Aos nove anos de idade, Maria José calçou uns sapatos pela primeira vez e trocou a vida difícil do peixe da Praia da Torreira, em Aveiro, pela carne da grande cidade. Destino: o talho do Mercado de Campo de Ourique, em Lisboa, onde ainda trabalha, fez em setembro 60 anos. Maria José é uma das comerciantes que fez a transição do velho mercado municipal, fundado em 1934, para o renovado Mercado de Campo de Ourique, que depois de sofrer obras cedeu parte do espaço para a abertura de 22 tasquinhas gourmet e 280 lugares sentados, a 26 de novembro de 2013. Esta semana, começaram as comemorações do primeiro ano do novo projeto, que culmina com uma festa a 6 de dezembro, animada por momentos musicais, workshops em cada quiosque e degustações. Motivos para festejar não faltam.
Passado um ano, é tempo de fazer contas à nova vida do mercado. “Não tínhamos bem definida uma expetativa, mas acreditávamos muito no conceito. A meta era pôr isto a funcionar e conseguimos”, disse ao Observador Diogo Sousa Coutinho, que administra as tasquinhas em conjunto com David Igrejas e João Cota Dias. As bancas de flores, frutas, legumes, peixe e carne continuam a ser geridas pela Câmara Municipal de Lisboa (CML). Os três sócios viram o concurso público lançado pela CML, em que já estava estipulado o que se pretendia para o mercado, e gostaram da ideia, ainda que fosse necessário investir nas obras de renovação. “Eu vinha cá há dois, três anos e via que o mercado tinha os dias contados. Os lojistas cada vez eram menos, as pessoas estavam desanimadas. Isto [a zona de tasquinhas] realmente veio dar uma força, energia e vida a estes comerciantes que estão aqui há 50 e 60 anos”, disse Diogo Sousa Coutinho.
João Cota Dias diz que há muitos pedidos em lista de espera por um lugar na praça da alimentação do mercado. No entanto, nas extremidades, veem-se algumas bancas vazias. “Os espaços livres são da Câmara Municipal de Lisboa. Os geridos pela nossa sociedade estão completamente cheios”, esclareceu. Quando concorreram, queriam tomar conta de todo o espaço, mas só ganharam 22 dos cerca de 70 lugares disponíveis. Recentemente, conseguiram mais quatro bancas tradicionais e mais duas lojas, na fachada, onde vão abrir uma confeitaria e padaria, e, também, uma garrafeira que só irá vender para fora do mercado. João Cota Dias estima que esta última abra até 1 de dezembro, a tempo do Natal.
Desde que o Mercado de Campo de Ourique abriu, há um ano, que alguns negócios se modificaram. Foi para mostrar as novidades que os três sócios marcaram encontro com os jornalistas, esta quarta-feira. Aos mariscos, hambúrgueres, empadas, petiscos portugueses, leitão, brigadeiros, ovos moles, sumos e bebidas espirituosas, entre outros, juntou-se na Páscoa uma banca de frutos secos onde não faltam bagas goji, tâmaras, macadâmia e amendoim picante. Há 15 anos, os três sócios queriam criar melancias sem sementes. Acabaram por criar um negócio chamado Prime Seeds e a vender sementes no mercado a uma clientela que já é fiel. O produto de maior sucesso são as amêndoas caramelizadas, contou ao Observador Nuno Sampaio, um dos sócios. À venda está, também, uma granola que os clientes podem personalizar na hora. A banca de frutos secos não tem forno, mas usa o da panificadora ali ao lado. “Há muita entreajuda”, disse.
A Carpacceria, de Inês Simas, por exemplo, compra o peixe e o pão no próprio mercado para fazer as bruschettas e wraps de salmão e atum. Natural de Campo de Ourique, Inês já fazia compras no mercado e está entusiasmada com a expansão da sua banca de carpaccios que, em setembro, passou também a vender tártaros de novilho e mistos asiáticos, crus ou braseados, sempre acompanhados por salada. “São refeições completas e saudáveis” entre cinco e oito euros, explicou.
Perto da nova banca de compotas e ao lado das tradicionais conservas fica “a primeira mercearia fina algarvia de Lisboa”, como explicou Sónia Pires, co-criadora da Algarviada. Sem se conhecerem, os pais de Sónia deixaram o Algarve e acabaram por se conhecer no bairro de Campo de Ourique. Foi ali que Sónia cresceu e, em março, abriu no mercado uma banca onde reúne o melhor da gastronomia algarvia. Há mel, dom rodrigos, frutinhos, o bolo três delícias e bombons de fabrico próprio com sabores como pólen, amêndoa, flor de sal DOP, figo, amêndoa e alfazema.
Há três anos, eram poucos os que frequentavam o mercado. Com a renovação, desde novembro de 2013 o Mercado de Campo de Ourique recebeu mais de meio milhão de visitas.
Uma das preocupações foi criar mais espaços de bebidas. Para além das Cervejas do Mercado, agora há, também, as Cervejas do Mundo, que abriram em agosto para dar a provar sabores diferentes aos clientes. Em destaque estão as três variedades de cidras, das mais amargas às mais doces. “Está na moda”, confirma o responsável. Mas também há cerveja belga duplamente fermentada e, claro, as marcas internacionais mais populares, como a Guinness e a Budweiser. Na Champanheria a especialidade são os champanhes e espumantes e na Jarraria, como o nome indica, servem-se bebidas a jarro.
Na banca do Chef do Mercado começaram, em novembro, a ser vendidas tapas e pinchos espanhóis, para suprir uma necessidade identificada. Até porque a maioria dos turistas que visitam o espaço são espanhóis. Há doces e salgadas, de peixe ou de carne, entre um euro e um euro e meio. Também há os obrigatórios acompanhamentos de pimentos padrón e batatas bravas, a dois euros, e pratos do dia por 6,50 euros. Ali ao lado, na Charcutaria Lisboa, também há uma novidade para o tempo mais frio: a raclette, queijo suíço derretido. Os legumes usados na confeção são adquiridos no mercado. “Ajudamo-nos uns aos outros”, conta Ruben Silva.
No primeiro ano de atividade, houve 530 mil visitas, mas o objetivo é o de duplicar o número. “A nossa aposta agora é trazer mais turistas para este bairro típico de Lisboa”, contou Diogo Sousa Coutinho. Os momentos musicais também vão continuar a animar o espaço.
Salvação dos mercados?
Os 60 anos a trabalhar naquele talho conferem a Maria José o discurso vivo da mudança dos tempos. Já não se matam e esfolam animais nas próprias bancas, nem se aceita que uma criança de nove anos não tenha como único trabalho a escola. Mas o mercado também já não é o centro das compras familiares. “Antigamente não havia os supermercados e isto era uma família. Com a abertura dos supermercados começou tudo a ir abaixo”, contou ao Observador. Matilde, que está na banca dos legumes há 40 anos, concorda. “Chegámos a ser mais de 50 comerciantes só de legumes e hoje somos cinco. Isto mudou muito. O mercado antes era muito farto, tanto de comerciantes como de clientes. Mas os supermercados…”, lamentou, destacando a abertura de um Pingo Doce ali na rua. As obras de requalificação do mercado, lideradas pelo arquiteto António Maria Braga, também levaram os comerciantes que não podiam ficar parados à espera. As rendas não afastaram ninguém, já que para os comerciantes antigos não aumentaram para além da inflação anual.
“Abriram aqui o gourmet e isto começou a ganhar vida”, contou Maria José. A talhante tem clientes antigas fiéis e é assim que mantém o negócio, mas “às vezes também passam pessoas que olham, veem e compram”. O discurso de Matilde é semelhante. “Quem, como eu, tem uma clientela certa, já antiga, não se pode queixar muito. “Tirando um ou outro”, os novos clientes das tasquinhas não levam dali os legumes para casa. Mas admite que, sem as obras e as novas tascas gastronómicas, o mercado acabaria por não sobreviver. “Ou a Câmara deixava os comerciantes chineses e indianos entrar, ou fechava”.
Nenhuma das hipóteses era do agrado de José Sá Fernandes, vereador do Ambiente Urbano, Espaços Verdes e Espaço Público da CML. Foi ele o responsável pela nova vida do Mercado de Campo de Ourique e do Mercado da Ribeira. “Fui eu que comecei com estes dois mercados. Fui visitá-los e percebi que estavam bastante vazios, mas que tinham este potencial”, explicou ao Observador. Nas viagens que faz gosta sempre de ir a mercados. Por isso, inspirou-se no que viu em outros países, mas não necessariamente no Mercado San Miguel, em Madrid. “Esse é essencialmente gastronómico, é privado e o problema é que mandaram embora bastantes comerciantes. O meu objetivo era não tirar ninguém, ter um público variado e depois permitir que tivesse um horário alargado”.
“Fui eu que comecei com estes dois mercados [Campo de Ourique e Ribeira]. Fui visitá-los e percebi que estavam bastante vazios, mas que tinham este potencial”.
Em outubro, os vendedores mais antigos temeram que a CML estivesse a dificultar a sua permanência no mercado, ao proibir a transmissão das bancas de venda a terceiros, nomeadamente a familiares. O gabinete de Sá Fernandes esclareceu ao Observador que se tratou de uma confusão, motivada por um despacho cujo intuito era o de evitar que os comerciantes passassem as bancas para áreas de negócio que desvirtuassem o mercado. Mais tarde saiu uma circular a esclarecer o mal entendido. “Os comerciantes podem continuar a passar as bancas a terceiros”. Não podem é mudar para qualquer tipo de negócio.
Em Campo de Ourique, o concessionário ficou com “uma parte substancial” das obras de requalificação a seu cargo. No Mercado da Ribeira, a quase totalidade das obras de requalificação foi feita pelo concessionário, neste caso a revista Time Out. Para o vereador, foi uma boa aposta. “É completamente ganha. Mas não transformámos mercados tradicionais em gastronómicos, isto é uma continuação do mercado tradicional com uma mais valia, que é a de ganhar outro tipo de públicos para outro tipo de comércio em sítios que estavam vazios. Mantivemos o mesmo número de comerciantes e acho que o efeito prático foi melhor, porque temos as duas valências”.
E se o Mercado de Campo de Ourique está a comemorar um ano da nova vida, o Mercado da Ribeira completou, esta terça-feira, meio ano desde que a Time Out abriu as cerca de 50 tasquinhas gastronómicas que todos os dias enchem o estômago às centenas de pessoas que circulam na zona do Cais do Sodré. De acordo com o diretor da Time Out, João Cepeda, o balanço supera as expetativas. “Em termos de afluência não diria que duplicou, mas quase. No início tivemos um pico que foi fora de qualquer previsão, o que era expectável por causa da marca Time Out. A dificuldade não é garantir uma adesão inicial, mas que as pessoas permaneçam. Temos conseguido isso e ainda está tanto por fazer que isso tudo nos dá bastante confiança”.
O “muito por fazer” é a abertura de espaços artísticos e culturais. “Uma das coisas que mais me anima no nosso projeto é que tem a particularidade de ser o único que junta uma fortíssima componente cultural”. “No piso zero vamos abrir novas bancas esta sexta-feira e a loja A Vida Portuguesa, de Catarina Portas”. Ao lado vai ficar a Underdogs Art Store, uma galeria com curadoria de Pauline Foessel e do artista português Vhils. O novo espaço só fica durante o mês de dezembro, a partir daí muda para um local permanente no mercado, com uma área de 63 metros quadrados, funcionando como uma montra para os projetos artísticos que a plataforma tem desenvolvido em Lisboa.
Em dezembro, abre no Mercado da Ribeira a Underdogs Art Store, uma galeria com curadoria de Pauline Foessel e do artista português Vhils.
O piso superior já está 50% pronto e vai começar a mexer no início do ano. João Cepeda aposta grande parte das fichas na sala de espetáculos que ali vai nascer. “Vai ter capacidade para 600 pessoas e é uma sala com muito carisma, com capacidade técnica fora do comum e achamos que vai marcar decisivamente este espaço”, disse ao Observador. O piso 1 também vai ter uma parte para exposições, um posto de informação turística com bilheteira, “um bar especial e um restaurante com capacidade para 150 pessoas”.
13 de junho de 2013 foi o dia em que o primeiro mercado deste género abriu em Portugal. Concessionado à Mercado Urbano, empresa do grupo Mota-Engil, o Mercado Bom Sucesso, no Porto, foi a primeira experiência, ainda que nenhum dos antigos vendedores tenha ficado para assistir. Ana Gomes, gestora do Mercado Bom Sucesso, destaca ao Observador o “conceito inovador e diferenciador enquanto mercado urbano” mas, sobretudo, “o facto de se ter devolvido à cidade do Porto um espaço tão emblemático, conseguindo um natural equilíbrio entre as ‘raízes’ do Mercado e as novas tendências urbanas”. A aceitação, diz, tem tido uma evolução positiva desde a abertura”.
O projeto de requalificação do Mercado Bom Sucesso, no Porto, foi um dos quatro vencedores europeus dos Global Awards for Excellence, promovidos pelo Urban Land Institut, de Nova Iorque. No interior estão presentes mais de 50 negócios, divididos entre mercado de frescos, restauração, retalho e serviços. O Hotel da Música também escolheu o Bom Sucesso para morada, bem como a Fundação Manuel António da Mota. Nos frescos, há bancas de frutas, legumes, carne e peixe, produtos biológicos e especiarias, mas todos os ocupantes são novos. “Os vendedores antigos foram todos convidados a manterem-se no Mercado Bom Sucesso, mas por motivos de ordem pessoal optaram por um outro caminho e por receber as respetivas indemnizações”, disse Ana Gomes. No caso do Bom Sucesso, as rendas foram atualizadas. Foram também estipuladas novas regras para a permanência no mercado. Saíram todos.
“A transformação dos mercados é um fenómeno bastante lógico. Os mercados perderam clientes para os supermercados, não obstante estavam sempre nas melhores localizações da cidade, pelo que naturalmente precisavam de uma nova vocação”, defende João Cepeda.
Pioneiros não temem concorrência
A ideia de transformar os mercados municipais em espaços mais gastronómicos e cosmopolitas é uma tendência europeia que parece estar a instalar-se também em Portugal. Em Braga, o projeto vencedor do concurso de ideias para a reabilitação do Mercado Municipal chama-se “Praça” e quer dar uma praça central coberta, área de restauração e uma escola de culinária ao espaço “com potencial mas que, atualmente, não reúne as condições adequadas”, disse o presidente da Câmara Municipal de Braga, Ricardo Rio, numa visita ao mercado a 13 de novembro. “Com a intervenção prevista, vamos torná-lo numa referência na região, com atratividade, animação, clientes, cultura e movimento de gente”, afirmou, lembrando que o mercado se localiza numa zona central da cidade”. No entanto, a intervenção está dependente de aprovação de financiamentos comunitários do quadro 2014-2020, e cuja candidatura vai ser feita no início de 2015.
Em agosto, o Observador avançou que o Mercado de Arroios, em Lisboa, iria sofrer uma “requalificação a sério”. O projeto, que vai ter um orçamento de 700 mil euros, prevê a “demolição de lojas e arrecadações dos núcleos centrais do piso zero e cave, por forma a permitir uma diversificação do uso atual do Mercado”. A ideia é a de manter a função do local focada na comercialização de produtos frutícolas e hortícolas, mas os responsáveis pelo projeto admitiram que, no futuro, o espaço poderá receber estabelecimentos de venda de comidas e bebidas.
O arquiteto António Maria Braga contou que está a ser estudada uma solução “feita por medida” para o Mercado de Alvalade, cujo bairro é diferente de Campo de Ourique ou do Cais do Sodré. Cada caso é um caso e o arquiteto não confia em receitas únicas “aplicadas indiscriminadamente”. “A junta de freguesia, que tutela o mercado, e a CML ainda não chegaram a um projeto final, mas António Maria Braga adiantou que também haverá tasquinhas. O Mercado 31 de Janeiro, em Picoas, também está a ser reestruturado.
Está a ser estudada uma solução “feita por medida” para o Mercado de Alvalade, que também pode vir a ter “tasquinhas”.
Os responsáveis pelo primeiro projeto de mercado gastronómico a abrir em Lisboa, o de Campo de Ourique, não ficaram prejudicados com a abertura do Mercado da Ribeira. “Continuamos a ter casa cheia. No final de contas até pode ajudar porque automaticamente fala-se mais em mercados”, disse Diogo Sousa Coutinho. O primeiro teste parece ter sido superado. Mas e se abrirem mais? “Eu acho que nem todos os mercados terão rentabilidade para ter uma praça de restauração e este modelo de negócio. Cada mercado tem de se adaptar de forma diferente. Mas não me assusta absolutamente nada e com o Mercado da Ribeira viu-se isso, são dois bairros distintos, com dois públicos distintos e a nível arquitetónico não têm nada a ver”.
Na visão de José Sá Fernandes, não fazia sentido que o Mercado de Campo de Ourique perdesse clientes com a abertura do Mercado da Ribeira. “Há público para os dois, até porque Campo de Ourique é uma zona bastante residencial e pelo Cais do Sodré passam muitos turistas.
“Depende muito dos projetos que forem abrindo”, disse João Cepeda. “O Mercado de Campo de Ourique é um projeto muito bem sucedido, não vinha mal ao mundo se houvesse mais um ou dois de bairro, de proximidade. O Mercado da Ribeira quis ser uma coisa diferente, um ponto de referência na cidade, a porta de entrada para os turistas e um centro cultural para os portugueses, é uma montra do melhor que a cidade tem”. Na opinião do diretor da Time Out, há sempre espaço para novos projetos, até porque a capital portuguesa está a crescer. E a extensa lista de espera por uma tasquinha no Mercado da Ribeira já tem interessados espanhóis. “Há cada vez mais turistas, mas também há cada vez mais locais. Isso tudo tem de ter este correspondente de oferta de cultura e lazer. Tudo aquilo que tem nascido na cidade nos últimos cinco anos é de uma qualidade que pode rivalizar com as outras cidades europeias”.
A 300 quilómetros de distância, o Porto também fervilha. “Tendo em linha de conta o crescimento que a cidade do Porto tem vindo a verificar nestes últimos anos, e sobretudo a sua cada vez maior projeção a nível internacional, consideramos que seria muito benéfico para a cidade a reabilitação de mais um mercado”, disse a gestora do Mercado Bom Sucesso, ao Observador.