendo avanços significativos nos direitos políticos das mulheres e acabando com práticas oriundas da lei islâmica, como os casamentos forçados.

Porém, intervenções como a reforma agrária ou a recusa de qualquer influência religiosa nas regras da sociedade motivaram grande resistência às ideias comunistas entre o povo afegão, sobretudo entre a população rural e as tribos pachtuns, significativas no país. Esta tensão abriu portas à entrada da União Soviética no Afeganistão, em 1979, e à guerra com os combatentes islâmicos conhecidos como mujahideen, ou “defensores da fé”. Durante uma década, os mujahideen foram treinados e financiados pelos Estados Unidos para combaterem as tropas soviéticas, que viriam a sair do país em 1989, abrindo espaço para uma guerra civil que dilacerou ainda mais o país.

Como em apenas três meses os talibãs conseguiram entrar em Cabul e derrubar o governo afegão

Foi no contexto dessa guerra civil que, no início da década de 1990, surgiu na cidade de Kandahar, no sul do Afeganistão, o movimento talibã. Fundado originalmente pelo mulá Mohammad Omar, formado nas fileiras fundamentalistas do Islão sunita, o movimento começou como um grupo de poucas dezenas de estudantes islâmicos das madrassas radicais, onde se respirava o ar do revivalismo islâmico surgido nos anos 1970 em reação ao Ocidente — a palavra “talibã” significa, precisamente, “estudantes” —, descontentes com a falta de implementação estrita da lei islâmica, a “sharia”, depois da retirada soviética.

Apostados em acabar com a guerra civil e em impor a lei islâmica, o movimento cresceu rapidamente e, em 1996, obteve o controlo do país, dando início a um regime brutal, opressor das mulheres e totalmente baseado na interpretação literal do Alcorão. Foi nesse Afeganistão que Osama bin Laden encontrou refúgio, orquestrando o atentado de 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gémeas, em Nova Iorque. Na sequência do atentado, os EUA invadiram o Afeganistão, derrubaram o poder dos talibãs e impuseram um novo regime.

Durante duas décadas, a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão foi uma promessa adiada, concretizada agora depois de os EUA terem negociado diretamente com os talibãs os contornos da retirada. Em abril deste ano, Joe Biden disse aos norte-americanos que a guerra mais longa dos EUA chegara finalmente ao fim e, em julho, a principal base aérea norte-americana no Afeganistão foi esvaziada e entregue ao governo afegão. Na sequência da retirada norte-americana, os talibãs tomaram o controlo de todo o país em menos de dois meses, derrotando rapidamente as forças armadas afegãs, que não tiveram capacidade de resistir aos avanços dos fundamentalistas islâmicos.

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