O guarda prisional que, na madrugada de 29 de março, acusou positivo para a Covid-19 trabalha numa prisão sobrelotada e a que junta mais reclusos no país. O Estabelecimento Prisional do Porto tem cerca de mil presos, mesmo só tendo espaço para 686. Esta sobrelotação, que se repete em várias outras cadeias portuguesas, é a possível faísca para um eventual contágio em massa — um cenário sobre o qual a própria ministra da Justiça admite não ter “a menor dúvida” que seria “exatamente” tão catastrófico “como nos lares [de idosos]”.
Como evitá-lo? Numa entrevista à SIC na noite de domingo — numa altura em que havia já outros dois casos da Covid-19 entre a população prisional, além do guarda —, Francisca Van Dunem, avançou com uma possível solução que a própria Organização das Nações Unidas recomenda: libertar os reclusos que estejam presos por crimes menores. “Há vários países europeus que já fizeram opções nesse sentido: colocar em liberdade autores de crimes com penas até dois anos”, explicou a ministra. A decisão sobre uma eventual libertação antecipada — e em que moldes — será tomada esta semana, quando for feita a “avaliação da execução das medidas do Estado de Emergência”. Isto porque, na quarta-feira, cumprem-se os 15 dias desde que esse estado excecional foi decretado.
A ideia recebe a concordância de várias entidades do setor da justiça — de guardas prisionais a advogados, passado pela associação de apoio a reclusos, que pedem a libertação de alguns presos, mas com critérios. Ou pode vir a acontecer uma “tragédia enorme”, considera o bastonário dos advogados, Luís Menezes Leitão, alertando que estão “riscos muito sérios” em jogo. No entanto, todos apelam a que as medidas sejam tomadas com extremo cuidado. “Não podemos mandar para casa uma pessoa idosa que cometeu um crime de abuso sexual de crianças e que foi condenada a 15 anos de prisão e está há um ano ou dois presa, só porque é doente ou mais velha“, defende o juiz Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP). Afinal, o que pode ser feito e o que podemos esperar?
Libertar reclusos que estão no fim da pena poderia aliviar as prisões. Decisões nas mãos dos juízes
O juiz e presidente da ASJP é claro: “Se formos aplicar a legislação que existe, não se pode fazer nada. É preciso que haja uma lei especial que permita soluções também elas especiais”. Manuel Soares explica ao Observador que é preciso “olhar para dois grandes grupos de pessoas” — grupos esses que podem ser alvo de uma libertação que permita aliviar as prisões.
O primeiro diz respeito aos reclusos “que já estão próximos do fim da pena ou da liberdade condicional — por exemplo, a três ou a seis meses — e ver quais é que podiam ser objeto de libertação e colocados nas suas residências com pulseira eletrónica. São pessoas que daqui a pouquíssimo tempo acabarão, de uma maneira ou de outra, por ser libertadas”. O segundo grupo é o das pessoas “que já estão a passar uma parte importante do tempo fora da prisão, que estão a trabalhar fora ou que vão em saídas precárias todos os meses a casa. Também era possível olhar para essas pessoas que já estão em contacto com o exterior e ver quais é que estão em condições de ser libertadas nas mesmas circunstâncias”, conta ao Observador.
Para o juiz Manuel Soares, “seja qual for a solução legislativa”, a decisão de libertar um recluso “terá sempre de passar por um juiz”, que teria por base uma “avaliação técnica das direções das prisões, que haveria de dizer se o recluso está em condições de sair ou não”. “Estamos a falar de uma libertação no fim da pena e essa competência é dos tribunais”, justifica.
Apesar de defender que é preciso uma análise “caso a caso”, o presidente da ASJP defende também que é preciso que a solução encontrada seja “célere”. “Tinha de ser uma avaliação mais sumária. Tinha de haver uma avaliação positiva do estabelecimento prisional, que conhece a pessoa, e o Ministério Público tinha de se pronunciar. Depois, havia um juiz que decidia de forma muito sumária: autorizo ou não autorizo”.
Outro instrumento que o juiz Manuel Soares vê como possível é a amnistia: “Quando veio cá o Papa, libertámos muitas pessoas. Se houvesse uma amnistia de algumas pessoas, também já não era necessária uma alteração legislativa para a intervenção dos tribunais. Mas isso é uma decisão do poder político”
Também o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) explica que só uma alteração da lei permitiria libertar os reclusos. O procurador António Ventinhas não quis, no entanto, adiantar-se mais, justificando-se com o facto de a direção do sindicato ir reunir esta terça-feira para debater precisamente este tema.
O diretor geral de Reinserção e Serviços Prisionais admitiu que Portugal deveria libertar os reclusos mais vulneráveis, incluindo idosos e doentes crónicos. Em declarações à SIC, Rómulo Mateus afirmou que seria “uma medida de boa gestão profilática dos recursos prisionais”, de “higiene e saúde pública” e que “protege a comunidade”. “Não se destina só a proteger os reclusos: protege os funcionários, os guardas prisionais, o pessoal de saúde. Acima de tudo protege a comunidade envolvente”, afirmou
O Observador contactou a Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), a fim de entrevistar o diretor geral, Rómulo Mateus, sobre este assunto — sem sucesso. “As matérias respeitantes a procedimentos legislativos, tendo em vista uma possível libertação de reclusos, são da competência dos órgãos de soberania e que esta Direção Geral prestará todo o apoio que lhe venha a ser solicitado”, lê-se apenas numa resposta por escrito.
Reclusos perigosos devem ficar, mesmo se forem um grupo de risco. E também eles têm de querer e poder ser libertados
Para o presidente da ASJP, a solução teria de admitir que alguns reclusos poderiam não ser libertados, mesmo que estivessem no fim da pena ou da liberdade condicional ou em regime de precária. “Estamos a falar de pessoas com risco elevado de repetição de crimes porque já estiveram presos várias vezes, porque têm um grau de perigosidade maior, porque tiveram indisciplina na prisão“, descreve o juiz Manuel Soares, justificando-se de seguida: “Isso aumentaria o sentimento de insegurança e não cumpriria aquilo que são as finalidades do sistema penal. Essas pessoas têm de ficar na prisão, mesmo que sejam grupo de risco e mais velhas. Não podemos mandar para casa uma pessoa idosa que cometeu um crime de abuso sexual de crianças e que foi condenada a 15 anos de prisão e está há um ano ou dois presa, só porque é doente ou mais velha”.
Neste sentido, o procurador da República Rui Cardoso, antigo presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, defende que as medidas devem prezar pela saúde pública, mas não se devem “sobrepor a outras coisas”. “Não se vai colocar um agressor doméstico que está a cumprir uma pena de prisão em casa fechado com a vítima do seu crime. Quem diz um agressor doméstico, diz um agressor sexual”, exemplifica. Mais: “Se houver perigo de fuga, também não se deve libertar a pessoa, especialmente se for um recluso estrangeiro”.
Apesar de o bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, considerar que um “recluso de maior perigosidade deva ficar excluído” de uma eventual libertação, também defende que, “a partir do momento em que um recluso já cumpriu grande parte da sua pena, deixá-lo sair um ou dois meses mais cedo não será muito decisivo relativamente à reinserção”.
A par desta decisão, o recluso também tem ele próprio de querer sair. “Não podemos mandar uma pessoa embora que não queira: porque não tem condições ou não tem família ou casa”, explica o presidente da ASJP. Na entrevista à SIC, a ministra da Justiça também lembrou que é preciso ter em consideração se os reclusos têm um sítio para ir e se as famílias estão dispostas a acolhê-las. Mais: se a sua libertação não vai causar alarme social e o tipo e a gravidade dos crime cometido.
Reclusos também pedem libertação antecipada, guardas alertam para falta de pulseiras eletrónicas
Também o Conselho-Geral da Ordem dos Advogados vai reunir esta terça-feira para tomar uma posição oficial sobre a eventual libertação dos reclusos. Certo é que o bastonário defende que evitar uma “tragédia enorme” passa por “reduzir a população prisional”. “Os presos não têm possibilidade de ficar isolados, devido à sobrelotação. Estamos a correr riscos muito sérios se permitirmos que isto aconteça nas prisões. É praticamente impossível isolar os reclusos”, diz Luís Menezes Leitão ao Observador.
O bastonário lembra ainda que “as cadeias têm uma população com uma taxa de morbilidade muito elevada, devido à toxicodependência ou tuberculose. Se já temos a experiência dramática com os lares, se ocorrer uma situação deste género nas prisões, pode ser mais grave”, diz Luís Menezes Leitão ao Observador.
Quer guardas, quer reclusos são da mesma opinião: alguns têm de sair para evitar uma tragédia. O Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Nacional defende que sejam os reclusos que estão a menos de um ano do fim da pena a serem avaliados para uma eventual saída, diz o presidente Jorge Alves. No entanto, alerta que a falta de pulseiras eletrónicas pode ser um problema.
Também neste sentido Vítor Ilharco, secretário-geral da APAR, pede que sejam libertados reclusos condenados até dois anos de cadeia; reclusos a quem faltem até dois anos para o fim da pena — o que “funcionaria como uma antecipação da concessão de liberdade condicional”; reclusas grávidas ou com filhos na cadeia e idosos com problemas de saúde. “Obviamente que teriam de ser considerados, em todos os casos, quer o tipo de crime quer as penas a que tivessem sido condenados”, ressalva a APAR em comunicado lembrando que, a ser aprovada, uma medida deste género poderia “levar à saída das cadeias de entre três a quatro mil presos”.
Covid-19. Férias dos guardas prisionais serão suspensas e turnos reduzidos para metade
O presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Nacional lamenta que só agora se esteja a pensar na possibilidade de libertar reclusos. “Tendo em conta a experiência de outros países, tendo em conta aquilo que já se viveu, não percebemos como é que a direção geral, ao fazer um plano de contingência, a uma determinada fase do plano, não tenha a libertação prevista”, disse ao Observador. De facto, em nenhum ponto do plano de contingência se prevê uma fase em que se liberte os reclusos e como.
Jorge Alves teme que uma eventual decisão não chegue a tempo de evitar um problema maior: “Tem de haver uma alteração legislativa. Quanto tempo é que vai demorar?” E alerta que “já há reclusos a contestar que querem ser libertados”. “Se utilizam isto de forma indiscriminada, muitos presos vão querer ver a pena deles reduzida no tempo em que os outros foram beneficiados para a liberdade”.
Qual é a situação atual? Já há três casos nas prisões: um guarda, uma reclusa e uma auxiliar de ação médica
Uma garantia é dada pela DGRSP: “Estão já identificados os contactos próximos deste guarda, os quais foram mandados ficar em isolamento profilático”. Mas não revela quantas são as pessoas que contactaram com este profissional contaminado. Jorge Alves, presidente do SNCGP, adiantou ao Observador que apenas os quatro guardas do turno do colega infetado foram mandados para casa. Mais: acredita que os contactos com este doente podem alargar-se à população total da cadeia. E explica porquê.
O guarda contaminado tinha estado escalado pela última vez para o dia 23 de março — seis dias antes de ter testado positivo, detalha a DGRSP numa resposta por escrito enviada ao Observador. O que, ainda assim, não invalida que tivesse estado em contacto com guardas e reclusos já infetado e sem o saber, especialmente se estivesse assintomático.
Desde logo, Jorge Alves explica que os contactos com outros guardas prisionais não se limitam aos colegas de turno, uma vez que, quando é feita a rendição, os dois turnos estão em simultâneo “na mesma zona prisional a verificar os reclusos que estão e se está tudo bem”. Depois, este guarda costumava trabalhar em diligências externas, mas, uma vez que, com a declaração de estado de emergência, as saídas de reclusos foram suspensas, passou a trabalhar na portaria para receber sacos e no refeitório. “Estava lá ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar. É aqui que ele pode ter estado em contacto com todos os presos“, adianta o presidente do sindicato. Já três reclusos que tiveram contacto com o guarda infetado pediram para fazer os testes.
Além deste, há mais dois casos de infeção do novo coronavírus nas prisões portuguesas. Uma auxiliar de ação médica do Hospital Prisional de São João de Deus, em Caxias, testou positivo para a Covid-19 e está de quarentena em casa, adianta a DGRSP. “Os trabalhadores do Hospital Prisional estão a seguir os procedimentos recomendados pelas autoridades de saúde pública, sendo que, até ao presente momento, não há registo de mais nenhum caso positivo entre trabalhadores desta unidade de saúde”, adianta.
O terceiro caso é o de uma mulher de nacionalidade brasileira que foi detida quando tentava entrar pela fronteira de Caia com 5080 doses de cocaína dissimulada na roupa. Já depois de o teste para o novo coronavírus ter dado positivo, foi transportada pelo INEM para o Hospital Prisional de São João de Deus onde se encontra em isolamento e tratamento.
Espanha já libertou mais de dois mil reclusos.
Outros países já tomaram decisões nesse sentido. No Irão, onde há mais de 40 mil infetados e mais de 2.700 pessoas morreram, já são cerca de 85 mil os presos que foram libertados: trata-se de pessoas que tinham sido condenadas a penas inferiores a cinco anos de prisão. Reclusos a cumprirem sentenças mais longas e os que foram presos por participarem em protestos antigovernamentais permanecem presos.
Em Espanha, mais de dois mil reclusos foram mandados libertar com vigilância eletrónica. São agora 4.381 os presos que estão em casa com pulseira, face aos 2.230 que estavam antes do surto. Em França, já foram libertadas cerca de 1.600 pessoas que estavam a dois meses do final da pena. Na passada quarta-feira, a ministra da Justiça francesa anunciou várias medidas que visam simplificar os procedimentos e permitir a libertação de cinco a seis mil reclusos — o que não inclui terroristas ou condenados por violência doméstica
No Canadá, o governo de Ontário também já começou a libertar reclusos. Depois de uma guarda prisional ter testado positivo para o novo coronavírus, o Ministério Público decidiu libertar presos que apresentem um baixo risco de perigosidade e que estão prestes a cumprir a sua pena. Na Turquia, onde a sobrelotação das prisões também é um problema, o governo apresentou um projeto lei que prevê libertar cerca de 100 mil dos 300 mil reclusos do total da população prisional — estão excluídos condenados por terrorismo ou crimes contra o Estado.
Mas também há países que ainda não tomaram quaisquer decisões, como a Rússia — um dos países com a maior população prisional. Algumas instituições que lutam pelos direitos humanos já começaram a manifestar a sua preocupação e a emitir comunicados sobre como prevenir e combater a pandemia do Covid-19.