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Germano Silva: "Às vezes sinto-me um homem rico"

Germano Silva ia descalço para a escola e, com 11 anos, puseram-no a trabalhar. Lutou. Foi jornalista durante 40 anos e ninguém sabe tanto sobre o Porto quanto ele. Agora, vai ser Honoris Causa.

A primeira chamada para o telemóvel de Germano Silva data de junho. Seguir-se-iam muitas mais, até o jornalista aposentado aceitar que outra jornalista lhe roubasse duas tardes à preenchida agenda. Não era má vontade, apenas falta de tempo. Ao telefone enumerou, com o sotaque do Porto que lhe marca a origem, a lista de tarefas que tinha para aquela semana. Prestes a completar 85 anos, no dia 13 de outubro, prepara exposições, tem reuniões, entrega crónicas na Visão e no Jornal de Notícias e guia grupos pela cidade onde não nasceu, mas onde habitou sempre, desde os primeiros meses de vida. “Eu às vezes só queria que me deixassem em paz“, desabafou.

Ar cansado é coisa que não tem. Falta de memória, muito menos. As histórias de 40 anos de jornalismo brotam umas a seguir às outras, desde o famoso Crime da Rua do Sol — em que, sem querer, resolveu um assassinato — até à madrugada do 25 de Abril, quando se ausentou do Jornal de Notícias com Manuel António Pina para irem comer umas iscas e, no caminho, perceberem que havia movimentações nas traseiras do quartel-general. É um dos maiores conhecedores da cidade do Porto e também sobre ela as curiosidades multiplicam-se.

A entrevista decorreu na centenária Livraria Académica, do seu amigo e ex-colega de escola Nuno Canavez. No piso superior, há uma foto emoldurada de Mário Soares. Imediatamente por baixo está outra, do próprio Germano. É como se fosse a sua terceira casa (a primeira é a residência pessoal, a segunda é, naturalmente, a cidade do Porto). Quando alguém quer oferecer um presente a Germano Silva, é à Livraria Académica que se dirige, para pedir conselhos a Nuno Canavez.

Na infância e na juventude, a morada foi sempre em ilhas. Não as paradisíacas, rodeadas de água, mas sim as típicas ilhas do Porto, que consistem em casas humildes numa só morada. Esteve quase a entrar num seminário, quis ser comercial, mas não tinha dinheiro para comprar os fatos necessários à profissão. Podia ter trabalhado em fábricas toda a vida, mas foi incentivado a retomar os estudos. Ter-se-ia perdido um jornalista do Jornal de Notícias e um colaborador do Expresso, Jornal Novo, Flama, O Século Ilustrado, e O Jornal, que depois deu origem à revista Visão.

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No dia 3 de novembro, vai receber um Honoris Causa pela Universidade do Porto. A Porto Editora está a preparar-lhe um livro-homenagem que nem Germano Silva sabe o que contém. A Casa do Infante, à qual doou uma boa parte do seu acervo, terá uma exposição comemorativa e, entre os objetos expostos, estão quadros de Júlio Resende dedicados ao ex-jornalista e um livro que Mário Cesariny lhe ofereceu, onde escreveu: “Para o Germano, o puro”. “Não sei o que é que queria dizer com aquilo”, diz o homem que também já foi personagem de livros, entre os quais um de Richard Zimler. Não se safou nada mal, o menino que ia descalço para a escola e que não celebrava o Natal nem o aniversário por falta de dinheiro.

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Marcou esta entrevista na centenária Livraria Académica. Na infância, imaginava que ia trabalhar rodeado de livros e que ia acabar por escrever quase 20?
Não. Nunca isto me passou pela cabeça. Eu tive uma infância muito difícil, porque o meu pai era guarda-freio de elétricos e um homem de causas, muito interventivo, ia em defesa de colegas que eram castigados e ele próprio foi castigado muitas vezes. Em consequência disso, houve períodos largos na Companhia de Carris em que não tinha trabalho certo. Tinha de se levantar de madrugada, por volta das duas ou três da manhã, para ir para a Boavista à espera que faltasse algum colega. Se faltasse, ele ia trabalhar. Se não, não ganhava. Nos períodos em que não ganhava, a vida era mais complicada.

Houve sempre o que comer em casa?
Sim, nunca passei fome. Mas havia períodos em que só jantava ou só almoçava. A juntar a isso tínhamos a Segunda Grande Guerra, que começou em 1939, e a Guerra Civil de Espanha. Ora, eu nasci em 1931, tudo isso nos afetou tremendamente. Eu com seis ou sete anos levantava-me às quatro da manhã para ir para a padaria guardar a vez, para depois a minha mãe, Maria Helena, ir buscar pão, porque eles não vendiam a crianças. Isto no verão, no inverno, com chuva, frio… Era esta a vida. E as dificuldades eram muito generalizadas. Eu ia para a fila do sabão, ali no Bonjardim. Às vezes passo lá e lembro-me. Ia para o Mercado do Anjo, quando ainda existia, buscar as batatas. Como os meus pais eram da província, de um concelho de Penafiel, que foi onde eu nasci, tínhamos a vantagem de que às vezes a minha avó mandava uma cesta com algumas coisas fundamentais. Era uma ajuda.

De uma maneira geral, a vida foi muito difícil e, nessa época, a minha preocupação era a sobrevivência, não eram os livros. Mas foi nessa altura que eu li os meus primeiros livros, que eram do Emilio Salgari, o criador do Sandokan.

Os livros eram seus?
Não, eram do pai de um colega da escola primária. O homem tinha andado na Guerra Civil de Espanha e voltou com problemas, então o filho alugava-nos os livros, acho que por cinco tostões ao dia. As minhas primeiras leituras foram do Sandokan. Isso criou em mim um interesse muito grande pelo Oriente, fiquei para sempre fascinado com aquelas descrições dos Portos, dos barcos, dos marinheiros, do Rum. Deixou-me fascinado.

Toda a gente conhece o seu fascínio pelo Porto, mas este é mais privado: um amigo seu disse-me que o Germano Silva já esteve 15 vezes na China, é verdade?
Já fui lá 15 vezes, sim. Eu viajei muito como jornalista, e como dirigente sindical também viajei bastante, especialmente depois do 25 de Abril. Estive em congressos nos sítios mais incríveis, no Vietname, por exemplo, com o Cáceres Monteiro. À China fui lá pela primeira vez em serviço, como enviado do Jornal [de Notícias] acompanhar um ministro. Ainda a China estava a começar as Zonas Económicas Especiais. Eu tinha o fascínio da China, até porque na minha mocidade éramos todos maoistas. O problema era que na visita do ministro eu não via nada. Havia uns carros que nos iam buscar à porta do hotel às 09h00, eu olhava pela janela e via a China passar-me ao lado. Ia para as repartições, ouvia os senhores falarem em planos quinquenais, que não me diziam absolutamente nada, e eu olhava para fora e via a China ali. O ministro era o da Comunicação Social e tinha ido a convite da Agência Nova China. Foi através deles depois que eu fui três vezes ao Tibete, fiz a Rota da Seda, andei nas minorias étnicas mas só vi cinco, de um total de 46. Fui à Montanha Amarela, que é Património da Humanidade, fui à Floresta da Pedra…

Ou seja, se não vivesse no Porto, mudava-se para a China.
Não. Eu gosto muito da China, do Oriente, gosto muito de viajar. Mas sempre que viajo, vou a olhar para trás, para nunca perder o telhado. Para voltar.

“'O quê?! Um sobrinho meu padre? Filhos da puta! Nem pensar!' Meteu-se logo na carreira, veio ter com o meu pai para lhe dizer que nem pensasse em pôr-me no seminário. Ele era da maçonaria".

Voltemos então à sua infância. Sei que nasceu num lugar chamado São Martinho de Recezinhos, Penafiel, a 13 de outubro de 1931, mas que com menos de um ano já tinha morada no Porto. Onde era a casa de família e quem vivia lá?
A morada mais antiga de que me lembro era no Carvalhido, numa ilha. Lembro-me disso porque não havia água canalizada, então a minha mãe tinha de trazer uns canecos com água. E eu, que devia ser muito pequeno, uma vez quis beber água, fui ao caneco, virei aquilo sem querer e fiquei aflito com a água [risos]. Depois vim para a Rua Oliveira Monteiro, em frente à Quinta Amarela, onde esteve a primeira Faculdade de Letras. Também era uma ilha, que foi demolida. Ainda frequentei a primeira classe ali numa escola em Cedofeita.

Depois, os meus pais mudaram-se para o Bairro do Cruzinho, que é aqui no Campo Alegre. Ainda existe, ainda que com pouca gente, e ainda tenho lá uma irmã, a Maria. Por isso também mudei para a escola primária em frente ao Palácio de Cristal, num edifício que pertencia à família Van Zeller.

Era uma escola onde os meninos pobres e os de boas famílias se sentavam lado a lado.
Era, andavam lá os Van Zeller, os Niepoort. Naquela zona havia muitos ingleses e alguns frequentavam ali a escola. Com uma diferença: eles eram os meninos e nós os rapazes. A escola era fantástica e tinha uma vantagem, porque todos os dias a Legião Portuguesa ia lá servir sopa a quem precisasse. Os meninos não precisavam e o ambiente era curioso, porque as amas iam lá levar-lhes o almoço, eles despediam-se logo delas à entrada e ofereciam-nos as sandes de marmelada e de queijo que traziam. Depois tiravam os sapatos para virem descalços porque eles queriam juntar-se a nós e jogar à bola. Não éramos nós que queríamos chegar a eles, eram eles que queriam chegar até nós.

Como era o Porto da sua meninice?
Era uma cidade intimista, pacata. Uma cidade que acordava de manhã com as sirenes das fábricas a chamarem os trabalhadores. Eu vivia perto da fábrica de passamanarias do pai do Manoel de Oliveira, aquelas sirenes eram o nosso relógio. Isso e os pregões das vendedeiras, as leiteiras eram as primeiras a chegar, já conheciam as pessoas, falavam. Eu passava na rua a caminho da escola e ouvia o tinir das porcelanas de pequeno-almoço de dentro das casas.

Era uma cidade completamente diferente, onde as pessoas viviam com um certo espírito de solidariedade. Menos cosmopolita do que hoje. As pessoas nos bairros conheciam-se bem e na ilha as pessoas eram muito próximas. Andavam todos os dias ao barulho umas com as outras, por causa de coisas fúteis. Mas se houvesse um problema, uniam-se todos. E tinham gestos fantásticos, do género: pessoas que viviam melhor levarem um prato de qualquer coisa a alguma casa, dizendo “veio-me hoje esta fruta da aldeia, ora experimenta”. Sem dizer “pega lá que tu precisas”. Havia uma nobreza nas atitudes das pessoas, a maior parte iletradas. E havia o convívio, que era na rua.

Estávamos em plena ditadura e o Germano Silva só pôde estudar até à quarta classe. Depois, teve de ir trabalhar. Não havia mesmo outra hipótese?
A professora ainda chamou a minha mãe e disse-lhe que eu devia continuar a estudar, mas não podia ser. A minha mãe respondeu que estava à espera que eu acabasse a quarta classe para poder ir trabalhar e ajudar. A professora explicou que havia gente que pagava os estudos, que eu podia ir para o seminário. Mas isto de ir estudar para o seminário já era uma coisa antiga. Eu passei muito tempo em casa da minha avó materna, em São Martinho de Recezinhos, e ela marcou-me muito. Era a Júlia Moleira. Analfabeta, mas conhecia tudo da natureza, e da religião também. Eu ia todos os dias com ela à missa. Fui tantas vezes que eu aprendi aquela lengalenga em latim, do ajudante do padre. Um dia ele faltou e o padre perguntou na sacristia — aos homens, claro, porque as mulheres ficavam todas atrás — se alguém podia ajudar. E eu disse: “Eu ajudo”. “Ajudas? Mas tu sabes?!”. “Sei. Quando o senhor abade disser ad introibo altare ad Deum, eu digo ad Deum qui laetificat juventutem meam“. “Que te ensinou isso?”. Ninguém. Então se eu ouvia ali… E lá o ajudei. Ele depois convenceu a minha avó que eu devia ir para o seminário.

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A família era pobre e não havia dinheiro para fotografias. Esta foi tirada pelo sindicato.

Mas nunca o frequentou. O que aconteceu?
Aquilo eram precisos uns dinheiros, uns enxovais, umas coisas. A minha avó não tinha possibilidades de dar isso, então ela teve a peregrina ideia de ir fazer um pedido a um tio meu, irmão do meu pai, um homem que tinha andado na Primeira Grande Guerra, em França, e que vivia razoavelmente bem. Eu gostava muito dele e ele gostava muito de mim. Mas ele teve uma atitude que me espantou. “O quê?! Um sobrinho meu padre? Filhos da puta! Nem pensar!” Meteu-se logo na carreira, veio ter com o meu pai para lhe dizer que nem pensasse em pôr-me no seminário. Ele era da maçonaria, mas eu não sabia o que isso era [risos].

Teve mesmo de ir trabalhar para ajudar no orçamento familiar. Quantos irmãos tem?
Nós éramos quatro, dois rapazes e duas raparigas. Eu sou o mais velho. O meu irmão José Maria já morreu, tenho a Maria e a Adelaide. A Adelaide também é minha afilhada, fui o padrinho dela, apareceu já quando não se contava.

Aos 11 foi então para aprendiz num retroseiro da Rua de Santa Catarina. Era a profissão que queria, ou foi o que apareceu?
É, fui marçano. Era uma loja que vendia carrinhos de algodão, meias de vidro, tecidos. Eu estava no balcão a tomar conta, porque havia um ateliê atrás, e também limpava a loja, varria o passeio, limpava o vidro da montra. Ganhava 80 escudos por mês, que era a renda de casa. Eu não chegava a levar o dinheiro para casa: ao passar no senhorio, pagava a renda. Para o meu pai era um alívio não ter de pensar nisso. O casal era muito simpático, às vezes pedia-me para ficar até mais tarde e eu jantava com eles.

"Ainda hoje para mim é uma confusão escolher e dar prendas, porque eu nunca tive. No dia de Natal, a gente vinha cá fora e os vizinhos e amigos traziam, ou uma camisola nova, ou uma camisa, e diziam que tinha sido o Menino Jesus. Eu cismava: será que o Menino Jesus não gosta de mim?"

Cheguei a pensar seguir a carreira de comercial, mas não podia porque aquilo exigia apresentação, ter um fato, camisa, gravata. Por isso só lá fiquei um ano e tal. Os sapatos começaram a cambar, o fato a cair em fio, e eu comecei a sentir-me envergonhado porque eles reparavam, falavam, e eu não tinha condições. Então fui-lhes dizer que ia sair dali. Eles quiseram saber porquê, se eu tinha tido algum problema, e eu como não sabia o que dizer, disse que arranjei melhor. E eles: “Não, mas tu vais ficar cá porque nós vamos pagar-te melhor.” Eu disse que ia pensar, mas como não tive coragem de lá voltar escrevi-lhes uma carta, a despedir-me. Entretanto apareceu um lugar numa fábrica, que havia na Rua do Progresso, em Lordelo do Ouro, que era a Fábrica dos Fósforos. E eu lá fui, ganhar 7,5 escudos por semana.

Foi uma diminuição de salário grande.
Muito grande. Passado uns tempos, encontrei um colega da Arrábida, dos jogos da bola…

Jogou futebol? Onde?
Cheguei a jogar nos juniores do Boavista, porque o treinador era meu vizinho na ilha do Cruzinho. Ele via-nos jogar à bola na rua, eu era guarda-redes, e ele disse para eu ir lá treinar. Ainda fiz um ou dois jogos, mas tive de sair porque eu trabalhava, não podia ir aos treinos. De maneira que encontrei um colega do futebol e ele diz-me: “Anda ali para a fábrica dos panos, que eles estão a meter gente.” Era a Fábrica de Lanifícios de Lordelo, na rua de Serralves. Fui para lá ganhar 40 escudos por semana, uma coisa assim, que já era melhor. Fiquei lá desde os 14 até aos 20 e tal anos.

Com tão pouco dinheiro, havia presentes de Natal, festas de aniversário?
Não, não. Por isso, ainda hoje essas datas não me dizem nada. Ainda hoje para mim é uma confusão escolher e dar prendas, porque eu nunca tive. No dia de Natal, por exemplo, a gente vinha cá fora e os vizinhos e amigos traziam, ou uma camisola nova, ou uma camisa, e diziam que tinha sido o Menino Jesus. E eu cismava: será que o Menino Jesus não gosta de mim? Ainda hoje não bebo vinho nem bebidas alcoólicas porque em casa nunca houve. Se o dinheiro às vezes era pouco para pão, muito menos para vinho.

Nem nas noites boémias do jornalismo bebia um copo?
Tentei. Numa ocasião tentei beber um cocktail, mas aquilo… Comi uma vez uma salada de frutas que tinha vinho da Madeira — eu não sabia o que era aquele gosto esquisito — e aquilo deu-me uma soneira que eu adormeci! Não bebo, senão ficava aí tonto. Mas boémia tive. Apanhei a cauda do jornalismo romântico, mas acompanhava com uma boa água.

Devia ser o único jornalista a pedir água, não?
Nah! O Manuel António Pina também não bebia vinho, o José Saraiva não bebia. Ainda hoje no nosso grupo de amigos há três ou quatro que não bebem. O que isto causava era uma certa estranheza nas pessoas. Uma ocasião fui a um congresso de jornalistas em Nice, com o Cáceres Monteiro, o Vítor Serpa, que é agora diretor d’A Bola, e a Maria Antónia Palla, que é a mãe do Primeiro-Ministro. Os jornalistas italianos convidaram-nos para irmos a Génova e a receção era na sede da Martini. Aquilo era só Martinis e eu queria água. Cheguei-me à beira da copa, pedi água e ele, a pensar que eu era espanhol, aponta-me para o xerez. Eu digo que sou português e ele: “Ah, português. Tens vinho do Porto”. Eu insisti e ele: “Aqua? No!” E não me deu. O Vítor Serpa, que assistiu, foi ter com ele e disse-lhe: “Dá-lhe água que ele não bebe por questões religiosas.” Então aí já me deu água.

Num almoço de comemoração dos 75 anos do JN. Germano Silva está no canto inferior direito.

DR

Quando é que decidiu retomar os estudos, e porquê?
O Evaristo, que era o responsável pela biblioteca onde eu ia, começou a dizer que eu devia devia ir estudar, que havia cursos à noite e que eu devia ir para o Núcleo do Sagrado Coração de Jesus, que era interessante. Lá também recebi muitos incentivos. Andei a ver e fui matricular-me na escola em Oliveira Martins. Foram quatro anos a ir todos os dias de Lordelo do Ouro para lá a pé. Às vezes tinha de ir a correr porque saía às 18h00 da fábrica, tinha aulas às 19h00 e tinha de acelerar. Foi nessa escola que encontrei o Nuno [Canavez]. Cheguei a ser chefe de turma lá. Foi um sacrifício muito grande porque eu só saía por volta da meia-noite, chegava a casa já bastante tarde e só nessa altura é que comia. Mas valeu a pena.

Queria outra vida e percebia que só estudando é que podia ir mais além.
Eu queria ir mais além e, sobretudo… A fábrica foi uma escola muito importante para mim em dois aspetos. Primeiro, duas pessoas que eu lá encontrei que foram extraordinárias, pelo convívio, pela forma como abordavam as situações. Aquilo era um mundo muito intrincado, havia conflitos… Eu começava a pensar que, de facto, não era vida para mim e que tinha de sair dali.

E saiu. Mas, antes de sair da fábrica, saiu de casa e foi viver para o Lar da Nazaré. Porquê?
Saí quando nasceu a minha segunda irmã. Eu já tinha 18 ou 19 anos, talvez. A casa era pequena e eu, que conhecia o Frei Adriano, que era o diretor do lar, fui para lá. Aquilo era um lar para rapazes operários. Pagava uma renda simbólica.

Na revista Porto de Encontro, em 2001, escreveu: “Houve cafés nesta nossa cidade que rivalizaram com as academias e, pode mesmo dizer-se, até com a própria Universidade”. Foi através do convívio de café que acaba por arranjar trabalho no Hospital de Santo António?
Não foi bem o convívio. Eu estava ali no Lar de Nazaré e vinha frequentemente tomar café ao Piolho, porque estava perto. Um dia eu cheguei e estava lá um amigo da instrução primária. O Pina dizia com muita pena, “eu não tenho amigos desses como tu”, porque o pai dele era das Finanças e eles andavam sempre de terra em terra, ou seja, quando estava a ganhar um amigo, ia embora. Eu tinha e comecei à conversa com esse colega, o Benjamin, que estava à espera do irmão, que era o chefe do serviço administrativo do Santo António. O irmão chegou, começamos a conversar, eu já tinha acabado os estudos e ele perguntou-me se eu queria ir trabalhar para o Hospital. E foi assim desta forma casual, curiosa, que eu fui para lá.

Também foi de uma forma curiosa que entrou para o Jornal de Notícias, não foi?
Bom, eu trabalhava na secção administrativa, que tinha sob a sua dependência a parte administrativa do serviço de urgência, onde havia um escriturário. Aquilo era feito por um rapaz, o Manuel Bessa, que fazia até às cinco da tarde, e uma rapariga, a Celeste, que fazia das cinco até à meia-noite. Ao sábado e ao domingo ninguém queria fazer aquilo, as famílias tinham as suas coisas, e eu ofereci-me. Ganhava mais 200 escudos, acho, e tinha a quarta e a quinta-feira livres, que me davam jeito.

É aí que eu encontro os jornalistas, porque eles iam à urgência buscar as notícias. Uns velhos, canastrões, com exceção do repórter do Jornal de Notícias, que era um rapaz da minha idade. E eu dava-lhe coisas que aos outros não interessavam e que ele tratava bem, contava histórias. Um dia, pedi-lhe se me arranjava um cartão para ir ver futebol, porque eu gostava de futebol, ainda hoje. E julguei que os jornalistas tinham um cartão com o qual entravam sem pagar. Ele disse que ia ver como é que isso funcionava, mas veio-me dizer que não podia ser, porque eram cartões personalizados, com fotografia. Mas tinha falado com o chefe da secção de desporto, disse-lhe que eu era um gajo porreiro e ele disse que eu podia era ir par lá colaborar, fazendo os jogos de futebol, assembleias-gerais, atletismo, essas coisas.

Eu fui lá falar com ele, era o Freitas Cruz. Olhei para ele, ele olhou para mim e disse-me: “Nós conhecemo-nos!” E lá viemos a descobrir que ele tinha feito tropa na artilharia pesada da Serra do Pilar, eu estive em Penafiel numa artilharia contra aeronaves, tínhamos andado por lá juntos. De maneira que eu entrei como colaborador desportivo em 1956. Para mim foi ótimo, fiquei encantado com aquilo. Pouco tempo depois, chamaram-me para eu entrar para a redação.

"[Na noite do 25 de Abril] Eu tinha estado a trabalhar e saí com o Pina, mais duas pessoas, para irmos comer à Catedral das Iscas, na Rua da Lapa. Ao passar nas traseiras do quartel-general vimos um movimento estranho. E o Pina disse: 'É hoje'"

Lembra-se da primeira tarefa que lhe pediram quando entrou para a redação do JN?
Na altura não havia escolas de jornalismo. Os mestres eram os chefes de redação, normalmente figuras muito cultas, comunicativas, com um espírito de conciliação. Eu tive a sorte de ter tido dois grandes chefes, um muito emotivo que queria tudo para ontem, o outro mais calmo. Um dia, o chefe chamou-me, perguntou-me se eu estava a fazer alguma coisa e disse-me: “Sais daqui, metes-te pela Magalhães Lemos, sobes Passos Manuel, viras à esquerda para Santa Catarina, lá em cima em Fernandes Tomás voltas a virar à esquerda até Sá da Bandeira, de novo à esquerda para a Rua Formosa, aí viras à direita, passas a Cancela Velha e depois vem ter comigo.” “E o que é para fazer?” “Não sei. Vai de olhos abertos, atento.” E eu lá fui, na expectativa de que havia qualquer coisa.

O Notícias ainda era nos Aliados, fiz o caminho mas não encontrei nada. Cheguei lá e disse ao chefe que não vi nada. “Não? Nesse trajeto não houve um grito, alguém que chamou alguém, um carro que travou de repente? Deve haver alguma coisa que te chamou a atenção e quero que, sobre isso, faças uma crónica.” E fiquei a pensar o que é que ia fazer, não tinha visto nada de especial… Então lembrei-me que, na esquina de Sá da Bandeira, tinha parado um bocado e estavam a construir o Palácio do Comércio. Era um fim de tarde de sol e, numa janela, estava uma sardinheira vermelha. Era a única coisa de que eu me lembrava, no meio do cinzento, como que um grito. Escrevi e pus-lhe um título pomposo: “Podia ser um poema de Lorca”. Entreguei, ele esteve a ver, deu-lhe uns toques e publicou. Foi lá que aprendi a contar histórias, que é o que faço nas visitas guiadas ao Porto. Em vez de contar só os factos, conto uma história.

Então conte-me uma história: quando como é que conheceu a sua mulher?
O Jornal tinha um médico, o Dr. José Cabral, que era um homem muito austero, mas muito bom médio. E a minha mulher era funcionária do consultório médico. Uma vez apanhei a gripe nos anos, fui lá, conhecemo-nos e começamos a conversar. Ela pedia bilhetes de cinema, porque os jornais tinham lugares cativos. Ela não era de cá do Porto mas já trabalhava com o médico há muitos anos.

Teve de se fazer de doente muitas vezes ou ofereceu-lhe dois bilhetes e fez-se de convidado para um deles?
Não, não. Foi através da conversa, normalmente, e surgiu aquilo que vocês hoje em dia dizem, a química. Não é?

E juntos tiveram uma filha. Tem netos?
Sim, é professora de física e química, essas coisas esquisitas. Netos não tenho.

A sua mulher faleceu há dois anos. Não se voltou a apaixonar?
Eu?! Não, não. Eu quero é paz e sossego.

"A censura obrigava-nos a ser concisos e a ser criativos. Por exemplo, não podíamos dizer que um tipo se tinha enforcado em casa, então dizíamos: 'Morreu vítima de um acidente em casa que lhe provocou a morte por asfixia.'”

Antes de lhe fazer a típica pergunta sobre onde estava no 25 de Abril, tenho de lhe perguntar onde estava no 14 de maio de 1958, quando Humberto Delgado ousou desafiar Salazar como candidato independente à Presidência da República e, no Porto, tinha 200 mil pessoas a aguardá-lo.
Eu estava lá, em São Bento. Estava a trabalhar.

Era apoiante dele?
Havia na redação duas fações: o Arlindo Vicente, que era o candidato comunista, e o Humberto Delgado. Eu era do Humberto Delgado.

Teve muitos problemas com a censura?
Imensos. Os artigos eram todos censurados. Não só cortando o mal que se dizia de Salazar. Por exemplo, um dia morreu a mãe do bispo António Ferreira Gomes e não se pôde noticiar. Para não lembrar as pessoas de que ele estava exilado. A censura obrigava-nos a ser concisos e a ser criativos. Por exemplo, não podíamos dizer que um tipo se tinha enforcado em casa, então dizíamos: “Morreu vítima de um acidente em casa que lhe provocou a morte por asfixia.” Já se sabia o que era.

Como foi o seu 25 de abril?
Estava no jornal. Nas redações dos jornais já se sabia que ia acontecer. O Manuel António Pina tinha acabado de sair da tropa, tinha muitas ligações naquele meio, e sabíamos que estava iminente. Naquele tempo os jornais funcionavam até às quatro da madrugada. Eu tinha estado a trabalhar e saí com o Pina, mais duas pessoas, para irmos comer à Catedral das Iscas, na Rua da Lapa. Ao passar nas traseiras do quartel-general vimos um movimento estranho. E o Pina disse: “É hoje.” Voltamos para o jornal e começou tudo. Ficámos ali a fazer edições especiais, acho que durante dois dias não tomei banho [risos].

No jornalismo foi colaborador, estagiário, repórter informador, repórter, redator, sub-chefe e, depois do 25 de abril, foi promovido a chefe de redação. Alguma vez sofreu pressões políticas?
Nem por isso. Tive mais do futebol do que da política! Aquelas pressões normais.

Qual foi a manchete que mais orgulho lhe deu ter conseguido?
Houve muitas, mas acho que foi a do crime da Rua do Sol, nos anos 60. Havia uma senhora que tinha um estabelecimento de solas e cabedais para os sapateiros, e vivia sozinha por cima. Houve uns dias em que ela não abriu, o merceeiro da frente estranhou e chamou a polícia. Os bombeiros arrombaram a porta e a senhora estava morta, tinha sido assassinada. Há o alarme policial e eu fui chamado para cobrir a história. A polícia não tinha grandes vestígios de nada, não houve roubo porque o dinheiro estava na gaveta, a única coisa que a família notou foi a falta de uma pulseira, que ela trazia sempre com ela.

Pegado ao merceeiro havia um sapateiro, que me disse: “Olhe, na sexta-feira andaram aí uns tipos esquisitos, um deles tinha uma pasta, entrou, saiu, voltou a entrar, andavam aí…” Aquilo gerou um grande mistério. Eu tinha muitos contactos na Judiciária e ia escrevendo umas reportagens, que serviram de alavanca ao jornal — que estava numa situação menos boa — para vender muitos jornais. O chefe de redação chegava e perguntava-me: “O que é que há do crime?” Eu dizia que não havia nada e ele mandava-me ir à procura. “Estamos a vender papel!”. Andei a alimentar aquilo quase durante um mês.

Até que um dia fui ter com o sapateiro e disse-lhe: “Ó Rogério, estou lixado. Já não tenho nada que fazer”. E ele diz-me: “Vais ficar por aqui? Então aguenta aqui um bocadinho que eu tenho de ir a casa e já volto.” Enquanto ele foi lá buscar um material que lhe faltava eu sentei-me. Tinha lá um poster com a equipa do F.C. Porto e eu comecei a ver: Barrigana, Virgílio e tal, e havia lá um que eu não estava a reconhecer porque o papel estava meio engelhado. Aproximei-me para ver o nome, toco ali e sinto qualquer coisa. Espreito por trás e era a pulseira. Eh pá. Ele voltou, eu não disse nada e fui embora. Cheguei ao jornal e disse ao chefe de redação para irmos tomar um café, e expliquei-lhe. Aguentamos uns dias. Havia uns agentes que eu conhecia e fiz um acordo com um deles: eu digo-vos onde estava a pulseira e vocês prendem o gajo às duas da manhã. Assim o fotógrafo aparece e o jornal no dia seguinte já tinha a fotografia. E assim foi. No dia seguinte, lá vinha no jornal algo do género: “Rogério sapateiro: o menos suspeito é o culpado” [risos]. Fui promovido a redator por causa desse trabalho.

Ao centro, presidindo à comissão de trabalhadores do JN. Reformou-se em 1996, depois de ter contribuído também para o Expresso, Jornal Novo, Flama, O Jornal e O Século Ilustrado.

DR

Em simultâneo contribuiu também para o Expresso, Jornal Novo, Flama, O Século Ilustrado e O Jornal.
É, desde que não fosse para um diário, na altura podia-se fazer isso. Fui um dos primeiros correspondentes do Expresso, mas depois passei para O Jornal, que também era semanário e que depois se tornou na Visão. Na altura os jornais pagavam mal. Quando os salários começaram a subir é que começaram a pedir exclusividade.

Reformou-se precisamente há 20 anos, mas continua cheio de trabalho. Porque é que se quis aposentar?
Porque tinha projetos para concretizar. Publicar os meus livros, as crónicas. Em 1996 também houve uma reviravolta no jornal. Do Pacheco Miranda passou para o grupo da Lusomundo, depois passou para a PT, mudou a direção e eu entendi que havia um ciclo novo e que quem chega quer renovação. Achei que devia sair pelo meu pé antes que me chamassem para me perguntar se eu me queria reformar. Em 1996 fiz 65 anos, de maneiras que perguntei à Maria Antónia Palla, que era a presidente da Caixa dos Jornalistas, o que devia fazer.

Uma funcionária ligou-me e a reforma que eu teria se me aposentasse era boa. E eu pensei: “É já”. O maior investimento que eu fiz foi ter trabalhado tanto. Saí. A primeira pessoa a quem comuniquei foi ao Frederico Martins Mendes, que era o diretor na altura. “Vais-te aposentar? Não vais nada, que eu preciso de ti aqui”. O próprio Pacheco Miranda, que já não tinha nada a ver com aquilo, também veio ter comigo admirado. Eu disse-lhe: “O senhor diretor também saiu e aquilo continuou, agora também vai continuar.” Pediram-me só que eu continuasse com a crónica e eu ainda hoje continuo.

"A mim nunca ninguém me ouviu dizer duas coisas: 'Quem me dera voltar atrás' e 'Antigamente é que era bom'”.

Às vezes sinto-me um homem rico. Tenho as crónicas no JN e na Visão, tenho os direitos de autor, a maior parte dos passeios faço de graça. Tenho saúde, posso comprar um ou outro livro mais caro, não tenho dívidas, tenho a casita onde moro, tenho outra em Esmoriz. Faço o que quero, vou almoçar onde quero, acho que os ditos ricos vivem mais preocupados do que eu.

Hoje, os ordenados dos jornalistas baixaram muito. Que outras diferenças encontra no jornalismo que se fazia nessa altura e o que se faz agora?
A mim nunca ninguém me ouviu dizer duas coisas: “Quem me dera voltar atrás” e “Antigamente é que era bom”. O jornalismo hoje é diferente. Quando eu comecei, para ligar para os bombeiros de Avintes, por exemplo, eu discava um algarismo e alguém do outro lado da linha dizia “troncas”. Eu dizia “Avintes Oliveira Vilar”, que era a estação que servia essas três freguesias. Eu ouvia a menina a mudar as cavilhas, aparecia outra a dizer “Avintes Oliveira Vilar” e eu dizia “Avintes número 2”, que eram os bombeiros. Veja o tempo que demora a fazer este circuito. Vocês hoje pegam no telemóvel, ligam para Tóquio ou para Nova Iorque e em segundos estão em contacto com as pessoas. A informação é muito mais rápida. Havia os telexes, que estavam numa sala isolada. Nós acompanhávamos um ministro, um presidente da República, e depois tínhamos de ir a correr para os telexes, às vezes eram filas… A maneira como a informação chega e a maneira de a tratar são são melhores nem piores, são diferentes. Naquela altura havia tempo. Mas sempre houve bons e maus jornalistas, bons e maus jornais. E vai continuar a haver.

Para além dessas diferenças, no passado o jornalista era muitas vezes visto como boémio. As redações fechavam tarde e ninguém ia para casa, mas sim para os botecos e outros estabelecimentos. O Germano era muito boémio?
O normal. O jornal fechava tarde, eu preferia o turno das 22h00 às 04h00. No edifício onde hoje é a FNAC [Santa Catarina], no rés-do-chão era um café, no primeiro andar era os bilhares, no segundo havia pingue-pongue, uma série de coisas. E no último andar havia um cabaré. Entrava-se por um elevador e a gente ia para lá quando saíamos, ainda apanhávamos as últimas variedades. Havia striptease e tinha uma orquestra, havia mesas e quem tinha dinheiro ceava, porque aquilo era caro. Às vezes estávamos lá sentados e vinha um empregado com uma garrafa de uísque. “Para que é isso?” O empregado, que era o Faísca, lá dizia quem o tinha mandado servir-nos. Mandávamos para trás. Havia uma malta que andava sempre de noite. Ao Basílio Sousa Dias chamavam Basílio Sousa Noites.

"[Manuel António Pina] Foi um grande amigo. Foi ele que me incentivou a publicar as crónicas em livro, e fez o prefácio do primeiro livro, que é lindíssimo. O prefácio é mais importante que o livro."

Desses 40 anos de jornalismo ficaram amigos. O grupo Amigos à Espera do Pina, por exemplo, ainda se reúne?
Sim. O Pina era o jornalista que eu conhecia com ideias. Ele era um poeta, um intelectual. Era um homem que pegava numa notícia e fazia dela uma crónica. Depois tinha a capacidade de estar tão à vontade a falar de poesia e de coisas elevadas como de repente estava a falar de coisas corriqueiras com o mesmo entusiasmo. Eu andava muito com ele. Tanto que havia amigos, como o José Carlos Vasconcelos, que quando queriam falar com ele ligavam para o meu telemóvel, a perguntar se ele estava por perto porque ele não atendia. Fui várias vezes com ele ao Sabugal, onde ele nasceu, e ele não tinha nenhum sentido de orientação, perdia-se sempre.

Se calhar por isso é que chegava sempre atrasado.
Sempre, sempre! Uma vez íamos para uma homenagem ao Eduardo Lourenço, em Almeida, e fomos parar a Espanha. E contava histórias… Nós tínhamos um grupo de amigos, íamos sempre cear ao Convívio e o Pina chegava sempre atrasado. Quando chegava, era sempre: “Mas tu não sabes o que me aconteceu. Nem imaginas!”. A gente telefonava-lhe e ele dizia sempre que já vinha a caminho. Não vinha nada, a gente ainda ouvia os gatos em casa! Era uma pessoa excecional, com um grande coração e o jornalista que eu conheci com talento. Saíamos do jornal e íamos ver sessões de cinema à meia-noite para o velho cinema Águia D’Ouro e para o Pedro Cem, que já não existem.

Todos os anos, agora em setembro, eu ia com ele jantar a casa do Zé Carlos Vasconcelos em Freamunde. Combinávamos às 20h00 e ele garantia que não se ia atrasar. Atrasava-se sempre… Perdia a chave, depois perdíamo-nos nas rotundas, chegávamos sempre atrasados. Com ele aconteciam as coisas mais incríveis. Um dia saí com ele do jornal, vínhamos para um convívio e ali à entrada da Boavista há umas ilhas. Vimos uma senhora com uma criança ao colo, ela olhava aflita, e ele diz-me: “Ó Germano, a senhora deve querer ir para o hospital com o filho, temos de a levar”. Parou o carro, disse-lhe para entrar, ela agradeceu e já no carro o Pina perguntou. “Então, o que é que tem o menino?” “Não tem nada, fuja que ele vem aí com uma espingarda!”. Afinal ela tinha tido uma zanga com o marido, ele vinha com a espingarda [risos]. Fomos levá-la ao Carvalhido, a casa dos pais. Aconteciam as coisas mais inimagináveis, era aliciante andar com ele.

Uma ocasião ele foi receber um prémio a Lisboa e eu acompanhei-o, fomos de carro. Claro que nos perdemos, e ele: “Está um nevoeiro do caraças!” E eu digo: “Ó Pina, não está nada, tu é que vais a fumar o charuto. Ora pára o carro e abre a janela.” “Opá, realmente isto está aqui cheio de fumo.” Chegámos a Lisboa, fomos comer um gelado ou uma coisa qualquer e caiu-lhe uma coisa no pulôver. Ele não queria ir receber o prémio com a nódoa, então íamos a passar ali na Rua Garrett, ele aponta para um pulôver na montra e eu digo-lhe: “Olha que isso deve ser caríssimo, olha p’ra este estabelecimento…” “Não, hoje em dia estas coisas não são caras”, disse ele. Entrámos, ele pediu para ver a aquilo, eu a ver as senhorecas e o funcionário todo mesuras para elas, a mandar cumprimentos para o senhor General. O Pina experimentou, disse que levava já vestido e só depois é que perguntou quanto era. Era um balúrdio! As coisas aconteciam-lhe naturalmente. Quando ele adoeceu [2012] formámos o Grupo dos Amigos à Espera do Pina.

Que é mesmo uma associação formal e que, segundo me contaram, o Germano é o presidente da assembleia geral.
Sim, feita no notário. A ideia é manter viva a memória do Pina. Nos aniversários fazemos sempre umas coisas. Ele é muito recordado em escolas, em Câmaras, bibliotecas.

Sente muito a falta dele.
Sim… Tinha com ele uma ligação muito afetiva. Nós éramos uma espécie de confidentes um do outro.

Aos 84 anos, tem uma memória e uma saúde invejáveis. "Isso é que me dá ânimo. E uma certa estabilidade." ©Ricardo Castelo / Observador

© Ricardo Castelo / Observador

Quando estava a falar-me das fotografias que trouxe, disse que foi o Manuel António Pina que o incentivou a reunir as crónicas em livro. Quando é que se começou a interessar pela história do Porto?
A bem dizer foi muito cedo. Quando vivia na ilha do Cruzinho, o meu avô materno trabalhava aqui no colégio Almeida Garrett e, aos fins de semana, ia à terra. Quando regressava trazia umas coisas, umas cestas com fruta, salpicão, broa, e eu vinha buscá-las. Sempre que vinha escolhia um caminho diferente. O interesse começa verdadeiramente nessa altura. O meu irmão, José Maria, trabalhava aqui numa tipografia, no edifício onde era a Renascença. Era lá que se imprimiam os boletins da Câmara Municipal do Porto. Um dia, ele levou para casa uma coisa qualquer embrulhada numa folha e ela trazia uns textos sobre os chafarizes do Porto. Eu pedi-lhe para me trazer mais e ele ia-me trazendo as páginas, uma a uma. Aquele livro da Ilse Losa, O Mundo em que Vivi, li-o eu primeiro porque ele foi impresso lá e ele trazia-me as páginas.

Mais tarde, já no jornalismo, há um dia em que há um incêndio num edifício em Santa Catarina. Mandam-me para lá mas, quando cheguei, não era nada, só fumo negro que saía pela janela por causa de um ferro de engomar que alguém tinha deixado ligado. Eu lá fiz uma notícia vulgar sobre o aparato. No dia seguinte, o chefe de redação pergunta-me se eu já tinha lido o [O Primeiro de] Janeiro. O jornalista deles, o António Cordeiro, de quem depois me tornei grande amigo, escreveu um texto comprido porque naquela casa tinha nascido e vivido o Arnaldo Gama, grande escritor. O chefe de redação disse-me: “O não saber não é mau. O não querer saber é que é pior. Para seres um bom repórter da cidade, tens de conhecer a cidade.” Aquilo chamou-me a atenção e eu comecei a procurar. Na redação havia um anuário, que era a Internet da altura, era ali que íamos ver quem eram as pessoas e saber sobre lugares, e eu comecei a ler sobre os nomes das ruas, dali conhecia as histórias por trás dos nomes, as pessoas, e ia escrevendo nos cadernos.

Quando é que começou as crónicas?
Um dos diretores remodelou toda a última página do jornal, chamou-me e disse que queria que eu todas as semanas fizesse lá duas colunas, com gravuras, em que eu contasse uma história sobre o Porto. Eu pedi que o título fosse “À Descoberta do Porto” e comecei aí, uns dois ou três anos antes de me aposentar.

Costuma voltar ao Bairro do Cruzinho?
Agora não muito, porque as pessoas que estavam lá envelheceram. Do meu tempo até já há pouca gente. A última vez que fui lá estavam umas pessoas que começaram a chorar, emocionaram-se, o que é natural. Há dias, o General Eanes foi condecorado e emocionou-se. Um jornalista perguntou-lhe porque é que o militar chorou, e ele disse que não era só das circunstâncias. É também da idade. Nessas coisas, a idade pesa. Eu tinha um colega com quem evitava encontrar-me porque ele começava a falar-me de coisas, aquele saudosismo, e começava a chorar. É por isso que eu quis nunca me prender a nada. A pessoa ficar com aquela prisão a uma terra e assim…

A receber a condecoração pelas mãos de Rui Rio

DR

Já assistiu a várias mudanças na cidade. Se há uns anos o problema era a desertificação, hoje o Porto está cheio de gente. A projeção internacional e o turismo são grandes, as rendas no centro sobem, os edifícios renovam-se. Como vê a fase atual que a cidade está a viver?
Acho que a cidade está com uma dinâmica muito grande, está com uma dinâmica cultural importante, a Câmara conseguiu superar o problema da Feira do Livro e faz uma feira que é um sucesso. Agora precisa também de apostar na qualidade de vida para as pessoas que cá moram. A movida é uma coisa interessante. Vim uma vez, mas tive azar porque houve pancadaria por todo o lado. Eu gosto mas, por exemplo, para vir para aqui apanhei o autocarro ali em baixo, porque estava atrasado, e o autocarro esteve ali encurralado na Rua de Ceuta porque estavam a fazer cargas e descargas a uma hora inconveniente, carros estacionados em segunda fila… Sei de famílias que viviam na Rua da Picaria que estão a ir embora, porque não conseguem viver com o barulho. É preciso conciliar tudo e essa é uma das funções da autarquia.

Apesar de ter recebido de Rui Rio uma medalha da cidade, isso não o impediu de se queixar bastante do seu mandato. Numa entrevista, chegou a dizer que a cidade estava apagada, sem carisma, sem chama, à venda, decadente, a cair. E que isso poderia ser diferente se a administração da Câmara mudasse.
Eu já não me lembro disso [risos]. Eu queria aqui salvaguardar que sou amigo do Rui Rio, conheço-o e tenho por ele muita consideração como político e como pessoa. Achei que a administração municipal se esqueceu das pessoas. Fez uma gestão muito voltada para as contas, com a máquina de calcular na mão, como dizia um colega. Fez coisas interessantes, tapou todos os buracos que a Porto 2001 tinha deixado por aí, mas esqueceu-se da Cultura.

O maior património da cidade são as pessoas. Eu ando aí com os passeios, ando a pé nas ruas e às vezes, para ir daqui ali, demoro uma data de tempo porque sou abordado nas ruas pelas pessoas, que me falam dos seus problemas e pedem-me para falar disso. Eu explico que a minha crónica não é para falar disso, mas as Câmaras têm de ouvir as pessoas.

Está satisfeito com a atual administração?
O estacionamento, o trânsito, o caos que se vive na cidade é horrível. Agora, a Câmara tem trabalhado bem no aspeto cultural, tem correspondido, embora me pareça que às vezes haja um excessivo voltar para uma cultura muito intelectual. Eu gostava que a cidade voltasse a ter os teatros de rua que tinha antigamente, nos larguinhos, onde se faziam representações ao ar livre nas noites de verão. Gostava muito que, nas festas de S. João, se incluíssem espetáculos que têm a ver com a cultura popular. Temos espetáculos de revista feitos pelo Arnaldo Leite e pelo Carvalho Barbosa que são espetaculares e que têm a ver exatamente com a cultura popular da cidade. A minha mãe andou anos a cantar as canções de um espetáculo que ela viu e gostou muito. Seria bom para atrair outros públicos.

Quando finalmente acedeu a marcar a entrevista, disse-me que trabalha mais agora, que tem 84 anos, do que quando era jornalista a tempo inteiro. E que o trabalho é tanto que, às vezes, só gostava que o “deixassem em paz”. Imagina-se a parar?
É verdade que hoje trabalho muito mais do que trabalhava antes de me reformar. Um dia vou parar, mas como não sei quando, deixo-me andar [risos]. Eu não olho para a frente em termos de “deixa-me cá fazer isto porque não sei se…”. Não. Periodicamente vou ao médico, vou lá de três em três meses medir as tensões e tal, e a minha consolação é quando ele me diz: “Está pronto para ir para a tropa.” Isso é que me dá ânimo. E uma certa estabilidade.

Quando percebeu porque é que tinha sido chamado à Reitoria da Universidade do Porto, comoveu-se. “Oh sr. doutor, mas eu não sou académico”, disse. “Mas vai passar a ser!” ©Ricardo Castelo / Observador

© Ricardo Castelo / Observador

Em 2005 recebeu das mãos de Rui Rio a medalhas de mérito de ouro da Câmara Municipal do Porto. Dois anos depois, a Câmara de Penafiel fez o mesmo. No entanto, no dia 3 de novembro, passará a ser doutorado: a Universidade do Porto vai atribuir-lhe o título de Honoris Causa. O reitor, Sebastião Feyo de Azevedo, justifica a proposta dizendo que “não haverá, em todo o panorama nacional, alguém que de uma forma tão completa seja identificado com o gosto pela história de uma cidade como Germano Silva o é pela do Porto”. O que é que isto significa para o menino que ia para a escola descalço e que, aos 11 anos, teve de ir trabalhar para ajudar a pôr comida na mesa da família?
Sabe, quando em junho me telefonaram da Reitoria a dizer que o senhor reitor queria falar comigo, eu tinha feito um passeio na semana anterior sobre o S. João, a convite da Reitoria, e pensei que era por causa disso. E pensei: “Mais trabalho…” Nesse dia já tinha outra reunião, mas a secretária insistiu e eu lá fui, completamente descontraído. Eu cheguei, logo a seguir chegou o pró-reitor, entrei, e o senhor reitor foi logo direto ao assunto: “Olhe, eu chamei-o aqui porque houve umas reuniões e há uma proposta para que você seja doutorado Honoris Causa, o que eu acho perfeitamente justo. E devo dizer-lhe que pela primeira vez na história você foi aprovado por unanimidade, não houve ninguém a levantar uma dúvida.” Eu comovi-me. “Oh senhor doutor, mas eu não sou académico.”. “Mas vai passar a ser!”.

Comovi-me porque me lembrei do passado e de todas as ajudas que eu tive para chegar aqui. Se não fosse o Jornal de Notícias eu não tinha o acesso ao público, ninguém lia as crónicas sobre o Porto. Sabe que eu ouvi essas palavras com apreço, mas a verdade é que, antes de mim, passaram outros. O Magalhães Bastos foi um cronista do Porto excecional. O próprio Eugénio da Cunha e Freitas. Eles marcaram épocas. Eu poderei estar a marcar uma época, mas desaparecem uns e aparecem outros. O que me dá alguma satisfação é passar na rua e as pessoas abordarem-me dizendo que não sabiam de algo e que souberam pela minha crónica. Isso é que me satisfaz, que as pessoas sintam que vale a pena viver em determinada rua porque a rua tem uma história e que por ali passou fulano e beltrano. É nesse sentido que eu continuo a escrever e sinto-me recompensado. Eu costumo dizer que tenho andado a fazer tudo o que gosto e ainda me pagam por elas. Não há melhor satisfação do que essa.

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