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A exposição “Viver a sua Vida. Georges Dambier e a Moda” abre ao público no dia 6 de maio, ficará no Museu do Traje até 30 de outubro e coloca em exibição uma parte da obra do fotógrafo francês. Numa sala entre a entrada do edifício do museu e a bilheteira vão estar expostas 35 fotografias a preto e branco, no interior do museu escondem-se, entre a exposição permanente, mais quatro obras, mas a cores. Juntas trazem para Lisboa um pouco da Alta Costura parisiense, da sua época dourada e das suas revoluções. Mas como a mistura de moda, fotografia e museu resulta num tentador e infinito caminho de histórias e personagens precisámos da ajuda de uma profissional para o percorrer. Por isso convidámos a curadora da exposição, a investigadora Anabela Becho, a fazer uma visita guiada.
Um fotógrafo com olho para a moda
O fotógrafo Georges Dambier e a mulher, Françoise, que era modelo, encheram, certo dia, o porta bagagens do carro com criações de Alta Costura francesa e partiram para Itália. Por lá fizeram uma verdadeira produção de moda que encantou a diretora da Elle, para onde Damier trabalhava. As imagens foram publicadas na revista no verão de 1952 acompanhadas por uma reportagem assinada pela própria Françoise, em estilo diário de viagem, onde descreve as peças de roupa que levou e o que aconteceu durante o passeio, como por exemplo, o roubo de uma carteira, o que comeram ou um encontro ocasional com outras duas modelos famosas da época que se juntam à reportagem com peças de moda italiana. Foi o primeiro editorial do fotógrafo que chegou às páginas da revista e logo fez a diferença. A partir daqui ele começou a viajar pela Europa, e não só, e lançou o conceito do fotógrafo-turista, que já explicaremos.
Hoje chamar-lhes-íamos, simplesmente, “influencers”, mas se olharmos para a época em questão devemos chamá-los “extraordinariamente precursores”.
No passaporte de viagens de moda de Dambier também está carimbado Portugal, em 1957. O objetivo era fotografar para uma marca especializada em malhas e os cenários escolhidos foram o Estoril, a Nazaré e Óbidos. Anabela Becho explica que dois anos antes, um outro fotógrafo da Elle veio a Portugal fotografar uma reportagem para a revista, numa altura em que o país se estava a promover como destino turístico e conta que “nos anos 50 a Air France começou a ter voos para Portugal”. Assim, explica que a viagem de Dambier foi promovida pela Air France, a Casa de Portugal em Paris e o Hotel Palácio no Estoril, local onde acredita que a equipa terá ficado instalada, já que uma das fotografias que consta da exposição foi tirada no bar do hotel. No entanto, explica, não é possível comprovar porque o livro de hóspedes dessa época desapareceu.
Sem saber muito bem como terá chegado até si, Anabela Becho foi contactada por Guillaume Dambier, o filho do fotógrafo Georges Dambier e também conservador do arquivo Georges Dambier Photo, talvez porque anos de investigação na moda puseram o seu nome no mapa ou, simplesmente, porque os astros se alinharam. “Contactou-me porque tinha encontrado umas fotografias de Portugal e perguntou-me se eu acharia interessante. Eu imediatamente disse que sim, contrapropus que faria o projeto mas não queria expor só as fotografias de Portugal, porque me interessava fazer uma reflexão da Alta Costura dos anos 50 através das fotografias do Georges Dambier.” Assim nasceu a exposição “Viver a sua Vida. Georges Dambier e a Moda”, que rouba parte do nome a um filme de Jean-Luc Godard de 1962.
“Expor moda no museu levanta muitos problemas porque falta o essencial, que é o corpo para o qual o vestuário foi criado”, conta a curadora enquanto sobe a escadaria do museu. Contudo, o problema deu força à busca de soluções e assim começou a trabalhar no projeto desta exposição no início de 2019, quando o mundo era bem diferente. “Quis refletir sobre essas formas de expor moda no museu, através da sua representação, da fotografia, da descrição. O primeiro passo talvez tenha sido a procura de parceiros que ajudassem a tornar a exposição realidade, como a Embaixada de França e o Instituto Francês. Quanto ao local, o Museu do Traje surgiu quase como a escolha natural, é um local familiar para Anabela Becho, que o frequenta desde os tempos de estudante e salienta a qualidade da biblioteca do museu. O projeto começou com a aprovação do diretor José Carlos Alvarez e vai acabar com Dóris Santos, que lhe sucedeu em janeiro de 2022. A mostra está também incluída na programação da Temporada Cruzada Portugal – França 2022.
A moda e a fotografia
A fotografia de moda era (e talvez ainda seja) a principal forma de comunicar moda. Por isso o trabalho dos fotógrafos é tão importante. Nos anos 40 Georges Dambier focou-se no mundo da cultura e fez inúmeros retratos. Mas nos anos 50 e 60 a moda foi a sua prioridade. Nas fotografias desta exposição podemos ver as modelos a usarem peças de criadores de topo da época como Madame Grés, Dior, Chanel, Fath, Givenchy ou Balmain. Ele trabalhou muito a temática do cinema e entre as imagens expostas pode ver-se uma fotografia de Anna Karina nas reservas da Comédie Française, ou Barbara Mullen numa esquadra de polícia numa encenação de um realizador.
Georges Dambier trabalhou com várias revistas como Le Jardin des Modes ou Marie France, mas foi na revista Elle francesa que teve o seu palco maior e foi nesta publicação que a maior parte das fotografias que compõem esta exposição foram produzidas ou publicadas. A Elle foi fundada em 1945 por Hélène Lazareff, “que era uma mulher muito progessista e muito feminista, a imagem que eles veiculavam na Elle era substancialmente diferente da que era veiculada na Vogue” explica Anabela Becho. “Foi com a Hélène Lazareff que o Georges Dambier conseguiu a sua marca autoral”, acrescenta.
O seu primeiro trabalho para a Elle foi fotografar o primeiro desfile de Hubert de Givenchy, mas foram as fotografias de moda na rua que deixaram marca. Georges Dambier colocou as modelos em diálogo com a cidade de Paris, o que é muito inovador, porque a Alta Costura era “extremamente solene” na época. Na altura a mulher já tinha um papel muito mais ativo na sociedade conquistado na primeira metade do século, ao que se junta uma democratização das viagens entre países. Conta Anabela Becho que já nos anos 30, um outro fotógrafo, Jean Moral, tinha levado as modelos vestidas de Alta Costura para a rua, mas não para fora do país e foi com os trabalhos em viagem que fez para a Elle que Dambier criou o conceito de fotógrafo-turista. Nas suas aventuras alinhavam, claro, as melhores modelos da época, como Bettina, Capucine ou Suzy Parker. E a investigadora sublinha que “as modelos eram mulheres extraordinárias. Cada uma delas teve uma vida muito particular. A Bettina, considerada o rosto da Alta Costura dos anos 50, foi também relações públicas e ajudou a lançar a carreira do Hubert de Givenchy, a Suzy Parker foi fotógrafa, a Capucine era atriz, a Anna Karina também.”
O diálogo entre o novo e o antigo
O Museu do Traje tem morada no Palácio Angeja-Palmela, do século XIX, e está rodeado por um parque botânico com cerca de 11 hectares. É uma potencial joia no centro da cidade, cujo brilho está ofuscado por uma localização escondida no Lumiar, longe dos roteiros turísticos da capital. Dentro do museu, no cimo de uma escadaria de pedra, sucedem-se várias salas onde se contra a história do traje desde o século XVIII até à moda das mais recentes décadas do século XX, através de peças de vestuário e acessórios em salas que emprestam a sua decoração original à cenografia da exposição.
Era importante para a curadora criar um diálogo entre as fotografias de Dambier e o interior do museu e, por isso, há um vestido, quatro fotografias de um volume de arquivo de revistas que vão invadir as primeiras salas do museu e todos contam uma história. Um vestido de Madame Grés datado de 1970 e que pertence à coleção do Museu do Traje vai integrar uma vitrine de peças do século XVIII. “É uma clara citação do ‘robe à la française’ com um drapeado nas costas e vai criar essa relação entre a exposição, a instalação e o museu”, explica Anabela Becho e acrescenta que “a moda tem esta particularidade de se alimentar, de recriar e de citar o seu próprio passado muito claramente.”
Na mesma sala vão estar penduradas na parede as duas únicas fotografias a cores escolhidas para a exposição. Um díptico onde se pode ver Suzy Parker, uma importante modelo norte-americana dos anos 50 que também era fotógrafa, e foi captada por Dambier a fotografar. Para a curadora, representa a essência do trabalho deste fotógrafo, “ele não mostra uma mulher objetificada, mostra uma mulher independente que sai para a rua”, mas a modelo mantém a elegância da época e usa um tailleur Balenciaga.
Na sala seguinte uma fotografia da modelo Capucine, onde se destacam os acessórios como o chapéu, as luvas e a carteira, estará pendurada numa parede sobre duas vitrines de acessórios antigos, junto a trajes do estilo império do século XIX. Na sala seguinte brilham as saias rodadas e silhuetas curvilíneas da segunda metade desse mesmo século, altura em que convencionou o surgimento da Alta Costura, à semelhança da que hoje conhecemos. E é por isso que aqui estará a última fotografia da exposição, uma homenagem a esta categoria máxima da moda, acompanhada por uma obra da biblioteca do museu dentro de uma vitrine.
Em busca do rasto das fotografias
Depois de plantada a semente da curiosidade por Guillaume Dambier, começou então a investigação da curadora. À partida, não havia qualquer informação sobre a maior parte das fotografias, mas isso representou apenas um incentivo para partir à sua procura. “Expor moda no museu é sempre uma reflexão sobre o tempo e a memória e eu queria juntar diversas camadas de memória às fotografias que ia expor. Era importante para mim fazer essa contextualização de tudo o que está naquela imagem. Não queria ter apenas fotografias bonitas.”
Mergulhou nos arquivos na biblioteca do próprio Museu do Traje, de revistas Elle (francesas), do Museu Galliera e do Museu das Artes Decorativas, ambos em Paris, e nos das casas de Alta Costura, como Christian Dior, Balmain ou Givenchy, para encontrar informação sobre as peças de vestuário que estão nas fotografias. O verdadeiro tesouro seria encontrar as peças originais que Dambier fotografou e, de facto, Anabela Becho encontrou um casaco no Museu Christian Dior em Granville. Chegou a sonhar com a ideia de trazer a peça para a exposição, mas rapidamente acordou para a realidade. Não é fácil. Quando uma peça destas é emprestada, além de seguros e do seu próprio transporte, há também que acrescentar o transporte da pessoa da instituição que acompanhará a sua montagem na mostra, e todos esses encargos ficam a cargo da instituição que convida, o que, neste caso, ficava muito além das possibilidades orçamentais disponibilizadas para esta exposição, explica.
Na base desta exposição de imagens bonitas há, com certeza, um denso trabalho de investigação teórica. Por isso Anabela Becho conta que é no livro de Roland Barthes, O Sistema da Moda (uma verdadeira bíblia no âmbito da teoria da moda), que estão os alicerces desta mostra. O autor investigou a forma como as revistas de moda tratavam o tema e, segundo a curadora, foi precisamente sobre a publicação Elle que ele se debruçou nos anos 1959 e 1960. Segundo a conclusão de Barthes, a moda tem três níveis de discurso: “vêtement image, a representação do vestuário que temos na fotografia. O vêtement écrit, que é a descrição. E o vêtement real, a verdadeira peça. A minha investigação baseou-se nisto.”
Assim, além das fotografias, haverá também a instalação sonora “Robe-fantôme”, entre a exposição e a entrada do museu, numa pequena sala mesmo ao lado da porta principal. Nela ouvir-se-ão descrições de alguns vestidos Grès que a autora observou ao longo da sua investigação em museus internacionais como o Palais Galliera ou o Costume Institute, no Museu Metropolitan, intercaladas com reflexões da própria. Mas desengane-se quem pensa que a parte teórica da investigação é aborrecida. Também se encontram verdadeiras pérolas, que até podem não fazer diferença na narrativa, mas provam que tudo está relacionado. É que, curiosamente, Barthes foi professor de liceu de Dambier.
Com a abertura da exposição será publicado um livro que é bilingue e é muito mais do que um catálogo. Na verdade é um complemento que conta com a informação em exibição no museu e muito mais conteúdos. “A exposição tem 39 fotografias e no livro temos 124”, e ainda, por exemplo, textos escritos especialmente por convidados, reproduções de revistas ou reproduções de croquis descobertos em arquivos.
Alta Costura, a moda entre o sonho e a realidade
A exposição está dividida seis capítulos criados com base nos temas que a curadora achou que seriam importante abordar: “Espírito couture”; “Uma mulher na cidade”; “Scénario: a fotografia de moda revelada”; “Real e Surreal: fotografia de moda, um universo entre realidade e fantasia”; “Convite à viagem: a moda no mundo segundo Georges Dambier”; “Portugal, 1957”. Aquele que a autora mais destaca é a Alta Costura, não só na moda como também na própria França.
“Na Alta Costura é muito importante toda a ligação a uma indústria. Não estamos a falar de coisas frívolas, porque o vestuário é muito mais do que isso” porque, explica, “no fim dos anos 40, todas as indústrias ligadas à moda foram fundamentais na recuperação económica e não só, também emocional, de um país após a segunda guerra mundial”, o que torna a moda uma das indústrias mais importantes daquele país, naquela altura. Importa lembrar que o prêt-à-porter só apareceria em força na década de 1960 e até aqui toda a moda era Alta Costura feita em ateliers de costureiros, com um altíssimo padrão de qualidade. Contudo, ao longo dos anos 50, a moda começou a mostrar sinais de mudança, “esta Alta Costura, entre tradição e modernidade, é pensada para a mulher em movimento.” Anabela Becho assinala que nesta, que ficou conhecida como a Era Dourada da Alta Costura, a maioria dos criadores estrela eram homens, mas totalmente focados na beleza feminina. Contudo, depois de tantas conquistas alcançadas pelas mulheres nas primeiras décadas do século XX, nem o ideal de beleza feminino antigo recuperado no pós-guerra, travou as mudanças ou a sua velocidade.
Não resiste a acrescentar: “temos aquela a que eu gosto de chamar a outra Idade de Ouro da Alta Costura, que são os anos 30, em que a criação é maioritariamente feminina. E também a criação de estruturas. Vionnet e Grés, Chanel e Lanvin são ainda anteriores, todas elas foram extraordinárias.”
A moda e o seu lugar no museu
Anabela Becho é, normalmente creditada como jornalista, contudo diz que nunca se considerou como tal. Escreveu durante quase duas décadas na imprensa, mas nunca quis tirar a carteira de jornalista, porque considerava que era “uma pessoa que escrevia sobre a área que estudava”. A primeira revista para a qual escreveu foi a Elle portuguesa, mais um elo de ligação entre todos os componentes desta exposição. Estudou moda e trabalhou algum tempo enquanto designer, mas percebeu que não era bem aquilo que queria. É investigadora e conservadora e, atualmente, dedica-se à sua tese de doutoramento, que se centra em Madame Grés. É “o caso de estudo principal, ela trabalhou dos anos 30 aos anos 90 e vemos um fio condutor. O tema principal é o tempo e a memória na moda.” E acrescenta que esta exposição, bem como a instalação sonora, “são ramificações” do seu doutoramento.
A investigadora considera que “o museu é um espaço onde a moda se interliga muito claramente com o tempo, com a memória e com a história”. E ilustra esta ideia: “há o ‘salto do tigre’, como chama Walter Benjamin, o voltar ao passado, retirar o que interessa e reinterpretá-lo à luz do presente. É isso que a moda faz constantemente e talvez o que mais me interessa na moda.” Para a investigadora, a moda é um potencial campo de investigação, tão legítimo quanto a pintura ou a escultura, na verdade, já no século XIX os filósofos se debruçaram sobre a moda, também por cá Almeida Garret se dedicou ao tema, “porque perceberam que as questões relacionadas com o vestir e com a essência da própria moda, que tem a ver com o movimento, a mudança e o aceleramento dos tempos, tudo isso está intimamente ligado à modernidade, à sociedade moderna”.
As exposições de moda em museus tradicionais tornaram-se uma tendência ao longo da última década. Contudo, o tema não é consensual. Por um lado os puristas defensores de um modelo de museu clássico e da manutenção das belas-artes como objeto de exposição, consideram que a moda não deveria ter tanto destaque no museu, destacando o facto de ser uma indústria altamente comercial como um dos maiores problemas. Por outro lado, as exposições de moda têm-se revelado verdadeiros sucessos de bilheteira atraindo, não só muito público, como também variado. Na base deste sucesso pode muito bem estar o facto de a moda ser uma forma de criação que toca tantas outras artes, que se inspira em tudo o que a rodeia e traça um retrato da sociedade ao longo do tempo, permitindo assim ricos diálogos com muitas outras peças e culturas e muitas histórias para contar sob o olhar pedagógico do museu.
Depois de tudo isto, porque é que o público deve visitar a exposição “Viver a sua Vida. Georges Dambier e a Moda”? Para aprender sobre a história da moda, da Alta Costura, da sociedade das épocas retratadas e sobre o próprio fotógrafo, diz a curadora. Ou então simplesmente para “usufruir da beleza das imagens. Ver mulheres muito bonitas, muitíssimo bem fotografadas, porque vivemos tempos tão angustiantes… a beleza pode não nos salvar, mas ajuda-nos, dá um certo conforto e isso é uma razão tão válida como todas as outras.”