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Paulo Spranger

Paulo Spranger

Dois textos para recordar Gonçalo Ribeiro-Telles, um visionário utópico

Devemos-lhe jardins urbanos, a protecção legal dos parques naturais ou a denúncia dos empórios do betão. Uma das melhores formas de o homenagear é lê-lo. Vasco Rosa escolheu dois textos.

Paladino do bom senso dos ecologistas, mestre de muitos arquitetos paisagistas e grande referência dos monárquicos portugueses desde 1974, Gonçalo Pereira Ribeiro-Telles celebrou, a 25 de maio de 2017, 95 anos do seu nascimento. O aniversário não foi registado, da mesma maneira que autarcas e outros decisores públicos e políticos encolhem os ombros à lição deste visionário utópico, cujo desvelo pela terra portuguesa não encontra rival.

Devemos-lhe jardins urbanos muito aprazíveis, a ideia de hortas urbanas, a proteção legal da reserva natural e dos parques naturais, e também a frontal denúncia dos empórios do betão, da celulose e da energia, acerca dos quais escreveu há já trinta anos — premonitoriamente — que “as perspetivas de cada um destes poderes económicos, comandados ou comandando interesses privados, profissionais e corporativos, influenciando serviços do Estado, são meramente sectoriais e não se integram numa visão global do desenvolvimento do país” (itálicos meus).

Como muitas vezes acontece, a melhor maneira de homenagear pensadores (e Gonçalo Ribeiro-Telles foi-o também; veja-se o seu Para Além da Revolução, Salamandra, 1985) é lê-los. Por isso, além de recomendar o recente Textos Escolhidos, um livro organizado pelo arquiteto Fernando Santos Pessoa e publicado pela Argumentum, e de A Árvore em Portugal — esgotado, talvez apareça numa biblioteca, num alfarrabista —, escrito em parceria com o seu mestre Francisco Caldeira Cabral (Assírio e Alvim, 1999) e bibliografia essencial em cursos de paisagismo, fomos buscar ao fundo das prateleiras dois textos de Ribeiro-Telles que merecem atenção.

O primeiro, publicado aos 24 anos, num jornal católico destinado ao mundo rural, aborda a construção de casas no campo, com recomendações sobre situação, organização espacial interna e materiais de construção, em que já é patente o respeito pelos “saberes acumulados” e o elogio da paisagem como valor patrimonial. O segundo texto, de 1973, é um comentário à obra do seu congénere brasileiro Roberto Burle Marx (1909-94), cuja presença em espaços públicos (e alguns privados) na bela cidade do Rio de Janeiro é suprema demonstração dos benefícios da arte da jardinagem — a que Gonçalo Ribeiro-Telles também dedicou uma parte da sua longa vida.

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As capas de Textos Escolhidos e A Árvore em Portugal

A habitação rural

“O Arado. Voz dos Campos de Portugal” (1946)

Jornal mensal da Juventude Agrária Católica

É a Família o núcleo fundamental da sociedade em que vivemos, sendo portanto a casa o seu complemento indispensável e a mais importante cadeia que liga o homem à terra que trabalha. A ela devemos pois ligar grande parte da nossa atenção e carinho, procurando que seja o alegre refúgio após um dia de labuta.

Na casa se passam os melhores e também os mais sérios momentos da vida: criam-se os filhos, aconchegam-se os velhos, sofrem-se as doenças e a melhor morte será sob o seu tecto.

Um pequeno livro há pouco aparecido traz a verdadeira definição: “Uma casa rural é o elemento básico do bem-estar, alegria e prosperidade do trabalhador, o grande meio para a fixação à terra, para que reviva a tradição das famílias rurais”.

Vamos procurar, numa série de artigos, apresentar as condições elementares e necessárias para que a melhoria da habitação traga todas as vantagens de ordem material e espiritual. Procuraremos criar paralelamente o gosto pelas antigas e naturais formas da Casa Portuguesa, a que tão bem se ligava a santa austeridade das famílias que arrancavam da terra o sustento de uma nação que lutava pelo engrandecimento da fé e do império.

A situação da casa

A situação da casa no campo está estreitamente ligada às condições locais de salubridade, de secura e de relevo do terreno. As casas mais antigas das aldeias são uma prova cabal do desvelo que os nossos antepassados tinham pela boa situação da sua casa; desta maneira, as habitações erguiam-se na maior parte dos casos a meio da encosta, onde menos se fazia sentir a agrura do clima, não ocupando as férteis leiras das baixas tão necessárias para a cultura. Infelizmente, esta noção de equilíbrio já hoje em grande parte se perdeu, porque bastantes são as edificações erigidas nestes últimos vinte anos que ocupam terrenos mais próprios para a charrua do que para alicerces de construção que não terão as condições necessárias para uma vida sadia.

É evidente a conveniência de dar preferência para construção a lugares secos, abrigados dos ventos dominantes, de fácil acesso, com água potável perto, não esquecendo também o aspecto agradável e convidativo que o ambiente criará à futura casa. O respeito e o partido a tirar das árvores idosas que porventura existam no local onde se vai edificar a casa deve sempre estar no espírito do futuro habitante; a sombra acolhedora de um velho castanheiro ou carcomido sobreiro é dom precioso que se não pode pôr de parte.

A situação da habitação deve estar também dependente das restantes dependências do casal, se porventura existirem. Será o agricultor e a sua família que terão de atender a inúmeros cuidados da vida doméstica e agrícola. Por consequência, o estábulo, o palheiro, os silos, a nitreira, o forno, a pocilga e demais dependências deverão formar um todo fácil de vigiar e onde se possa acorrer facilmente. As tulhas para recolha de cereais poderão encontrar-se na própria casa de habitação.

"Uma vez escolhido o local onde se vai construir a casa, surge o importante problema da disposição a dar aos diversos compartimentos interiores. De uma divisão inteligentemente delineada resultam importantes circunstâncias de ordem moral, racional, higiénica, económica, e estética."

Escolhido o lugar da futura casa, levanta-se outro importante problema, que é o da orientação conveniente a dar às diversas dependências da habitação. O lavrador que vive no lugar tem geralmente ideias muito sensatas sobre o assunto, não se devendo desprezar o exemplo das casas já construídas, principalmente as mais velhas, visto serem fruto de larga experiência acumulada por muitas gerações que talvez tivessem sentido melhor que nós o meio em que viveram.

A porta geralmente convém que fique voltada a poente, para receber a maior quantidade de luz possível durante o dia. Os quartos de dormir assim como a casa de estar devem quanto possível ficar voltados para o quadrante Sudoeste.

Não é no entanto de mais frisar que a orientação e disposição da casa deverá atender sobretudo às normas mais seguidas na região.

Divisão interior da casa

Uma vez escolhido o local onde se vai construir a casa, surge o importante problema da disposição a dar aos diversos compartimentos interiores. De uma divisão inteligentemente delineada resultam importantes circunstâncias de ordem moral, racional, higiénica, económica, e estética.

Ninguém poderá, por tão claro se mostrar, diminuir os perigos que afectam as famílias (principalmente aquelas que se encontram nas proximidade de centros urbanos), vivendo num compartimento único, onde a promiscuidade entre os seus elementos poderá causar, além dos inconvenientes morais, que se torna escusado salientar, sérios e graves problemas de saneamento e higiene que só pela melhoria das condições da habitação poderão resolver ou atenuar-se. A sábia divisão interior duma casa, por pequena que seja, visto inferir duma maneira evidente no aspecto exterior da habitação, pode portanto ser um meio de valorização das famílias, pelo culto e conhecimento das formas e condições da casa tradicional portuguesa. O melhor aproveitamento do terreno a que corresponderá uma maior economia na construção, é facto também a atender.

No traçado da planta duma casa para camponeses, temos a determinar as seguintes condições: 1) direcção dos ventos dominantes; 2) face mais batida pelo Sol; 3) disposição que melhor convém aos serviços agrícolas e domésticos.

Convém que as divisões, como os quartos de dormir, fiquem abrigados dos ventos e bem batidos pelo Sol, nunca devendo estar em ligação directa com locais destinados à permanência de animais. Na casa da família rural existirá, além do quarto dos pais, um para os filhos e outro para as raparigas. A melhor orientação para os quartos será, pois, a voltada a Sudoeste.

A cozinha, que nas casas mais humildes poderá sem inconveniente servir de casa de estar, deve também encontrar-se isolada de sítios onde permaneçam animais. Fica situada geralmente do lado oposto ao dos quartos. Merecerá especial cuidado a situação e construção da lareira.

A disposição interior tem ainda de servir da melhor maneira os restantes cómodos do casal; assim será fácil acudir ao que se passa no estábulo, na pocilga, na horta, na eira ou em qualquer outra dependência sem que a má disposição duma porta dificulte ou obrigue a rodeios escusados.

Mais uma vez se terá que ter em conta, ao traçar a planta, a divisão muitas vezes simples e criteriosa, que apresentam as casas mais velhas da aldeia. Devemo-nos ainda lembrar que as condições rurais e de meio ambiente variam de província para província, não sendo por vezes lógico adoptar numas o que é de uso e vantajoso noutras.

Materiais de construção

Ao termos em vista a construção duma casa em qualquer aldeia do nosso país, não nos podemos alhear da natureza e qualidade dos materiais que vamos empregar na obra.

A natureza dos materiais de construção atende a diversas condições de ordem económica, nacional, climática, local e inteiramente relacionadas, que impossível será descortinar onde termina a influência duma e começa a de outra.

É evidente que o construtor procurará empregar os materiais que mais barata tornem a edificação; muitas vezes são estes simples e económicos meios da região que tornam a casa aprazível e absolutamente integrada na paisagem local. O pensamento de racionalidade, formado à custa dum inúmero complexo de causas, influi também duma maneira clara na preferência duns materiais por outros. O clima pode-se dizer que quase por si só desenhou as linhas da cobertura, traçou as janelas e calculou o tamanho das portas, também na natureza do material de construção a sua influência se nota decisivamente.

"O cimento armado, moderno material de construção, nunca deve ser empregado nas nossas obras rústicas como elemento fundamental. Mesmo economicamente, não ganhamos com a sua aplicação em massa. As casas de cimento perdem aquela noção de solidez, largueza e austeridade tão comum às habitações de Portugal."

A existência em abundância dum ou doutro elemento de construção numa região implica como medida económica e talvez também sentimental a sua escolha.

De há cinquenta anos para cá, com o aumento e melhoria das comunicações, o progresso industrial e a introdução pelo cinema, revistas e livros, de gostos estranhos à nossa índole, perdeu-se em grande parte o amor pelas tradicionais linhas da Casa Portuguesa. São exemplo frisante esses horíveis chalets alpinos, tão abundantes em vilas estremengas, estranhos paradoxos numa terra palpitante de cor e de sol. Não menos deslocadas se encontram as inexpressivas construções de cimento armado, cópias fiéis de modelos de terras distantes e diferentes.

Realmente, só o abastardamento dum gosto e o constante e triste desprezo pela tradição permitiria o esquecimento e abandono de muitos materiais de construção característicos do nosso país.

Qual é a tinta de óleo que poderá substituir tanto no interior como no exterior duma casa a fresquidão e aconchego duma parede caiada?

O caiado, já não citando vantagens higiénicas do seu emprego, dá às paredes uma tal ligação com a Natureza, que triste será nas nossas aldeias substitui-lo por qualquer opaca e sensível tinta de óleo.

O cimento armado, moderno material de construção, nunca deve ser empregado nas nossas obras rústicas como elemento fundamental. Mesmo economicamente, não ganhamos com a sua aplicação em massa. As casas de cimento perdem aquela noção de solidez, largueza e austeridade tão comum às habitações de Portugal.

O emprego do tijolo não deve ser extensivo de norte a sul. Devemos sempre ter o cuidado, nas regiões onde é comum e mesmo tradicional a sua aplicação, de não cair na cópia mais ou menos integral de construções industriais francesas ou inglesas.

Onde no entanto devemos ser intransigentemente portugueses é na adopção da telha de canal. A telha portuguesa proteje melhor a construção do que a do tipo marselhês. Os telhados construídos à antiga apresentam linhas mais graciosas dada a mais solta articulação do material. Tem também que se afirmar, no entanto, que o emprego de telha de canal é infelizmente mais dispendioso. Já hoje algumas fábricas apresentam tipos de telha que se aproximam bastante do efeito produzido pela telha de canal, mas de mais económica utilização.

Em todos os aspectos duma construção com janelas, varandas, portas, etc., devemos dar a nossa preferência aos elementos de construção tradicionais.

Felizmente nestes últimos anos tem-se notado um esforço no sentido do aportuguesamento da casa e retorno ao perdido equilíbrio entre ela e a paisagem.

Roberto Burle Marx

Catálogo da exposição Roberto Burle Marx (1973)

Fundação Calouste Gulbenkian

Escrever sobre a obra de arquitectura paisagista de Roberto Burle Marx é extraordinariamente difícil para quem, infelizmente, apenas o pode fazer com o conhecimento relativo que lhe é dado pelos planos, fotografias, descrições e críticas dos seus trabalhos. A apreciação duma realização artística complexa como é qualquer de construção arquitectónica da paisagem, só pode ser feita quando se sentir para além do equilíbrio formal, da luz e cor, da profundidade, a própria «atmosfera» criada e o sortilégio do lugar.

No entanto, a maior compreensão da obra através do conhecimento pessoal e amigo do artista; o mútuo entendimento quanto a variadíssimos problemas dessa filosofia da arte e da paisagem; a cruzada comum em prol duma paisagem integrada pelas leis da Natureza ao serviço do Homem na total plenitude do seu espírito; obrigam-me a transmitir esta meditação sobre a obra e a pessoa de Burle Marx como arquitecto-paisagista.

As múltiplas facetas artísticas não permitem facilmente ajuizar-se e compreender a sua obra no campo da Arquitectura-paisagista sem se procurar, paralelamente, compreender as preocupações expressas na sua pintura, escultura e desenhos ou simplesmente como humanista.

Em 1930, quando retorna ao Brasil surgem no campo da Arquitectura criações de concepção arrojada, exuberantes no processo de leitura e afirmativas de um espírito próprio que mais tarde viria, invariavelmente, a encontrar raízes. Burle Marx alinhado neste campo de pioneiros bem depressa encontra um estilo e uma maneira própria que o torna universalmente conhecido, especialmente como arquitecto-paisagista, formação e profissão que constitui a faceta mais própria e cara ao seu espírito criador. Ele próprio se intitula «Jardineiro», como homenagem à velha arte de criar com as mãos e o carinho próprios do plantador, os refúgios de contemplação e descanso do Homem.

O vanguardismo de Burle Marx surge na Arquitectura Paisagista, mais concretamente, na arte de criar jardins, numa altura em que, nos países de cultura latina essa criação era orientada por um formalismo dogmático que pretendia restaurar em dimensões caricatas as ideias geniais de Le Nôtre ou por um estreito funcionalismo que reencarnava as receitas do chamado «Jardim à Inglesa» numa escala de praça pública. Infelizmente, entre nós a mentalização vulgar ainda compreende o jardim dentro destes limites estreitos e decadentes. O caminho percorrido por Roberto Burle Marx na procura dum jardim tropical brasileiro, coerente com uma Natureza pujante de formas e cores, movimento e vida vêm, afinal, encontrar-se com realidade universais que adquirem hoje uma enorme acuidade.

A estadia de Burle Marx na Alemanha nos anos 1928 e 1929 foi fundamental para a formação biológica do artista. As visitas às estufas do Jardim Botânico de Dahlem, onde encontra expostas as espécies mais características da sua terra natal, despertam-lhe um interesse muito especial pela flora. Desde então, tanto a pesquisa do artista como o interesse do botânico se completam e desenvolvem até ultrapassarem o campo exclusivamente criativo para se transformarem no arquitecto-paisagista, defensor da Natureza, posição activa do humanista nos tempos que correm.

"Em Burle Marx, o jardim surge moldado por uma ideia naturalista que se apoia no conhecimento íntimo da vegetação, das rochas e da paisagem. A utilização da flora, que procura afanosamente nas matas e nos campos estudando a sua aclimatação, é reinventada no jardim e utilizada na nova paisagem."

A sólida formação biológica experimentalmente adquirida em 1930 inicia o cultivo de plantas tropicais na chácara do Leme, produto de um interesse quase místico pelas coisas da Natureza, aliada a uma vocação nata de artista, com inúmeras facetas e possibilidades, permitiram que Burle Marx viesse a ser uma daquelas personalidades de excepção que conseguiram desenvolver, a partir da procura do essencial das coisas, todo um processo criativo original e autêntico que, por renovador, se verifica estar alicerçado nos aspectos válidos duma tradição.

O seu diálogo com a flora tropical e dos jardins depressa o levam à floresta e à savana das paisagens rurais e selvagens e dão na sua obra um lugar primordial ao mundo vegetal. Analisado na sua estrutura e forma é utilizado na criação artística como inspirador e elemento fundamental da composição. Mas, pouco a pouco, o artista integra nas suas obras, para além da botânica, a riqueza de outros valores paisagísticos. A isto é levado por uma mais complexa e universal contemplação da paisagem e da Natureza. O organicismo inerente aos jardins de Burle Marx provém, segundo julgamos, primeiro duma procura de interpretação do mundo vegetal para, mais tarde, se integrar num «barroquismo» bem patente nas curvas com que desenvolve serenas toalhas de água ou nos volumes com que repete relevos e formas duma paisagem próxima ou idealizada pela memória. Fá-lo então de uma maneira dramática e exuberante, como é próprio da sensibilidade brasileira. Em muitas obras o artista coloca-se como integrado na própria Natureza fazendo parte do todo complexo de cor, forma e vida que cria. O homem como que volta a encontrar o verdadeiro sentido da sua movimentação na Mãe-Natureza. Alguns dos seus desenhos e, por exemplo, no Jardim Waller (1954), no Rio de Janeiro, fazem-nos lembrar descrições de Camões, no episódio da Ilha dos Amores: «Num vale ameno, que os outeiros fende, | Vinham as claras águas ajuntar-se, | Onde uma mesa fazem, que se estende | Tão bela quanto pode imaginar-se. | Arvoredo gentil sobre ela pende, | Como que pronto está para afeitar-se, | Vendo-se no cristal resplandecente | Que em si o está pintando propriamente» [IX, 55].

É a procura do «Paraíso Perdido», jardim de harmonia, equilíbrio, movimento e vida, construído de acordo com a Natureza selvagem e livre como ela. Outras vezes, é já o construtor de paisagem que cria cenas naturais que se integram na paisagem envolvente, sentida e compreendida por Burle Marx, que retoma um caminho para muitos perdido. O Jardim não é, como em Le Nôtre, a paisagem, nem apenas miradouro debruçado sobre uma panorâmica, mas sim uma cena especial que se integra formal e espiritualmente no todo que envolve e com a qual se cose harmonicamente. A posição délfica é novamente reencontrada. O testemunho do Homem é implantado de maneira a que a paisagem o complete sem o absorver. No primeiro jardim público (1935) desenhado por Burle Marx, no Recife, a vegetação surge no ambiente urbano como monumento natural e tratada de uma forma selvagem; a Natureza surge no centro urbano, afirmando-se também como construtivo elemento da cidade. No jardim do Aeroporto Santos Dumont [no Rio de Janeiro,] os rochedos colocados repetem a paisagem longínqua. As sinuosidades dos rios tropicais repetem-se nos lagos e nos caminhos. No Jardim Monteiro, a integração faz-se valorizando os primeiros planos e os acessos visuais às perspectivas profundas; com a mesma orientação se orientam os traçados dos Jardins Kronffortte, Cavanellas, Somló, etc.

No Parque de Araxá (1944), com o auxílio do botânico Mello Barreto, utiliza a vegetação mais característica do Estado de Minas Gerais, que arruma segundo um critério ecológico.

Em Burle Marx, o jardim surge moldado por uma ideia naturalista que se apoia no conhecimento íntimo da vegetação, das rochas e da paisagem. A utilização da flora, que procura afanosamente nas matas e nos campos estudando a sua aclimatação, é reinventada no jardim e utilizada na nova paisagem. O mesmo sucede à pedra e à água. Liberta-se assim dum geometrismo fácil e rígido que não é objecto exclusivo do traçado do jardim, e por isso perde introspectividade, pecado de narcisismo, ganhando sentido universal e humano.

A fonte do mural escultórico com pedras de cantaria do Jardim Paula Machado faz lembrar a magnífica composição final da Quinta da Penha Verde [Sintra], quando os três arcos, abertos sobre a paisagem e o cruzeiro, integram nela toda a ideia que presidiu à concepção. A mesma integração, apesar da situação paisagística diferente, se verifica na referida fonte.

Que relações atávicas ou memoriais poderão ligar as duas obras? Será possível estabelecer uma ponte entre o característico jardim e a arte paisagista em Portugal e a obra de Burle Marx, que não é, por certo, um mero tropicalista sensibilizado apenas pelo exotismo da flora do seu país?

Estão por estudar, segundo julgamos, as realizações históricas da arte dos jardins e da paisagem no Brasil. Parece pertencer aos missionários franciscanos a mais antiga tradição de cultivo ajardinado nos claustros de plantas medicinais e condimentares, à maneira dos hortos europeus. D. João VI cria, em 1808, possivelmente inspirado no Jardim Botânico da Ajuda, em Lisboa, magnífica peça de arquitectura paisagista, o congénere do Rio de Janeiro. Mestre Valentim constrói o Passeio Público carioca, modificado mais tarde pelo paisagista francês Auguste François Marie Glazion [1833-1906].

Não se deve, portanto, procurar na memória destas obras as origens culturais que poderão alicerçar a obra de Burle Marx para além do originalismo e actualidade que patenteia.

Deverão ser motivos culturais escondidos por um humanismo e maneira de ser e estar herdados conjuntamente com uma atitude e técnica ancestral perante a paisagem, que justificam as evidentes relações entre a tradição paisagística portuguesa e a obra de Burle Marx, por muito que se sinta também nalguns trabalhos uma marcada influência japonesa.

Algures, já escrevi: «O português conseguiu criar em muitas regiões, no relevo variado e nos microclimas diversos, uma paisagem que possibilitou uma agricultura intensiva, por vezes especializada, devidamente compartimentada, sempre integrada num zonamento de base ecológica. — A estrutura assim estabelecida garante o equilíbrio biológico da paisagem e a permanência do potencial de fertilidade. — A irregular distribuição das chuvas implica por outro lado a constante preocupação de angariar e acumular águas para regras. Tanques, albufeiras, minas, etc., surgem atestando essa preocupação constante. — O declive acentuado das encostas obriga à construção de socalcos, terraços de cultura, muros de suporte, vincando a compartimentação. — O jardim popular surge relacionado com o atrás exposto. Constrói-se ao lado do tanque ou da «boca» da mina, no sítio fresco, debruça-se sobre um panorama de eleição, no ponto de vista dominante; alonga-se sobre o coberto da latada, que muitas vezes se pendura no muro de suporte do terraco cultivado. — Nenhuma área limitada e perfeitamente definida risca a sua fronteira; pelo contrário, surge nos pontos de eleição da paisagem ou nas situações mais agradáveis, para evitar o verão escaldante ou o rigor invernal. A sua escala é a do descanso e meditação, num ambiente agradável, perante um panorama que o prolonga até ao infinito.» .

Todos estes elementos surgem com ideias paralelas na obra de Burle Marx. No Parque de Albergue Pico del Ávila, em Caracas, a modulação do terreno exige a construção do muro de suporte «armando» o terreno em socalcos, como no Douro ou na Madeira.

A colina, no alto da qual se situa a igreja da Glória, é resolvida através duma distribuição de planos verticais que repetem a forma anterior, fazendo lembrar a organização de tantos santuários portugueses.

No pátio do Jardim Moreira Salles, a um muro revestido de azulejos — outra particularidade de inequívoca origem ibérica — encosta-se um tanque. O muro com azulejos — revestimento que em Portugal se começou por usar exclusivamente no interior e surgiu mais tarde no Brasil, revestindo fachadas e assim voltou a Portugal — é um outro valor utilizado por Burle Marx no próprio jardim naturalista.

As próprias calçadas e respectivos desenhos, que conquistam um lugar importante nos jardins públicos do artista, são de reconhecida inspiração portuguesa.

A cascata do Jardim Palácio também tem uma escala, proporção e ambiente que lembra muito do Buçaco e Sintra.

Toda a problemática do estar confortavelmente num espaço exterior numa escala própria a certa intimidade desenvolve-se em Burle Marx muito paralelamente ao que sucede em tantas matas utilizadas pelo povo em Portugal. Há uma relação entre o que se passa, por exemplo, no Jardim do Aterro da Glória, em que espaços íntimos de estar no meio do arvoredo fazem lembrar os terreiros de acesso ao Convento dos Capuchos, em Sintra. No Parque de Este, em Caracas, a perfeita relação entre a clareira e a utilização pelo público de uma mata aberta afastam a concepção de qualquer ideia paisagista inserida no conceito inglês de parque.

"Esta atitude permite-lhe ser hoje um baluarte da protecção da Natureza e da construção racional de paisagens, portanto um defensor da importância da Arquitectura Paisagista no diálogo que o Brasil dos nossos dias trava com a Amazónia e da lição que retira das imensidades antes destruídas."

Burle Marx reconhece que os seus pátios trazem raízes dos jardins ibéricos, em que inclui todo o gosto pelo mosaico dos pavimentos e revestimento cerâmico dos muros, mas poderá mais longinquamente encontrar ligações de difícil explicação cronológica nos canteiros que como que «boiam» nos seus espelhos de água, repetindo a ideia aos peristrilos de Conimbriga, do tanque do Jardim do Bispo, em Castelo Branco, e de tantos tanques de rega no Alentejo. A necessidade de «represar água», característica portuguesa, continua-se nos jardins de Burle Marx.

O interesse de Burle Marx pelas coisas de biologia e da ecologia valorizam cada vez mais o seu trabalho e encaminham-no para ser hoje um dos pugnadores mais esclarecidos pela construção de uma paisagem baseada nos equilíbrios da Natureza, portanto um defensor da construção de ecossistemas válidos biologicamente que permitam a actividade do homem e um autêntico progresso.

O tropicalismo dos jardins de Burle Marx não é mais do que uma procura do acerto de ideias naturalistas de composição com a ecologia de Paisagem e a criação duma obra de arte com materiais biológicos e naturais num quadro mais amplo e magnífico.

Esta atitude permite-lhe ser hoje um baluarte da protecção da Natureza e da construção racional de paisagens, portanto um defensor da importância da Arquitectura Paisagista no diálogo que o Brasil dos nossos dias trava com a Amazónia e da lição que retira das imensidades antes destruídas. Neste aspecto, Burle Marx encontra-se com as mais clarividentes correntes de arquitectos paisagistas, arquitectos, biologistas geógrafos, urbanistas, etc., que em todo o mundo pretendem que o Homem crie as paisagens tendo em atenção a dignificação da comunidade humana.

Numa altura em que os valores humanos expressos na Arte são cada vez mais arredados por uma tecnologia de conteúdo vazio e um falso cientismo absorvente, quando as pessoas estão mentalizadas para verem na Arte apenas aspectos secundários de decoração ou mero processo de dignificação de outros valores, a exposição da obra de Burle Marx, entre nós, tem um alto significado e constitui uma lição oportuna para todos aqueles que trabalham no cada vez mais importante campo da Arquitectura Paisagista.

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