Quer estar na política. Tudo nela o sinaliza. Agarrou com ambas as mãos a oportunidade que António Costa lhe ofereceu com a saída de Castro Mendes da Cultura e, dias depois, entrava lesta no Palácio da Ajuda. Para ficar. Nesta sua primeira grande entrevista como Ministra da Cultura, Graça Fonseca garantiu que havia uma estratégia cultural para a legislatura assente em três áreas; deixou notícias fortes (a concretização da compra da colecção BPN; o facto de as obras irem para Coimbra; a revelação de que o relatório do paradeiro desconhecido de algumas obras vai ser entregue às autoridades para investigação); e inquietou com a intenção de uma (necessária?) “ajuda” aos medias privados que, no mínimo, carece de melhor explicação.
[Pode ouvir aqui este episódio especial do Sob Escuta com a ministra da Cultura]
“Trabalha para concretizar”, gosta de convencer, é afirmativa, elegante, desenvolta. Pode porém roçar a auto-suficiência se a contrariam ou ser desabrida quando a confrontam, sobretudo quando quem o faz é a oposição à Direita a quem ela não parece dar sequer direito de cidade. O ardiloso chão que pisa não impressiona a ministra: tem a permanente benção do primeiro-ministro que conta com ela para o que der e vier; e a sua ambição de provar que a Cultura está bem entregue, fará o resto. Foi chefe de gabinete de António Costa na Justiça, vereadora em Lisboa, secretária de Estado, hoje é ministra. Ouvi-la foi ficar na dúvida: um caso político a seguir?
[Vídeo. Os principais destaques da entrevista a Graça Fonseca:]
Começo como uma curiosidade que muitos partilham: a que atribuí ter sido escolhida para esta pasta? Foi na pressa registada com a a saída relativamente inesperada de Luís Filipe Castro Mendes? Graça Fonseca estava à ali à mão, dada a sólida amizade com o primeiro-ministro e a relação de confiança entre ambos? O que a recomendava para titular a Cultura?
Exerço funções públicas há 20 anos. Em 1999 deixei a Universidade de Coimbra onde trabalhava como investigadora, para exercer o primeiro cargo público na área da Justiça. E ao longo destes 20 anos fui concretizando vários projetos e fui, julgo eu, demonstrando capacidade de definir o que é necessário fazer, qual a estratégia e cumpri-la.
Pensar e concretizar?
… por um lado, sim. Por outro, tenho, é verdade, um percurso com o primeiro-ministro: fui sua chefe de gabinete na Justiça, além de ter sido sua vereadora durante seis anos na Câmara Municipal de Lisboa, ao longo dos quais trabalhei, aí sim, em muitas áreas profundamente relacionadas com a Cultura — inovação, design, etc.. Julgo que isto pode explicar a escolha, mas a pergunta deve ser dirigida ao primeiro-ministro….
... mas a minha curiosidade visava saber o que é que a própria ministra achava dessa escolha. No discurso que fez há dias na Comissão da Cultura, apresentando o seu plano para estes quatro anos, centrou-o na expressão “Compromisso Transformador”, e já lá iremos. Retive porém que esclareceu ter-se ocupado, mal entrou no governo, de finalizar diversos projectos, de natureza variada, que estavam meio encalhados: desde os carrilhões de Mafra, até conventos, passando por museus, Plano das Artes, etc.. Pergunto: ficou mesmo resolvido, ou quis entrar nesta legislatura tendo provado que “resolvia”?
Não ficou tudo resolvido, nem nunca fica, felizmente há sempre novos problemas ou novos projetos para resolver. O que fiz questão, no Parlamento, foi mostrar a preocupação — o foco, se quiser — de resolver questões que se arrastavam. Os carrilhões de Mafra vão já tocar no início de Fevereiro, mas deixe-me também fazer um ponto sobre o Convento da Saudação — e conto muitas vezes esta história. No dia em que tomei posse, a capa de um jornal diário era um buraco na Cultura, e a fotografia era a do Convento da Saudação, onde está instalado um projeto do Rui Horta, que tinha colapsado e não se resolvia há anos. Está resolvido.
O seu programa assenta em três suportes: o território; as estruturas artísticas, os artistas, os criadores; as empresas e os cidadãos. Como se chegou a estes três pilares? A ideia foi sua, ouviu muita gente, aconselhou-se com a sua equipa, falou com o primeiro-ministro?
O processo de pensamento estratégico é sempre partilhado, nunca é de uma cabeça só, mas digamos, que foi talvez o resultado de um ano e três meses do anterior mandato.
Uma espécie de “estágio”, em fim de legislatura, que lhe permitiu amadurecer uma estratégia para esta?
Talvez, e também de algo que procuro sempre, nos cargos públicos que vou exercendo, que é o pensar estrategicamente o sector e pensá-lo para o futuro. A tendência humana é pensar e resolver os problemas que nos aparecem, mas ao fazê-lo estamos apenas a focarmo-nos no presente e a desviarmo-nos do futuro. Procuro contrariar isso e nesse sentido, se quiser, esta estratégia foi pensada, olhando para o país: como é que a cultura nasce, circula, chega ao território. Ele é a base, é o texto que conta a nossa história, é onde se programa, onde se cria…
… e onde se escreve a história?
Onde ela se escreve e onde está o nosso património, a criação artística, a circulação de artistas. O território tem especificidades, geográficas, demográficas, sociais, económicas e é para ele que temos de construir uma política pública de cultura. Não podemos partir para uma estratégia como para uma página em branco, justamente porque ela não está em branco: tem uma história, uma configuração, agentes, comunidades, e é nesse território que teremos de assentar uma política pública de cultura. Resumindo: há um território, há estruturas artísticas e artistas que nele circulam, e quando o fazem é para as pessoas que nele vivem e as empresas que nele produzem, trabalham e investem.
Uma política de cultura assente nesse tripé?
Um tripé que é o nosso país. E depois nesses três níveis há diferentes medidas concretas para garantir que a estratégia chega lá e é concretizada.
No seu programa esbarrei com muitos números, demasiadas percentagens, incontáveis objectivos naquele português árido dos “documentos oficiais”, mas não retive muito de novo, de interpelativo, de forte, forte? Uma ideia mobilizadora?
Sabe que a forma como fiz questão de apresentar a estratégia, é quase como um início de um ciclo. Um marco inaugural, vamos lá chamar assim. Os mandatos de quem exerce funções públicas, neste caso de ministra, devem procurar transformar a realidade que recebem. Mais do que a grande obra ou a grande infraestrutura — algo que me parece, apesar de tudo, que como “marca” já se foi transformando ao longo dos anos — deve receber uma realidade de um determinado setor e procurar transformá-la.
Por isso chamou ao seu programa “um compromisso transformador”?
É a minha tentativa de transformação. Há que trabalhar a dois níveis: resolver o que temos e trabalhar para transformar. Transformar exige uma visão estratégica: possuirmos aumento de capacidade de investimento para o poder fazer e medidas concretas, orientadas, calendarizadas, para que essa estratégia chegue ao território. O meu objetivo neste momento em nome do governo, não é ter o soundbite A ou o soundbite B. É transformar algo pelo qual eu tenho responsabilidade, na área da política pública.
Longe de mim pensar em soundbites…
Eu sei, claro…
… eu falava em ideias mobilizadoras mas encontrei uma — a conta satélite – mas não parece haver muitas mais assim.
As ideias mobilizadoras, ou se quiser, as medidas mobilizadoras, estão dentro de cada um destes pontos de estratégia. Começámos pela estratégia, agora vamos às medidas concretas que contêm em si, espero eu, ideias mobilizadoras. A Conta Satélite é importante porquê? Porque a posição do governo tem sido sempre a de que a cultura é uma área transversal que não deve restringir-se à área governativa: quando o Instituto Camões investe na internacionalização dos artistas e dos autores, investe em cultura. A conta satélite é algo que é recomendado nacional e internacionalmente, há bastante tempo, como um instrumento de medição e de verificação do impacto que o investimento em cultura tem no país.
Pode explicar um pouco melhor?
Ao longo deste mandato vamos trabalhar entre o INE e o Ministério da Cultura para ter a conta satélite consolidada nas contas nacionais e ela vai dizer-nos quanto é que por ano é o investimento público e privado em cultura, para sabermos qual é o impacto que isso tem, do ponto de vista de criação de emprego, de fixação do território, ou seja, no conjunto de medição de impacto. O que é fundamental para, no fim do mandato, sabermos exatamente quanto se gasta em cultura e qual é o impacto desse investimento no país.
Há mais boas ideias como essa, no seu programa?
Vamos às medidas concretas e seleciono já duas, na área do território, que me parecem mobilizadoras e importantes. Primeiro, o foco na reabilitação e dinamização do património cultural…
… os portugueses ouvem, há 43 anos, todos os titulares da Cultura prometerem-lhes isso, é uma espécie de lenga-lenga. No seu programa junta-se o termo “classificado”, visando maior ambição. Convença-me então da bondade de voltar à “ reabilitação do património classificado”…
Concordaremos que Portugal tem património cultural extraordinário, que é importante a sua preservação, reabilitação e dinamização. E a verdade é que ao longo das últimas décadas, como país, investimos pouco neste património. Queremos fazer diferente: não apenas aumentar a capacidade de investimento, mas fazê-lo no quadro de um plano estratégico a 10 anos, que identifique o património a intervir e os meios necessários para a sua reabilitação. Detalhando um pouco mais, o objetivo central é constituir um fundo para a reabilitação tendo na sua base um princípio de diversificação de fontes de financiamento.
Por exemplo?
Por exemplo o estarmos a trabalhar para a criação da Lotaria do Património. As receitas deste jogo social reverterão, na sua maioria, para este fundo de reabilitação de património cultural classificado. O investimento na reabilitação será realizado tendo por base um plano de intervenções detalhado a médio prazo. Temos estado a fazer o levantamento de imóveis do património cultural, com particular destaque para os edifícios de museus, para desenhar este plano a 10 anos. É um trabalho conjunto com o Ministério das Finanças. A novidade é querermos intervir a 10 anos, com um plano de intervenções e meios. Um plano de meios e investimentos, com planificação — enfim a palavra planificação é horrível — mas o que quero dizer é que haverá planeamento, calendarização e diversificação de fontes de financiamento.
O que significa?
Significa que este fundo receberá, fundamentalmente, investimento público, que o investimento público virá de receitas gerais do Estado, mas trabalhamos para identificação de outras fontes de financiamento público e privado, desde logo a título de mecenato.
Não quer avançar nada mais concreto?
De momento prefiro não avançar mais detalhes.
Falemos então da Lotaria do Património? De que se trata?
É um instrumento que vamos criar, cujas receitas vão reverter para este fundo de reabilitação, mas também se destina a trabalhar com empresas — já lá chegaremos — para que haja também mecenato privado. De modo a que esse instrumento para reabilitação do património, além do financiamento público, tenha privado e com isto consiga algo muito importante, que eu antecipo já: o envolvimento de empresas e cidadãos na missão de reabilitação do património e não apenas para diversificar fontes de financiamento… mas porque temos que ser embaixadores das nossas coisas, temos que ser os primeiros a participar nessa reabilitação e na sua preservação. Se as novas gerações perceberem a importância da preservação, teremos muito melhores condições de sustentabilidade do investimento que fizermos agora. É esse o objetivo. Virado para o futuro como há pouco referi.
Estará isso suficientemente destacado no programa da Cultura? Se se diluir entre chavetas e percentagens ou só mobilizar “especialistas” pode perder-se o efeito e a eficácia, ou não?
Mas está destacado, está! Será mesmo um dos focos centrais da Presidência Portuguesa da União Europeia, em 2021. Da sua programação e dos seus objetivos políticos na área da cultura da Presidência mas será também um dos focos centrais do trabalho com empresas. Para justamente destacar a importância do investimento no património. Se reparar, já temos hoje muitas empresas parceiras e mecenas de atividades importantes na reabilitação, há muitas entidades já com essa missão. Temos que pegar nesses bons exemplos e alargar essa rede.
Sim, houve já obviamente um caminho andado nas últimas décadas, há a Lei do Mecenato, etc.. Mas fica por vezes a pairar — talvez eu esteja a ver mal — que uns ainda não alcançaram totalmente a importância disto e que outros “suspeitam” do dinheiro “privado”. Uns não percebem, os outros desconfiam. Como se convence um cidadão com meios a ter orgulho de investir mais nisto?
A forma de envolver cidadãos e empresas é diferente, tem que ser diferente. Os cidadãos — estou muito convencida disso — orgulham-se em investir comprando um bilhete numa Lotaria que tem um monumento do seu território! Esta modalidade já existe em França, estudámos, aliás, outros exemplos e posso assegurar o seu êxito: as pessoas sentem-se envolvidas a participar em algo que lhes diz directamente respeito, como é aquele determinado monumento e não outro, fora dali.
E quanto as empresas? É diferente, claro?
A lógica tem de ser diferente. Precisamos de trabalhar com as empresas para de algum modo as levar a compreender que o investimento em património cultural é algo importante, não só obviamente para o país, mas para o próprio posicionamento social da empresa. Há porém um outro aspecto que gostaria de sublinhar que é o envolvimento dos trabalhadores: se uma empresa, por exemplo, é mecenas do Teatro Nacional de São Carlos, o que queremos é que as pessoas dessa empresa vão também ao São Carlos. Que os trabalhadores levem as suas famílias e conheçam São Carlos. Do ponto de vista de política pública, do que se oferece, isso é alargar os públicos. É chegar às pessoas através do local onde trabalham. É um caminho. Para alguém que viaja muito no país, como eu, a minha perceção é que as pessoas já o fazem sem perceber que o fazem.
Falou de públicos. Levar-nos-ia longe. É possível uma definição para essa mancha nebulosa chamada “público”? Ou só se deve falar de “públicos” no plural?
Não teríamos tempo para discutir a sua pergunta em todas as suas dimensões. Por isso vou apenas dizer o óbvio, o público são as pessoas. É cada um de nós. Somos todos público. E neste universo de pessoas que constitui o público, sim, existem vários públicos. A pluralidade de públicos é uma realidade e é também por isso que um dos objetivos de política pública de cultura é apoiar e promover a diversidade cultural, só assim podemos incluir todos os públicos.
Vamos à política de aquisições e às colecções do Estado. Houve uma verba de 300 mil euros — mais modesto é difícil – com a qual se comprou uma vintena de obras e que agora passou para meio milhão de euros. Qual o ponto de situação? Há algo de novo?
Há vários aspectos novos, alguns deles irei revelá-los aqui em primeira mão.
Óptimo: começamos por onde?
Pela comissão de aquisições de obras de arte, constituída o ano passado, para retomar uma política pública de aquisições, interrompida há pelo menos há 10 anos. Em 2019 foram adquiridas essas 21 obras no valor de 300 mil euros, que irão integrar a coleção de arte contemporânea do Estado. Tendo esse trabalho sido muito positivamente avaliado da nossa parte, o Governo decidiu aumentar a verba para meio milhão de euros, já em 2020, possibilitando a continuação da política pública de aquisições. Mas ela não é apenas um fim em si, é para que o Estado tenha uma coleção de arte contemporânea que possa circular pelo país e divulgar mais a arte portuguesa e os seus artistas. A este movimento de aquisição de obras de arte, junta-se agora a colecção do BPN, um complexo dossier que estava há muito por resolver e se resolveu e que eu e o sr. ministro das Finanças anunciaremos amanhã, dia 28 de Janeiro. O Estado vai ficar com as 196 obras da colecção do BPN, no valor de cerca de 5 milhões de euros, que são fundamentalmente de artistas portugueses, de várias épocas e gerações, desde Vieira da Silva, Paula Rego, por aí fora.
E a quem coube o critério de avaliação, o “olhar” credenciado sobre a qualidade artística e o interesse cultural dessa colecção do BPN, por exemplo? A quem foi conferida a legitimidade da opinião sobre o interesse da compra da colecção pelo Estado?
A avaliação do interesse cultural de coleções de arte é uma atribuição da Direção Geral do Património Cultural, tendo, por isso, sido a entidade que fez essa avaliação.
E quem integra a Comissão encarregue de aquisição de obras de arte?
A comissão — para o biénio 2019/2020 — é composta por Sandra Jurgens, docente universitária e crítica de arte, Eduarda Neves, igualmente docente universitária e curadora, Manuel João Vieira, artista, Sara e André, também artistas, David Santos, subdiretor-geral da Direção Geral do Património Cultural, e David Teles Pereira, do meu gabinete… Quem os escolheu? Foram propostos por um colectivo de artistas, tendo o governo nomeado a comissão com membros de diferentes sectores.
Voltando a colecção BPN: qual o seu destino? Que uso, que rentabilização? Que fruição?
Isso é a outra parte do que aqui quero revelar em primeira mão: esta colecção não ficará em Lisboa, irá para Coimbra. Onde, em articulação com o município, vamos criar um Centro de Arte Contemporânea, bem na região centro, o que depois permitirá ligar diferentes centros de Arte Contemporânea no país. E este é um dado importante: a colecção BPN que agora fica para o Estado, é, se quiser, a segunda parte da coleção que começou com a aquisição dos Mirós, recorde-se, em 2017/2018. Também ficou para o Estado e foi cedida para estar em exposição no Porto. O que quero aqui destacar é por um lado a importância do Estado dizer: “Esta coleção é importante, o Estado tem que ficar com ela”. E depois, descentralizar. Ter uma parte no Porto, outra em Coimbra.
Deve tratar-se de algo que o Governo vê como importante para ser anunciado por si e por Mário Centeno ao mesmo tempo. O Executivo quis sinalizar, valorizar essa operação, com a presença dos dois?
Na sequência do processo de falência de BPN houve muitos factos técnicos a ter em conta — não irei entrar neles – e a complexidade da operação exigia naturalmente um trabalho conjunto entre o Ministério das Finanças, Ministério da Cultura e as sociedades que detinham as obras. O que o governo quer sinalizar é, sim, a importância de que a colecção fique na esfera do Estado. Ficará e será colocada em Coimbra onde se criará um novo polo de arte contemporânea portuguesa.
Pode ser que alguém que nos esteja agora a ler ou ouvir se pergunte: e então o Museu do Chiado, no estado triste, modesto e baço em que está? Porque não fortalecer, tonificar este Museu que já existe e precisa dessa tonificação?
Por várias razões. Primeiro, Lisboa tem bastante mais oferta de arte contemporânea do que Coimbra e o meu lugar e a minha responsabilidade não são só Lisboa, dizem respeito ao país. O meu papel é a circulação por um lado e por outro lado…
Claro, mas a minha pergunta visava especificamente as carências do Museu do Chiado…
… o Museu do Chiado, juntamente com outros equipamentos da cidade de Lisboa, é um dos projetos em que estamos a trabalhar, para ir transformando a relação entre o Chiado e outros equipamentos. Sim, um dia lá iremos, mas… aquilo que é verdade é que Coimbra tem muito menos oferta de arte contemporânea do que Lisboa, e isso é evidentemente uma razão fundamental: se queremos ter uma rede de circulação de arte contemporânea, precisamos de ter vários polos, e a região centro é, evidentemente, um polo muito importante.
O museu da Música — numa escolha que também divide as plateias — sempre vai para Mafra? Terá procura, público?
Bom, hoje em dia vão 300 mil pessoas… enquanto que ao Museu da Música vão 16 mil.
Vão por causa de um ex-libris chamado Convento de Mafra.
Respondo-lhe rapidamente. O Museu da Música está há 25 anos provisoriamente instalado numa estação de metro. Ora há um momento em que temos que acabar com o “provisoriamente” e tomar uma decisão definitiva. Nunca uma decisão definitiva agradará ou agradou a todas as pessoas. O ponto é que o complexo de Mafra, agora classificado como Património da Humanidade, tem uma enorme ligação à música, à história da música, com seis órgãos na Basílica e agora com os carrilhões restaurados, as suas condições são extraordinárias. Do ponto de vista museológico, é uma opção que faz sentido.
Estamos a falar de museus. Consta do seu programa a aprovação do regime de autonomia jurídica dos museus. Para quando, exactamente? Há algum descontentamento…
O regime de autonomia dos museus, monumentos e palácios nacionais foi aprovado em 2019. O objetivo é conferir maior autonomia de gestão aos diretores dos museus, recuperando parte da autonomia perdida em 2012 com as alterações introduzidas pelo governo à lei orgânica da Direção Geral do Património Cultural.
Sim, mas…
Procurando resumir: o regime jurídico que o governo aprovou em 2019, agora em fase de concretização, confere um estatuto diferente e maior autonomia de gestão ao diretor do museu, monumento ou palácio. Vamos abrir, até ao final deste trimestre, concursos para diretores destes equipamentos, que, ao contrário do passado, não têm que ter vínculo à função pública. Constituímos o Conselho Geral dos Museus, que já reuniu uma primeira vez e vai, agora, reunir de novo para aprovar o seu regulamento e iniciar o funcionamento em pleno. Este Conselho Geral reúne todos os diretores de equipamentos museológicos nacionais e regionais e tem como missão central acompanhar a concretização do regime de autonomia aprovado. Também já estamos a trabalhar com todos para a elaboração de planos anuais, fundos de maneio, delegação de competências para cada um destes equipamentos. É um trabalho exigente, mas que será concretizado ao longo de 2020.
Falamos de aquisições e obras de arte e lembrei-me daquela trapalhada que houve há tempos com o desaparecimento de algumas obras que ninguém sabia onde estavam. Fez-se um relatório e então? A quantas andamos?
Bom, esse dossier existe desde os anos 90, e é importante que me faça essa pergunta e eu responda, mesmo que de forma breve. A coleção do Estado existe desde 1976. Entre 1976 e os anos 90 existiram inúmeros — e bem — empréstimos, cedências, circulação de obras de arte. E — só para as pessoas se situarem — entre 1990 e 2006 foram celebrados diferentes protocolos de depósito de longa duração em diferentes instituições. Desde os anos 90 — e este é um ponto muito relevante! — que se sabe que existem obras da coleção por localizar. Ou seja, falo de algo que existe há muitos anos e não de uma ocorrência que parece que foi agora ou recente.
Não se tratou de um desmazelo ou incúria socialista…
Nem socialista nem social democrata… Foi ao longo dos anos. A gestão do património do estado material ou imaterial, não teve, durante anos, do ponto de vista da gestão, os instrumentos de que hoje se pode dispôr. Por outro lado, a verdade é que a forma como encaramos hoje o património é diferente. Mais responsável. Mas aqui o ponto é este: desde os anos 90 que existe informação sobre obras por localizar. E desde o início dos anos 2000 foram criadas várias comissões e grupos de trabalho para fazer o inventário da colecção do Estado.
E faziam-se ou não se faziam?
O último relatório conhecido é de 2011 onde aparece o número de 170 obras por localizar. Como porém em 2011 não foi feita conferência de inventário, o que eu determinei — e tenho algum orgulho em o poder dizer — foi, que até ao final do ano de 2019, a Direção Geral do Património Cultural tinha que fazer uma conferência de inventário e dizer claramente onde é que estavam as obras de arte, em que condições de preservação e quais as que se encontravam realmente por localizar. Foi um trabalho que nunca larguei, até ao dia em que me foi entregue o relatório.
Que diz então esse relatório que acaba de lhe ser entregue?
O relatório é extenso e por isso vou focar a resposta na questão que mais tem surgido na comunicação social, a questão das obras de arte por localizar da coleção do Estado. O relatório é resultado de um trabalho realizado ao longo dos últimos meses, que incluiu várias diligências, desde recolha e sistematização de informação até visitas a instituições para verificação da localização e estado de conservação das obras de arte. Sintetizando. Na primeira fase do trabalho, a equipa estabilizou em 156 o número de obras de arte a localizar. Este número já é resultado deste trabalho de inventário, pois foi possível concluir que 15 registos correspondiam não a 15 obras de arte, mas a uma obra de arte. No decurso do trabalho, este universo de 156 obras de arte a localizar foi sistematizado e organizado por tipologias. Para termos bem a noção sobre há quantos anos existem obras por localizar, uma das tipologias agrega obras por localizar desde os anos 1990. E nesta tipologia estão contabilizadas 49 obras de arte. Portanto, desde 1992, repito, desde 1992 que estão por localizar 49 obras de arte. Tendo por base esta sistematização, a equipa recolheu informação, visitou locais, fotografou as obras de arte, falou com responsáveis de várias instituições. Para ir direta à questão, o relatório conclui que não foi possível localizar 94 obras de arte inventariadas na coleção do Estado, tendo sido possível esclarecer e registar a situação de 62 obras de arte. Face ao trabalho realizado e às suas conclusões, a nossa decisão é muito clara. A partir deste momento, há que tomar as decisões necessárias ao início de um novo ciclo da coleção de arte do Estado. O Ministério da Cultura não tem competências de investigação, por isso, o relatório será remetido às instâncias competentes na esfera do Ministério da Justiça. Aprofundar a situação destas 94 obras compete a quem de direito, a quem tem competências de investigação. Repare, o que é novidade aqui não é a existências de obras de arte por localizar. Isso não é novidade há mais de 20 anos. O que é novidade hoje é a conclusão do trabalho de conferência de inventário e a decisão de remeter às instâncias competentes este relatório, iniciando, a partir daqui, um novo ciclo para a coleção do Estado. O que é novidade é que o Ministério da Cultura retomou uma política pública de aquisições de obras de arte para o Estado, uma política interrompida há mais de 10 anos. O que é novidade é que o Governo decidiu adquirir a coleção de arte do ex-BPN e integrar estas 196 obras de arte na coleção do Estado. Ao Ministério da Cultura compete prosseguir a política pública de aquisições e a incorporação de obras de arte na coleção do Estado, tendo como objetivo diversificar a oferta, aumentar a circulação de obras de arte pelo país e consolidar uma rede de centros de arte contemporânea em Portugal. E é isto que faremos.
Já agora: e a Colecção Elipse? Qual o seu destino provável? Já pode falar nisso?
Não. Ainda não. É um trabalho que está em curso e que tudo faremos para que seja concluído o mais breve possível. Mas, como demonstra aquilo que fizemos com a coleção BPN, é importante fazer bem o trabalho, com o rigor e o tempo adequados a alcançar um bom resultado. Hoje podemos afirmar que conseguimos esse bom resultado, ao incorporar no património do Estado 196 obras de arte que há alguns anos estavam sem destino certo.
Outro tema: o cinema, o audiovisual e os media, estão pela primeira vez juntos numa Secretaria de Estado. Naquele português árido no qual são escritos os programas do governo, lê-se no seu que a junção destas três áreas visa“ desenvolver uma estratégia conjunta de políticas estruturais para a preservação e desenvolvimento da actividade cinematográfica, audiovisual e dos media, incluindo a defesa e o apoio ao jornalismo isento, independente e livre”. Isto quase me faz pele de galinha, peço desculpa da franqueza. Qual o objectivo de juntar o cinema, o audiovisual com os media na sua tutela?
Vamos ver, são coisas diferentes. A novidade é a Secretaria de Estado juntar estas 3 áreas.
Exatamente: porquê?
Não é uma novidade em absoluto. Noutras áreas e noutros países existe esta junção. Olhando o panorama mundial, o que observa é que hoje, o cinema e o audiovisual está muito mais ligado, interligado, do que há uns anos. Desde logo por causa das plataformas, naturalmente e pela forma como hoje em dia vemos cinema.
Estava mais a pensar nos media…
Já lá vou, já la vou. Cada vez mais aquilo que é o papel da comunicação social na sua relação com o áudio e com o cinema, se aprofundou muito. Hoje, cada um de nós, vê cada vez mais cinema na televisão. Isto para justificar a junção de 3 áreas numa única Secretaria de Estado, que só têm a ganhar com maior interligação entre elas. Aquilo que é um plano estratégico para o cinema terá que se cruzar com o que é — por exemplo — a transposição da directiva que vai ter um impacto brutal do ponto de vista do audiovisual; mas também com o papel que a comunicação social, na perspetiva da televisão, tem na divulgação e na coprodução do cinema. Esta é, se quiser, na sua base, a estratégia. Quanto à questão que coloca especificamente sobre a comunicação social…
Isso do sermos “isentos, livres e independentes”. Tutelados pelo poder?
Não, não! Não tem nada a ver com isso. A questão que hoje desafia todos é esta: qual é o papel do Estado em matéria de comunicação social? Em Portugal não há muitas dúvidas: há um canal público de televisão, uma agência noticiosa e depois há a comunicação social privada. A primeira dimensão está relativamente estabilizada sobre qual a intervenção que o Estado deve ter. Quanto à segunda — a comunicação social privada — discute-se muito hoje na Europa e fora dela, qual o papel que o Estado deve ter naquilo que se chama os programas de apoio à comunicação social. Os Estados Unidos também discutem muito isto. Será algo que teremos de fazer, de uma forma muito ponderada. Qualquer formulação de medidas de apoio à comunicação social tem que ser pensada no quadro europeu, nenhum país consegue, isoladamente, ter medidas de política pública para um sector como este. O próprio Presidente da República tem colocado este tema muitas vezes na agenda pública. Sabe porque estou interessada nesta discussão?
Diga.
Por uma razão muito simples. É fundamental para as democracias que a qualidade da comunicação social — regulada, isenta, livre — seja aquilo que move a forma como nos informamos e não outras plataformas, sem verificação da veracidade das notícias divulgadas. A democracia só sobreviverá, repito, com uma comunicação isenta, livre, regulada.
A questão é “com quem“” e “como”. Ou não?
Certo, por isso é que estamos a discutir qual o nível de intervenção do Estado — prefiro dizer “apoios” em vez de “intervenção”, para que fique claro. O desafio do Presidente da República é esse: que o Estado, as entidades públicas, tenham um plano que consiga — só para dar um exemplo que ilustre o que está em causa – lidar com a questão da capacitação tecnológica da comunicação social para fazer algo tão importante como a verificação de fontes ou de notícias. Já começámos aliás a trabalhar nisto com a Lusa. Ela está a fazer-nos um projeto com um fundo tecnológico, para aumentar a sua capacidade de verificação da fonte, a veracidade do conteúdo. Ora repare que isto nada tem a ver com a questão editorial, estamos a falar de infra-estruturação daquilo que é a capacidade dos media de vencer esta guerra. Estamos a falar da saúde da democracia.
Deixei para o fim uma palavra tida como tóxica não correndo assim o risco de envenenar logo de início a nossa conversa. A palavra é “subsídio”e a minha pergunta vai parecer-lhe ou imbecil ou confrangedoramente cândida: qual é o seu bom argumento para atribuir um subsídio? Dá-se um subsídio segundo o quê? Há algo de mais subjectivo que a qualidade, por exemplo?
Não há. Mas à ministra não compete de todo fazer a avaliação da qualidade… Confesso que também eu tenho algum problema com a palavra subsídio. E sabe porquê? Eu explico: porque nós não falamos em subsídios na educação e na saúde. E é igual…
… igual?
Do mesmo modo que os nossos impostos financiam o Serviço Nacional de Saúde ou a escola pública, eles — os impostos — também devem servir para financiar a oferta de cultura. E portanto, quando dizemos “subsídio” na cultura por oposição a investimento na saúde, estamos no fundo, a estigmatizar a cultura, que é algo que eu muito profundamente tentarei sempre desconstruir. O Estado tem que investir em cultura, em saúde, em educação, e em nenhum destes sectores se fala ou diz “subsídio”, só na cultura.
Porque será?
Porque precisamente, julgo que quando entre nós se fala de subsídio para a cultura, não se fala do território, da dimensão que ele tem, da infraestrutura, da rede, do que ele é e representa. Fala-se da companhia A ou B. Temos que falar da cultura — sobretudo daquilo que é oferta de cultura que existe no território — da mesma maneira que existe a oferta de saúde ou de escola pública. É disso que temos que falar.
Para terminar: quando acabar esta legislatura, convidá-la-ei outra vez, para lhe perguntar se a parte do seu programa que aqui conseguimos abordar se cumpriu ou não. Será o seu objectivo mas será interessante verificá-lo.
Sim, é evidentemente o meu objetivo. Assente na definição de uma estratégia, na rota de crescimento de investimento e nas medidas concretas com o respetivo calendário.
É como se tivesse aberto uma porta para outra coisa?
O que eu gostaria era que quando me convidar outra vez, eu pudesse dizer ‘fizemos isto, concretizámos aquilo’ para transformar um pouco o país”: no que é a oferta cultural, na forma como as pessoas se relacionam com o património, no modo como as empresas investem na cultura e na forma como cada um de nós sente a oferta cultural. Como algo que verdadeiramente transforma as nossas vidas e que nós encaramos como algo onde o Estado tem que investir, como investe em saúde ou como investe em educação.
[A entrevista na íntegra:]