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“Essa é também para quem é preconceituoso”, arrisca Mallu Magalhães no principal programa da manhã brasileiro, “e diz que branco não pode tocar samba”. A introdução à canção foi breve, e serviu de fogo posto para incendiar a internet durante os últimos meses. A primeira labareda chegou com o vídeo do single “Você Não Presta”, acusado de racismo pela forma como representa os dançarinos negros. Considerada culpada, a cantora quase-lisboeta é agora persona non grata em terra brasilis, facto que passou despercebido a Valter Hugo Mãe, quando decidiu publicar o controverso single no Facebook. “E como andam as discussões de racismo por além mar?”, insurgiu uma internauta, para total surpresa do escritor. A verdade é que ainda existe um tanto mar que nos distancia, e antes que Valter Hugo Mãe elogie “Tua Cantiga”, novo single do branco mais famoso que toca samba, Chico Buarque, vale ressaltar que pela primeira vez na carreira o compositor está a ser acusado de machismo, com alguns defendendo que este país não mais é para o velho Francisco, e outros que ele nunca esteve tão astuto.
“Quando teu coração suplicar/
Ou quando teu capricho exigir/
Largo mulher e filhos/
E de joelhos/
Vou te seguir”
Estes versos do single “Tua Cantiga”, primeira amostra do próximo álbum Caravanas (que tem edição marcada para dia 25), colocaram o escritor de “Construção” numa posição incomum, alvo de críticas de machismo e de letrista ultrapassado. “Acho que foi a primeira vez na vida que vi mulheres fazendo restrições a Chico Buarque”, escreveu o jornalista Luciano Trigo no G1, “Chico parece preso a uma visão da mulher – e da relação homem-mulher – dos anos 70 do século passado. Para as mulheres lacradoras com menos de 30 anos, essa ladainha de promessas e súplicas não diz mais nada: elas não querem um homem que largue mulher e filhos”.
[“Tua Cantiga”, a primeira canção revelada do novo álbum de Chico Buarque, “Caravanas”:]
Érico Andrade, colunista do Diário de Pernambuco, foi ainda mais longe e insurgiu: “Quero falar dos homens de Chico que controlam, subjugam e dominam as suas mulheres. Quero sublinhar que as mulheres de Chico estão em função desses homens”. Segundo o colunista Ancelmo Gois, Ana de Hollanda, irmã de Chico, argumentou que “condenam o autor da frase, sem terem se dado conta de que os personagens das canções de Chico — aliás, de qualquer ficcionista — não costumam ser autobiográficos. Que o compositor descreve situações e sentimentos corriqueiros, e até comuns, concordando ou não com eles”.
Romântico? Sim, claro, mas…
A polémica está lançada, e a aparente canção suave sobre um romance extraconjugal colocou a música e a posição de Chico em cheque, depois de anos proclamado como dotado de uma singular perspetiva feminina, celebrado até pela banda carioca “Mulheres de Chico”. Nas redes sociais, mulheres identificadas como fãs não aceitaram receber essa “Tua Cantiga”, que chegou como um balde de água fria, ou melhor, como o famoso meme de Chico, tendo uma cara sorridente antes de ouvir o single, e sisuda depois do controverso verso.
Entre os textos mais compartilhados está “O amor datado de Chico Buarque”, de Flavia Azevedo, produtora e colunista do jornal “Correio”. “O datado está se referindo ao personagem criado pelo compositor para a música ‘Tua Cantiga’”, explica ao Observador, “esse personagem diz coisas que não me emocionam como mulher, não são coisas que são românticas aos meus ouvidos, e ouvidos de outras mulheres, pela primeira vez eu percebi uma música de Chico não ser unanimidade”. A colunista reitera que a sua opinião não é “patrulha ideológica”, e muito menos querer abalar a carreira do cantor que tanto admira, mas considera fundamental explicar que o sentimento expresso na canção “é datado, porque esse sentimento já pode ter sido sedutor noutro momento de feminino, e agora a gente pode estar mudando”.
Mauro Ferreira, crítico musical do G1, adiantou na sua coluna que o álbum de “Tua Cantiga” é lançado dia 25 de Agosto e que vai ser composto por sete canções inéditas e duas regravações. “Chico passou a gravar menos a partir dos anos 90”, lembra ao Observador, “são discos feitos com intervalos de cinco, seis anos. Observa-se então uma produção fonográfica pautada por um maior requinte harmónico, mas com músicas de menor apelo popular.” Sobre a controvérsia, Mauro reafirma que o cantor “escreve letras com base em amores fictício”, e que “por mais que a visão do compositor sobre a relação homem-mulher possa estar ultrapassada, face às conquistas femininas, é bobagem e perda de tempo julgar o comportamento de um artista por conta de uma letra de música que narra caso fictício de amor”.
Apesar das recentes críticas de estar fora da realidade romântica atual, o colunista revelou recentemente que entre as duas regravações no Caravanas está a canção “Dueto”, com a neta Clara Buarque, onde os dois brincam de improviso sobre amores de Tinder e Instagram. “Cabe lembrar que o novo repertório apresenta conexão com um compositor jovem, neto de Chico, parceiro em ‘Massarandupió’”, explica. “A colaboração de um compositor jovem, de outra geração é uma novidade na obra de Chico. Mas que ninguém espere uma revolução estética como as feitas comumente por Caetano Veloso. O fato de ‘Caravanas’ ter sido gravado com os mesmos músicos do álbum anterior, ‘Chico’, já demonstra que o artista vai se manter fiel ao som do disco de 2011.”
Com (menos?) açúcar e afeto
Prestes a lançar o 23º álbum da carreira, a questão aqui é sobretudo quem é, e o que representa Chico Buarque em 2017. Há 50 anos, o autoproclamado “macaco de olhos verdes” cantava “Com Açúcar, Com Afeto”, uma das suas primeiras tentativas da perspetiva feminina, onde um operário se perdia pela noite em copos, enquanto a esposa desesperava em casa.
“Quando a noite enfim lhe cansa/
Você vem feito criança/
Pra chorar o meu perdão/
Qual o quê!”
[…]
“Logo vou esquentar seu prato/
Dou um beijo em seu retrato/
E abro os meus braços pra você”
Será esta canção mais uma prova cabal que Chico defende a devoção eterna da mulher ao homem, uma grande ironia, ou um retrato fiel do país retrógrado em 1967? Ou mirem-se no exemplo de “Mulheres de Atenas”, quase um bê-á-bá de como ser machista, ou melhor, de como representar liricamente um machista. E hoje, será que existe compreensão para um letrista de nuances?
“Chico sempre tem um olhar lírico e crítico sobre o Brasil”, explica-nos Cacá Machado, “Neste sentido, ‘Tua Cantiga’ que acabou de sair é um bom exemplo”. Além de historiador e músico, Cacá é um dos colaboradores de A Mulher do Fim do Mundo, de Elza Soares, o modelo máximo de como tratar a música brasileira atualmente. Machado pertence ao grupo de pensadores e críticos que proclama esta fase da carreira de Chico como cada vez mais elaborada, astuta, detalhada e subtil.
“Numa leitura mais superficial pode parecer uma canção de um amor anacrónico”, sugere sobre o controverso single. “Mas, quando ouvimos com mais atenção, percebemos que a música composta por Cristóvão Bastos flirta com o lundu, género do século XIX que carrega todas as questões da escravidão no Brasil.” A visão do historiador cria uma linha entre o single e “Sinhá” de Chico (2011), uma referência mais óbvia ao antigo regime esclavagista. “Em ‘Tua cantiga’ o tema é mais velado, mas traz a memória crítica de um Brasil profundo”, continua. “Chico, às vezes mais lírico, às vezes mais ácido, sempre procura vasculhar e embaralhar a memória do país.”
[“Sinhá”:]
Ao lado de Lula
A memória do país e o nome Chico Buarque é outro verso altamente polémico. No ano passado, com um Brasil politizado, e completamente dividido entre “coxinhas” (filiados ao PSDB) e “petralhas” (PT), não havia dúvidas para ninguém em que posição estava o cantor. Enquanto a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) discursou na fatal sessão de impeachment, Chico sentava na arquibancada do Senado, ao lado de Luiz Inácio Lula, o mal encarnado para uma parte da população. Antes disso, o cantor já tinha apoiado em propaganda a eleição de Dilma, assim como fez nos eleitorados anteriores por Lula, dando a cara e corpo ao Partido dos Trabalhadores.
Essas imagens ficaram presas na retina de alguns “coxinhas”, que já gritavam “vai trabalhar vagabundo” desde que se convenceram que o cantor recebia dinheiro através de leis estaduais de incentivo à cultura (lembrando que Ana de Hollanda foi ministra de cultura no primeiro governo de Dilma). “Acho que o tempo brutalmente polarizado que vivemos hoje em dia fizeram do Chico refém dessa imagem”, concorda Cacá, “mas vejo a obra dele muito maior do que posicionamentos partidários”. Mauro Ferreira defende que não pode existir mais nada a provar para um cantor de 73 anos. “Podem atacá-lo pelo mero prazer de falar mal, mas nada afeta o prestígio do compositor a essa altura do campeonato.”
“Para quem mora em Paris é fácil”, ouvia-se em 2015 num restaurante no Leblon, bairro do Rio de Janeiro onde mora o cantor. “Você mora em Paris?”, responde Chico. “Todo mundo era seu fã”, contínua o jovem irritado, como podemos ver também em vídeo. Pode ser estranho para grande parte dos portugueses, sobretudo a geração de Abril, que associa o cantor de “Tanto Mar” à libertação democrática de um povo, porém, se passar pelo teste de espreitar uma caixa de comentários de qualquer artigo sobre o cantor, vai deparar-se rapidamente com um ódio desmedido, que já faz parte do discurso político brasileiro nos últimos tempos.
[“Tanto Mar”:]
Mesmo fora da internet, alguns jornalistas de direita, como Reinaldo Azevedo da revista Veja, vivem numa cruzada ideológica contra o cantor, com títulos de crónicas como “Que Chico Buarque e Caetano descansem em paz no túmulo da impostura” ou “Mas, afinal de contas, Chico Buarque é ou não é um merda?”. Para o eterno defensor da “gente humilde” isto representa uma situação inusitada, num mundo onde já não existe um “nós” (povo) contra “eles” (ditadura militar), mas uma guerra civil de comentários ofensivos de 140 caracteres.
“Hoje em dia na internet as pessoas falam o que vem na cabeça”, disse o próprio em grandes gargalhadas num documentário de bastidores, “a primeira vez que vi isso não sabia como era o jogo e fiquei espantadíssimo, o artista geralmente acha que é muito amado”. Hoje, ver o cantor em público é cada vez mais raro, deixando até de fazer as participações surpresa no bar Semente (Lapa, Rio de Janeiro), apesar de alguns crédulos continuarem a visitar o estabelecimento com fé na aparição.
E aí, Brasil?
Quando Augusto Boal, o grande dramaturgo brasileiro, estava exilado em Lisboa, o seu amigo Chico Buarque deixou notícias em verso, que infelizmente voltam a fazer todo o sentido em 2017, num eterno roda vida que são estas canções:
“Aqui na terra tão jogando futebol/
Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll/
Uns dias chove, noutros dias bate o sol/
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta”
A coisa está mesmo preta, e além de quem acusou o cantor de machismo, elogiou a subtileza da nova fase, ou condenou de comunista, existe um quarto grupo de ouvintes atentos, que esperava que Chico Buarque retornasse da neblina para fazer música de protesto sobre a coisa preta, cantar “Apesar de Você” em vez de “Samba e Amor”. “Eu acho que devemos tomar cuidado com cobranças e polarizações, a rigor Chico nunca fez música de protesto”, indica Cacá, ‘‘‘Apesar de Você’ é uma canção de protesto? Pode até ser entendida como tal, mas o contexto de sua criação tem mais a ver com a poética lírica da obra do Chico do que com um conteúdo programático de protesto do CPC (Centro Popular de Cultura, grupo estudante de resistência) da época.”
Se as letras recentes de Chico não agradam quem deseja gritos de guerra para marchar pelas ruas, podem contentar-se com a presença eventual do cantor em alguns comícios. No ano passado, um grupo de protestantes ocuparam o Canecão, o famoso palco abandonado no Rio de Janeiro, e convidaram o próprio Chico a participar no movimento “Ocupa Minc” (Minc é o Ministério da Cultura, e o protesto eram atos culturais contra o iminente impeachment). Quando o cantor sobe ao palco, improvisa “Apesar de Você”, para uma plateia que acompanha em uníssono, crente na imortalidade de canções sobre dias melhores. Depois, a assessoria explicou que ele não cantava “Apesar de Você” desde os anos 70 e que, por norma, evita o reportório fortemente associado aos tempos da ditadura militar, o que é razoável para quem foi perseguido e exilado.
Para ouvir os pensamentos de Chico sobre a atualidade política, o melhor é mesmo tentar acompanhar esses momentos fortuitos, porque de entrevistas o compositor é famoso por ser desconfiado, estando numa suposta “guerra” com a poderosa rede Globo desde que participou num documentário internacional que apontava o dedo à participação ativa da emissora no regime militar.
O último álbum de originais foi Chico em 2011, e depois se seguiu o livro O Irmão Alemão em 2014, e até ao final do mês vamos poder ouvir o esperado Caravanas. Se ainda só existe um single, e já se debate com este afinco a importância ou degradação da obra, isso só pode significar que a discografia continua relevante hoje como era há 50 anos. “Chico Buarque é a prova mais evidente de que a canção autoral no Brasil não é mero entretenimento, ao contrário, um modo de transformação cultural e social”, lembra Cacá. Em 2018, quando já estiver provavelmente preparando seu próximo livro, desconfiamos que para o velho Francisco deve seguir tudo igual, indiferente aos latidos das caixas de comentários. Enfim, os cães ladram e o Caravanas passa, e em breve vamos todos poder discutir novamente quem é Chico Buarque.