As histórias repetem-se em vários setores. Com a subida contínua do salário mínimo, as empresas são empurradas para aumentar os níveis salariais que vêm a seguir para manter alguma diferenciação nos ordenados. No entanto, este esforço pode ser contraproducente porque há aumentos salariais brutos que implicam mais gastos para o empregador, mas que resultam em rendimentos mais baixos para o trabalhador beneficiado.
As projeções feitas para o Observador pelo fiscalista Luís Leon, especialista em IRS da consultora Ilya, confirmam a perda de rendimento por via do imposto em caso de aumentos salariais para patamares que estão imediatamente acima do salário mínimo. A perda é tanto mais relevante quanto menores são as deduções que o trabalhador pode apresentar e que reduzem o valor da coleta. A penalização do rendimento líquido por via do IRS a partir de salários acima do mínimo de existência é maior para quem não tem deduções ou apenas pode contar com a dedução de 250 euros para despesas gerais. Basta juntar um filho à equação — que pode valer uma dedução de 600 euros ao rendimento tributável — para o contribuinte evitar um rendimento líquido inferior ao que é auferido pelo trabalhador protegido pelo mínimo de existência.
A distorção acontece por causa da lógica progressiva do próprio imposto, mas também pela aplicação de um travão ao rendimento que conta para o IRS. Esse travão é o mínimo de existência, um rendimento base que está a salvo do IRS e que tem acompanhado a trajetória de subida do salário mínimo desde 2018. Esta evolução permite libertar mais pessoas do pagamento de imposto sobre o rendimento, mas agrava a distorção face aos que ganhando um pouco acima do salário mínimo têm uma franja dos seus ganhos sujeita a uma taxa que começa em 14%.
O rendimento bruto que ultrapassa esse limiar, e portanto fora da proteção do mínimo de existência, acaba por ser apanhado pelo IRS. O segundo fator de penalização é o das contribuições para a Segurança Social que não são progressivas, nem têm qualquer mínimo de rendimento isento. Todos os trabalhadores pagam 11% do salário bruto para a Segurança Social e quando o salário bruto aumenta esta contribuição sobe na mesma proporção.
Com este efeito, os aumentos salariais podem ter um impacto perverso no rendimento. Em vez de receber mais, o beneficiado recebe menos. A penalização é mais sentida no final de cada mês, porque as tabelas de retenção não são progressivas, mas há casos em que a perda de rendimento acontece mesmo depois dos acertos finais com a liquidação anual de imposto.
Esta situação sempre aconteceu, mas não tinha a mesma dimensão porque o mínimo de existência era superior ao salário mínimo, explica ao Observador o fiscalista Luís Leon da consultora Ilya. Em 2015, o mínimo de existência correspondia a 120% do salário mínimo e essa almofada dava margem para que os que fossem aumentados a partir do salário mínimo continuassem a não liquidar o imposto. Com a nivelação dos dois valores, que aconteceu nos governos de António Costa, essa margem desapareceu.
Distorção fiscal apanha mais de 200 mil agregados
Para além da injustiça fiscal, este efeito perverso também pode limitar a cadeia de valorizações salariais que se pretende promover com o aumento sistemático do salário mínimo. De acordo com uma análise feita no Governo para a negociação do Orçamento do Estado de 2022, apurou o Observador, esta distorção no IRS apanha já mais de 200 mil agregados. Um número que levou os socialistas a estudarem uma solução para resolver o problema destes contribuintes, reduzindo o rendimento sujeito a tributação neste grupo. Essa solução é referida no programa que o PS leva a eleições, embora sem detalhes.
Durante o debate televisivo com o candidato da Iniciativa Liberal, António Costa foi confrontado por João Cotrim de Figueiredo com o exemplo do José que ganha 800 euros e cuja empresa quer aumentá-lo para 900 euros. “Dá-lhe mais cem euros de aumento, mais os encargos sociais (paga mais 24 euros de TSU). A empresa paga mais 124 euros por aquele trabalhador, mas desses 124 o José só recebe 66, os outros 58 euros vão para o Estado que fica com quase metade”.
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O primeiro-ministro respondeu: “Temos de subir de forma significativa os níveis de rendimento. Claro que o Estado pode dar uma ajuda [sobre o impacto fiscal de saltar de escalão por via de aumentos salariais]. Tínhamos uma nota técnica no Orçamento do Estado para que esses aumentos salariais não fossem consumidos pela mudança de escalão”.
A solução que o Governo PS estudou para corrigir o problema
O Observador não conseguiu encontrar a norma técnica a que se referia António Costa na proposta orçamental que ficou pelo caminho, mas confirmou que existia a intenção de negociar à esquerda uma solução para neutralizar este efeito perverso do IRS nos rendimentos mais baixos caso fossem aumentados. Essa proposta, que deverá voltar à mesa das negociações caso o PS forme novo Governo, implica cortar a tributação sobre mais uma fatia do rendimento que está sujeita a imposto. Um caminho possível é criar ou reforçar a dedução específica no primeiro escalão de forma a libertar uma parte mais substancial do salário bruto da incidência do imposto. Atualmente essa dedução é de 4.104 euros a que se somam deduções à coleta de 250 euros obtidas através de gastos gerais.
Mas para que a correção abranja apenas os que atualmente são penalizados, essa dedução não poderia ter o mesmo valor para todos os rendimentos. Teria que ser regressiva (ou seja ir reduzindo à medida que o rendimento sobe) e seria limitada ao primeiro escalão de rendimento onde o problema se coloca, até para evitar uma perda de receita em todos os contribuintes.
Para o fiscalista Luís Leon é irrelevante qual a solução técnica que permitirá não pagar o imposto: seja uma taxa zero, sejam deduções ou seja o mínimo de existência.
“O que importa é existir um montante de rendimento que não paga imposto e perceber se isso é para todos ou não. Se for para todos, então implicará uma perda de receita significativa. Se não for, o problema da penalização fiscal, que se tenta resolver, passa para a franja de rendimentos que vem depois dos abrangidos por esse novo travão”, sublinha o especialista em IRS.
Mas introduzir uma dedução para apenas um escalão ou regressiva consoante o rendimento “seria um mecanismo obtuso que nunca existiu antes no IRS e criado para corrigir um problema que resulta de a partir de 2016 (formalizado no Orçamento do Estado de 2018) não se ter mantido a regra que estabelecia um mínimo de existência superior em 20% ao salário mínimo”, acrescenta o fiscalista.
Indexante dos Apoios Sociais (IAS), garantindo, assim, uma frequente atualização do montante do
mínimo de existência, ao invés de definir o seu valor concreto no Código do IRS. Introduz-se, também,
uma cláusula de salvaguarda por forma a garantir que em resultado da aplicação desta nova fórmula
nunca possa resultar que o mínimo de existência seja inferior ao valor anual da retribuição mínima
mensal garantida.
Luís Leon admite que essa regra tenha ficado pelo caminho por causa do impacto que teria na receita do IRS à medida que o salário mínimo aumentou nos últimos anos. Se se tivesse mantido essa folga o número de contribuintes que ficava livre de pagar o imposto seria muito mais significativo.
O IRS começa a ser cobrado a partir de um limiar que em 2021 estava nos 9.315 euros anuais, mas que em 2022 vai subir para os 9.870 à boleia do mais recente aumento do salário mínimo.
Para Luís Leon, a política de valorização do salário mínimo nacional (SMN) por decisão política e desligada da produtividade e da inflação tem criado mais dificuldades às empresas em valorizar os salários que vêm a seguir à retribuição mínima, o que tem contribuído para estreitar o gap entre o SMN e o salário médio ou mediano.
Empresas condicionam aumentos para evitar efeito IRS
E tem sido um crescente condicionamento da política de atualizações salariais das empresas. Ainda esta semana, o grupo de engenharia e construção DST, candidata à compra da Efacec, anunciou que iria subir o salário mínimo pago na empresa para os 740 euros, mais subsídio de alimentação e outros benefícios, acima dos 705 euros do salário mínimo nacional.
Em esclarecimentos prestados ao Observador, José Machado, diretor de recursos humanos da DST, garantiu que com este aumento nenhum trabalhador perderia valor líquido no seu rendimento. E acrescentou que a empresa teve em consideração o risco de perda por via fiscal quando fixou o valor de 740 euros, “de forma a que nenhum trabalhador, independentemente do seu estado fiscal, ficasse a receber menos valor líquido com o ajuste”. Dos 2300 trabalhadores da DST, 10% têm este salário mínimo, indica.
O calçado foi uma das indústrias que já fez chegar ao Governo e partidos a preocupação sobre o tema. O diretor de comunicação da APICCAPS (Associação Portuguesa da Indústria de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e Sucedâneos), Paulo Gonçalves, refere ao Observador que são por vezes os trabalhadores e sindicatos a alertar as empresas para este risco quando estão em jogo negociações salariais ou acordos de empresa. O mesmo problema pode dissuadir os trabalhadores de fazerem horas extraordinárias. Num setor sazonal, que trabalha muito com picos de encomendas, como é o do calçado, às vezes é necessário fazer mais uma ou duas horas extra para cumprir prazos, mas esse tempo acaba por não se traduzir num ganho de rendimento líquido.
A revista Sábado conta a história de um gestor de um empresa de refeições congeladas que quando decidiu aumentar os trabalhadores com salários mais baixo foi confrontado com um resultado inesperado: “Vários vão passar a receber menos no final do mês”. Uma parte desta contradição é explicada pelas tabelas de retenção do IRS, um fenómeno que também apanhou alguns pensionistas de surpresa quando em janeiro se confrontaram com um valor líquido inferior ao que recebiam apesar dos aumentos aplicados em 2022 e que o Governo prometeu corrigir ajustando as tabelas de retenção. O mesmo pode acontecer com os funcionários públicos.
Tabelas do IRS vão ser corrigidas para salvaguardar aumento líquido das pensões
O programa socialista para as legislativas continua a apostar forte na subida do salário mínimo, mas com uma ressalva para as implicações desta política no IRS.
Tendo em conta a intenção do PS de promover na Concertação Social a negociação de um acordo de médio prazo de melhoria dos rendimentos dos salários e da competitividade, serão efetuados os ajustamentos necessários à estrutura deste imposto. Assim será feita a redução progressiva das taxas do IRS para todos os que venham a beneficiar dos aumentos de rendimento no quadro do referido acordo (para melhoria dos rendimentos de salários e produtividade) em sede de Concertação Social a fim de assegurar a neutralidade orçamental da melhoria do rendimento dos portugueses.”
Sem entrar em pormenores, este parágrafo aborda a questão do impacto fiscal de todos os aumentos salariais e não apenas daqueles que incidem sobre os rendimentos mais baixos, para além do efeito líquido que uma valorização salarial pode ter no vencimento mensal que chega à conta do colaborador, caso salte para um escalão de rendimento mais taxado. Para estes casos, a solução passará por mexer nas tabelas de retenção ajustando-as à inflação, mas também aos salários previstos e respetivos aumentos — um modelo mais próximo do seguido em Espanha — ou por fazer ajustamentos cirúrgicos nos limites de intervalo de cada escalão.
O Orçamento do Estado que o PS quer relançar se formar Governo previa já várias mexidas neste imposto como o IRS Jovem e o desdobramento de 7 para 9 escalões, medida que iria custar 200 milhões de euros, beneficiando mais de um milhão de contribuintes, segundo números divulgados em outubro.