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Ana Paula Martins, futura presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte, que inclui o maior hospital do país — o de Santa Maria — terá de pedir escusa nas decisões que envolvam as relações comerciais daquela instituição com a Gilead Sciences quando começar a exercer funções.
É assim porque a farmacêutica é atualmente diretora dos Assuntos Governamentais em Portugal da Gilead, que vende fármacos ao centro hospitalar do qual em breve será presidente do conselho de administração.
Ana Paula Martins, que também foi bastonária da Ordem dos Farmacêuticos desde 2016 até à eleição de Hélder Mota Filipe em fevereiro deste ano, foi apontada para a presidência do novo conselho de administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte a 6 de dezembro.
Apesar de a passagem do cargo de direção numa farmacêutica para o conselho de administração do centro hospitalar não constituir uma incompatibilidade à luz da lei, como confirmou ao Observador o advogado especialista em contratos administrativos João Gaspar Simões, deverá sempre haver um pedido de escusa de intervenção por parte da responsável quando em causa estiverem as relações com a sua antiga empresa.
Não poderá decidir sobre temas que envolvem farmacêutica, dizem advogados
Por partes: há um período de nojo de três anos que se impõe a quem tenha exercido funções públicas antes de entrar no setor privado na área em que antes trabalhava. Mas não existem regras no sentido contrário — ou seja, para quem sai do privado e vai assumir funções públicas —, aplicando-se apenas as leis do procedimento administrativo.
No entanto, os juristas e advogados consultados pelo Observador defendem que, no caso em concreto, Ana Paula Martins deverá pedir escusa em processos relacionados com a Gilead para salvaguardar a sua idoneidade.
Em declarações ao Observador, Paulo Veiga e Moura, advogado especialista em Direito Administrativo, considera que “enquanto presidente” do conselho de administração, Ana Paula Martins “não poderá decidir qualquer assunto para a empresa para que antes trabalhou”. João Gaspar Simões defende também que “não existirá nenhum impedimento à nomeação”, ainda que “não possa naturalmente estar envolvida em qualquer questão que tenha que ver com a anterior entidade pagadora”.
Já Miguel Prata Roque, jurista perito em direito administrativo e ex-secretário de Estado da Presidência de António Costa (entre 2015 e 2017), também acredita que nada impede Ana Paula Martins de ser presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte — afinal, para chegar a um cargo dessa magnitude, é necessário ter um percurso profissional significativo anteriormente; e é natural que ele passe pelo setor privado. Mas “deve abster-se em qualquer situação que suscite dúvidas”. “Pode não haver suspeição nenhuma, mas assim protege a sua idoneidade”, remata.
Regras do hospital (e lei) determinam escusa em casos relacionados com a Gilead
As limitações às funções de Ana Paula Martins enquanto presidente do conselho de administração no que toca a assuntos relacionados com a Gilead já estão enquadradas eticamente em dois instrumentos do próprio Centro Hospitalar Lisboa Norte: o Código de Conduta Ética, de 2015, e o Plano de Gestão de Riscos de Corrupção e Infrações Conexas, de 2016. Ambos tornaram-se obrigatórios em todas as entidades em dezembro de 2021; e o último deve ser atualizado de dois em dois anos.
Comecemos pelo primeiro. O ponto 3.2 determina que todos os colaboradores do centro hospitalar “devem ser imparciais e isentos nos seus atos, decisões, juízos e opiniões e pautar a sua conduta por elevados padrões de rigor, objetividade e imparcialidade, cumprindo as suas obrigações com zelo e sentido de responsabilidade, procurando a excelência do desempenho e prestigiando a Instituição em todas as circunstâncias”.
Mas o ponto 8 é ainda mais claro quando diz que “os colaboradores devem evitar qualquer situação suscetível de originar, direta ou indiretamente, conflito de interesses, a qual, a verificar-se, tem de ser comunicada, logo que possível, ao superior hierárquico”. Quando é que existe conflito de interesses? “Sempre que os colaboradores tenham interesse em matéria que possa influenciar, ou aparentar influenciar, o desempenho imparcial das suas funções”.
De acordo com Miguel Prata Roque, este último ponto apenas repete o que já está em dois momentos no Código do Procedimento Administrativo: em primeiro lugar, no artigo 69º, que explicita as ocasiões em que um titular de órgãos da administração pública não pode automaticamente intervir num procedimento administrativo, ato ou contrato de direito.
A alínea d) — que diz que o titular não pode envolver-se se “tiver intervindo no procedimento como perito ou mandatário ou hajam dado parecer sobre questão a resolver” — pode referir-se ao caso de Ana Paula Martins. Porque, como diretora dos Assuntos Governamentais em Portugal da Gilead Sciences, poderá ter contactado com membros do Executivo e com o próprio centro hospitalar na qualidade de representante da farmacêutica.
Em segundo lugar, no artigo 73º, que descreve as ocasiões em que essas pessoas devem “pedir dispensa de intervir”. Mas que se resumem a um contexto: sempre que “ocorra circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão”.
Aqui, podem aplicar-se duas alíneas. A alínea c) refere-se a casos de “recebimento de dádivas, antes ou depois de instaurado o procedimento”, mas não define o que são essas “dádivas”: na lei, está definido o que são “doações” (recebimentos que não tiveram contrapartida), mas não a expressão que surge neste ponto. E por isso, no limite, podem considerar-se “dádivas” as indemnizações, prémios de produtividade ou mesmo os salários que Ana Paula Martins recebeu da Gilead. “Pode ser fundamento para escusa, embora isso esteja aberto a interpretações”, admite Prata Roque.
A outra alínea é a d) e diz: “Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o titular do órgão ou agente, ou o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, e a pessoa com interesse direto no procedimento, ato ou contrato”. Mais uma vez, o termo “grande intimidade” fica aberto a interpretações, mas “dificilmente enquadramos aqui uma relação profissional anterior”, considerou o jurista entrevistado pelo Observador.
A este enquadramento legal junta-se ainda o ponto 12 do Código de Conduta Ética, sobre o combate à fraude e corrupção. O documento diz que, “no estabelecimento de relações negociais em nome do CHLN ou em qualquer das suas atividades no CHLN, os colaboradores devem observar sempre os princípios de independência e isenção. Aos colaboradores é vedado utilizar abusivamente a informação privilegiada a que tenham acesso no desempenho das suas funções”. Por outras palavras, e na interpretação de Roque Prata, “se houver relações privilegiadas, a nova presidente não deve participar em negociações”.
O Plano de Gestão de Riscos de Corrupção e Infrações Conexas também refere regras para evitar incompatibilidades em casos como este. Aliás, num dos anexos do documento, listam-se os riscos de corrupção e infrações associados a cada um dos órgãos do centro hospitalar. E, no que diz respeito ao conselho de administração, admite-se que existe a possibilidade de “quebra do sigilo e divulgação de informação” e de “manipulação de informação para benefício de terceiros ou próprios”.
A questão coloca-se no caso de Ana Paula Martins por poder — em teoria e hipoteticamente — ceder informações à Gilead ou manipular cadernos de encargos para beneficiar a farmacêutica, por exemplo. Mas o centro hospitalar tem dois mecanismos para evitar situações destas: a “colegialidade plena da decisão” e a revisão e assinaturas das atas por todos os membros do Conselho presentes nas reuniões. Ou seja, Ana Paula Martins nunca poderá decidir sozinha sobre nenhum tema e todas essas deliberações têm de ser aprovadas pelos restantes membros do conselho de administração.
De resto, e segundo estes documentos, as decisões relativas à aquisição de bens e serviços (em que se incluem os fármacos), não parecem recair sobre o conselho de administração: a gestão de compras é responsabilidade do diretor de serviço, que fica obrigado à “justificação da necessidade de aquisição”, “qualificar e selecionar os melhores fornecedores” e ao “planeamento adequado das atividades a desenvolver em termos de compras anuais”, entre outras funções, para evitar casos de corrupção.
Nestas circunstâncias, aplicando-se estas regras, Ana Paula Martins consegue fintar melhor eventuais suspeições sobre a sua idoneidade e independência em relações a negócios relacionados com a Gilead: afinal, a decisão sobre que fornecedores contratar (e para que fins) recai sobre o diretor de serviço. Ainda assim, todos os juristas e advogados consultados pelo Observador consideram que, na qualidade de presidente do conselho de administração, Ana Paula Martins terá de pedir escusa de decisões finais relativas a esta farmacêutica para evitar quaisquer dúvidas sobre uma intervenção nos negócios do CHLN com a Gilead.
“Na prática, no exercício destas funções, Ana Paula Martins tem de colocar sempre duas interrogações: ‘Estou impedida de estar envolvida nestas questões? E mesmo que não esteja, pode alguém duvidar da minha isenção?’. Se a resposta for sim, com estes contratos concretos, está sujeita a pedir escusa”, resumiu Miguel Prata Roque.
Idoneidade vai ser avaliada por Pizarro, CReSAP atesta competência técnica
Ainda não há data oficial para a entrada da ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos no centro hospitalar, mas o Observador sabe que a nova equipa liderada por Ana Paula Martins deve entrar em funções já em janeiro. De resto, o processo pode ser longo e demorar alguns meses: enquanto Manuel Pizarro, na qualidade de ministro da Saúde, verifica a “idoneidade” do nome sugerido pela Direção Executiva do SNS, a Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP) confere se Ana Paula Martins reúne as competências técnicas necessárias para o cargo. A haver luz verde de ambas as avaliações, o nome é então proposto em Conselho de Ministros e, a ser aprovado, apresentado em resolução.
Isso mesmo foi explicado em comunicado de imprensa por fonte oficial do centro hospital no dia em que se soube da não recondução do atual conselho de administração e do convite endereçado a Ana Paula Martins para substituir Daniel Ferro na presidência. E está em conformidade com o Estatuto do Gestor Público, que se aplica no caso do Centro Hospitalar Lisboa Norte por ser uma entidade pública empresarial (EPE) — as restantes empresas públicas obedecem antes ao Código das Sociedades Comerciais.
TC declara constitucionalidade e legalidade das alterações ao Estatuto do Gestor Público
O artigo 12º do Estatuto indica que “os gestores públicos são escolhidos de entre pessoas com comprovadas idoneidade, mérito profissional, competências e experiência de gestão, bem como sentido de interesse público e habilitadas, no mínimo, com o grau académico de licenciatura”: “É competência do membro do Governo responsável pelo respetivo setor de atividade a definição do perfil, experiência profissional e competências de gestão adequadas às funções do cargo, dos quais deve informar a CReSAP”.
A comissão, por sua vez, está obrigada à “definição, por regulamento, dos critérios aplicáveis na avaliação de candidatos a cargos de gestor público, designadamente, as competências de liderança, colaboração, motivação, orientação estratégica, orientação para resultados, orientação para o cidadão e serviço de interesse público, gestão da mudança e inovação, sensibilidade social, experiência profissional, formação académica e formação profissional”.
“Anterior atividade não a coloca em causa, mas é preciso prudência”, diz ex-ministro
Adalberto Campos Fernandes, ex-ministro da Saúde, admite que Ana Paula Martins peça para não estar implicada em casos relacionados com a Gilead por uma questão de prudência. E reforça que nada aponta para uma incompatibilidade que vede o cargo da presidência do conselho de administração à ex-bastonária, acredita o ex-governante, “sobretudo conhecendo os seus antecedentes”: “A sua atividade profissional não coloca em causa o valor dela, pelo contrário”.
Adalberto Campos Fernandes alerta mesmo para o “momento perigoso” que se vive atualmente, “em que toda a gente parece desconfiar em toda a gente”: “Paga o justo pelo pecador. Uma coisa é ser julgado, do ponto de vista ético, por atos que praticou. Outra coisa é fazer juízos de valor e de intenção”.
A Gilead é a farmacêutica com que o Centro Hospitalar Lisboa Norte mais dinheiro tem gasto em encomendas, segundo os relatórios de contas disponibilizados na página da instituição, embora nem todos mencionem os valores das encomendas realizadas com as farmacêuticas ao longo do ano. Desde 2019, ano da entrada do atual conselho de administração no centro hospitalar, e até 2021 deixa de constar explicitamente nos relatórios de contas que valor se destinou às nove farmacêuticas que mais produtos venderam ao Centro Hospitalar Lisboa Norte.
O top das farmacêuticas que mais vendiam ao Lisboa Norte até 2019
Os documentos anteriores, porém, comprovam essa relação negocial. Em 2012, foram mais de 15,2 milhões de euros, que é 3,8 milhões de euros acima do segundo posicionado — a Roche. No ano seguinte, a Gilead volta a surgir em primeiro lugar com um total de encomendas que ascende a quase 11,7 milhões de euros, longe do segundo lugar da Janssen por 3,1 milhões de euros.
O fenómeno repete-se em 2014: a Gilead voltou a ser a farmacêutica a quem o Centro Hospitalar Lisboa Norte mais pagou por medicamentos, seguida da Janssen. Aliás, os valores em 2014 são exatamente os mesmos que os de 2013 para as nove maiores vendedoras de medicamentos ao centro hospitalar: foram 11.739.626,21 para a Gilead e 8.592.983,04 para a Janssen.
Em 2015, os valores não só mudam, como disparam para a Gilead: arrecadou mais de 21 milhões de euros do Centro Hospitalar Lisboa Norte, que reservou menos de 10 milhões de euros à Janssen, que volta a estar na segunda posição. No ano seguinte, o centro hospitalar pagou 15,3 milhões de euros à Gilead e 9,7 milhões à Janssen.
Em 2017, 11,2 milhões de euros saíram do Centro Hospitalar Lisboa Norte para a Gilead (em segundo lugar estava novamente a Janssen com 10,7 milhões). Em 2018, no entanto, a Gilead deixa de ser a farmacêutica que mais dinheiro recebeu do maior centro hospitalar de Portugal: o primeiro lugar, com 14,4 milhões de euros, passa a Janssen; e a Gilead desce para a terceira posição com 7,9 milhões de euros. Entre uma farmacêutica e outra ficou a Pfizer, com 10,8 milhões de euros.
Adalberto Campos Fernandes aponta ao Observador uma das possíveis explicações para a Gilead Sciences ser a principal fornecedora de medicamentos ao centro hospitalar Lisboa Norte — ora por venda direta, ora através da ACSS. É que alguns dos medicamentos mais eficazes para tratar os casos de infeção pelo vírus da sida, uma área em que a instituição é das principais referências a nível nacional, são dessa farmacêutica.
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Para o ex-governante, o facto de Ana Paula Martins se poder abster de temas relacionados com a Gilead não simboliza uma entrave significativa às suas funções, porque quem decide na prática que medicamentos comprar e a quem são os diretores de serviço. O conselho de administração entra no processo já na reta final, para aprovar essas aquisições — mas, nessa fase, há mecanismos para evitar eventuais abusos de poder.
Ministério da Saúde garante que serão cumpridos “requisitos legais”
Questionado pelo Observador, o Ministério da Saúde — que tutela a Direção Executiva do SNS, a entidade dirigida por Fernando Araújo e que convidou Ana Paula Martins para este cargo — não respondeu diretamente às perguntas sobre se o Governo entende haver alguma incompatibilidade nesta situação, se haverá alterações à forma como serão adquiridos os fármacos da Gilead Sciences ou se vão ser implementados mecanismos para que a nova presidente não tenha intervenção nesses processos.
Fonte oficial do ministério liderado por Manuel Pizarro limitou-se a responder que “o processo de nomeação do novo conselho de administração do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte está em curso, cumprindo todos os requisitos legais” e que, como continua em curso, “ não há mais informação a partilhar”. A Direção Executiva do SNS também recusou comentar o assunto, argumentando que a nomeação será feita pelo Governo, apesar de Ana Paula Martins ter sido escolhida por Fernando Araújo.
As mesmas perguntas foram endereçadas ao Centro Hospitalar Lisboa Norte, que também foi questionado sobre que percentagem dos fármacos da Gilead Sciences são vendidos diretamente à instituição, sem ser através da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Mas o centro hospitalar afirmou que não iria prestar esclarecimentos sobre o tema, dado que Ana Paula Martins ainda não tomou posse como presidente do conselho de administração.