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A grande Cecília

Cecília Meireles, a grande Cecília, morreu a 9 de Novembro de 1964. Há 50 anos. O Brasil comemora uma das referências literárias do século XX, Portugal parece tê-la esquecido. Não devia ser assim.

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O Brasil assinala, a 9 de Novembro, os cinquenta anos da morte de Cecília Meirelles, revisitando em colóquios, palestras e páginas de jornal aquela que foi e ainda é, sem qualquer dúvida, uma das suas grandes referências literárias do século XX. E Portugal? Nada parece estar previsto, ou já foi devidamente anunciado. Inércia, ignorância, neglicência, «fraco impulso de vida».

E no entanto… Abordado certa vez, no fim de uma conferência em São Paulo, Adolfo Casais Monteiro foi forçado a lembrar que haviam sido portugueses os primeiros a valorizar a grande arte poética de Cecília Meirelles. Na verdade, não só criticamente, como também editorialmente. E não me refiro sequer ao facto de o artista gráfico Correia Dias, seu marido, ter ilustrado os seus primeiros livros, Nunca Mais… e Baladas para El-Rei. Foi Álvaro Pinto, tão-só o maior editor português do século passado, na opinião avisada de Luís Amaro, quem, laborando no Rio de Janeiro em meados da década de 1930, lhe editou Criança, Meu Amor…, um livrinho adoptado pelo ensino primário, e que, de volta a Lisboa, lançou em Julho de 1939, pela Império, Viagem. Poesia 1929-37, que acabara de ganhar um primeiro prémio da Academia Brasileira de Letras.

Olhinhos de Gato apareceu em fragmentos na revista Ocidente, do mesmo editor, e alguns dos livros seguintes de Cecília, como Metal Rosicler e o importantíssimo Romanceiro da Inconfidência (1953), editados no Rio, tiveram afinal uma chancela «portuguesa», a de Livros de Portugal, de António Pedro. O tardio Solombra até foi impresso em Lisboa, a poucos passos da sede deste jornal, e ilustrado por Júlio Pomar, o que será uma surpresa para muita gente…

Ao insólito caso de um livro premiado por uma instituição como a ABL ser publicado noutro país, e além disso, dedicado «A meus amigos portugueses», não é alheio o facto de no fim de 1934 Cecília Meirelles ter vindo a Portugal a convite de António Ferro, e de ter sido recebida com altíssima estima. Não é todos os dias que aparece um artigo como o que Carlos Queiroz lhe dedicou no Diário de Lisboa de 23 de Novembro desse ano.

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O retrato desenhado por Arpad Szenes, 1942

O retrato desenhado por Arpad Szenes, 1942

Vaga Música, de 1942, também dedica poemas a portugueses, como Diogo de Macedo, Afonso Duarte, Fernanda de Castro e Alberto de Serpa, entre outros. Mas sobretudo inclui o inexcedível retrato que dela fez Arpad Szenes, o marido húngaro de Vieira da Silva, um retrato desde então mil vezes reproduzido como símbolo da beleza espiritual e física da escritora brasileira. Além disso, traz na capa um búzio, que será adoptado (por coincidência ou não…) como ícone de uma «revista luso-brasileira», Atlântico, criada escassos meses depois pelo Secretariado de Propaganda Nacional de António Ferro, e que tão bons serviços prestou, sem preconceitos estéticos ou políticos, às relações entre os dois países. Dois anos depois, Cecília organizou uma antologia de Poetas Novos de Portugal para a editora carioca Dois Mundos, dirigida por… Jaime Cortesão. E foi a vez de Maria Helena Vieira da Silva colaborar artisticamente em Mar Absoluto, com um belo desenho na capa.

Edição de Mar Absoluto, com desenho de capa de Maria Helena Vieira da Silva

Edição de Mar Absoluto, com desenho de capa de Maria Helena Vieira da Silva

Todos os seus livros foram admirados em Portugal. Carlos Queiroz recenseou Viagem no primeiro número de Brasília, revista do Centro de Estudos Brasileiros na Universidade de Coimbra. Mar Absoluto apareceu na primeira página do Diário de Lisboa, comentado por João de Barros, Vitorino Nemésio escreveu sobre Retrato Natural na sua crónica semanal do Diário Popular, Natércia Freire abordou Amor em Leonoreta na revista O Mundo Português. E mais, muito mais, sem esquecer que David Mourão-Ferreira reuniu a sua poesia sob a egídie duma frase de Cecília, «a arte de amar é exactamene a de ser poeta». E em 1951, quando ela veio a Lisboa e rumou aos Açores para conhecer Armando Côrtes-Rodrigues (com quem se correspondia durante anos; v. A Lição do Poema. Cartas…, 1998, 325 pp.), foi-lhe feita uma homenagem no Jardim-Escola João de Deus, em que falaram Sophia e David, e o poeta Alberto de Lacerda leu um ensaio de Jorge de Sena escrito para a ocasião, de seguida impresso num jornal do Porto.

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O mesmo Alberto de Lacerda que — com certeza sabendo por amigos comuns do agravamento da saúde de Cecília, acamada desde Maio por uma leucemia — se antecipou à fatalidade eminente, escrevendo para o Diário Popular uma delicada homenagem, tomando como pretexto, que hoje sabemos só aparente, a releitura de um dos seus livros mais instigantes. Antecipamo-nos também nós ao bater do sino da efeméride, publicando esse admirável depoimento (agradecendo a Luís Amorim de Sousa), mas também o memento que, semanas adiante, Vitorino Nemésio lhe dedicou num discreto jornal mensal. Dois textos que escaparam à atenção de Luísa Mota, autora de O Canto Repartido. Cecília Meirelles e Portugal (Imprensa Nacional, 2012, 248 pp.), um livro que hoje recomendamos. Em especial às directoras do Instituto Camões e da Biblioteca Nacional…

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Relendo Vaga Música de Cecília Meirelles

Reprodução do texto de Alberto de Lacerda, editado originalmente no Diário Popular, Lisboa, a 15 de Outubro de 1964:

Vaga Música: até este título pobre e incaracterístico Cecília Meirelles conseguiu resgatar num dos seus livros mais prodigiosos da língua portuguesa.

«Muitas velas. Muitos remos. | Âncora é outro falar… | Tempo que navegaremos | não se pode calcular. | Vimos as Pléiades. Vemos | agora a Estrela Polar. | Muitas velas. Muitos remos. | Curta vida. Longo mar.» [início do poema «O Rei do Mar»].

Música, sim; mas não vaga. É o verbo mais exacto a encarnar os pensamentos mais subtis e complexos, as sensações mais requintadas e imponderáveis; fugidias, sim; mas não vagas. A técnica de Cecília é um clavicórdio soberbo, capaz de todas as nuances, todas as levezas e solenidades, um clavicórdio moderno, uma reinvenção stravinskyana. De chofre, Cecília é capaz de arquitecturar, dentro da mesma fluidez técnica, este poema ocultista a que serão sensíveis mesmo aqueles que lhe desconhecem as chaves: «Oráculo | A Carlos Queiroz || Quieta coruja do bosque negro, | onde o azul-índigo e o verde-gaio? | Nos teus rios? No monte grego? | Ou na fenícia praia? || Agora, tarde. Mas, ontem, cedo. | Sonho: Cítera. Rumo: Tessália. | Árvore exausta. Cansado remo. | Clássica luz de Maio. || Ah! fuga antiga! Nas águas crespas, | oscilam juntos Políbio e Laio. | Sempre serpentes bebendo estrelas. | E um vento que desmaia. || Dansa Eufrosina por cinzas ténues. | E a transparente sombra de Tália | move na areia seus vãos desenhos. | — Só nas nuvens Aglaia!»

Há versos que só o génio pode criar: «Clássica luz de Maio» é um desses versos.

Traduz toda a perpendicular duma luz serena, igual, forte e transparente. É a luz da harmonia. E ali, no fim da estrofe, esse verso esplende como um triunfo: «Clássica luz de Maio». Só um génio complexo e um artista consumado é capaz de chegar a essa simplicidade: «Clássica luz de Maio.»

O sentido mais profundo das palavras parece ter sido precipitado pela sua música, e a música do poema, verso a verso, parece ter sido precipitada quimicamente pela sua estrutura intelectual e a sua carga temática e emotiva. 
Alberto Lacerda

Um dos mundos mais particularizados da língua portuguesa é a poesia de Cecília Meirelles. É um mundo liminar entre o real e o irreal, uma incidência estonteante sobre o abismo imenso e mínimo que separa o temporal do intemporal. Dizia Valéry: «O homem possui um certo olhar que o faz desaparecer, a ele e a tudo o mais, seres, terra e céu, e que se fixa, por curto espaço de tempo, fora do tempo» [in Mauvaises pensées et autres, 1942, p. 159]. O paradoxo do poeta em geral, e de Cecília em particular, é que esse olhar lançado fora do tempo não faz desaparecer, mas abarca simultaneamente a autora e tudo o mais, os outros seres, a terra e o céu. Ela é transmissora dessa verdade de que fala Camões: «Uma verdade que nas cousas anda | que mora no visível, e invisível.» [Elegia V]. Em certos momentos supremos, Cecília é a encarnação total da Poesia; em certos versos seus reside a explicação integral dessa palavra inexplicável — poesia.

«Deus dansa || Seus curvos pés em movimento | eram luas crescentes de ouro | sobre nuvens correndo ao vento. || Como nos jogos malabares, | ele atirava o seu tesouro | e apanhava-o com as mãos nos ares… || Era o seu tesouro de estrelas, | de planetas, de mundos, de almas… | Ele atirava-o rindo pelas || imensidões sem horizonte: | tinha todo o espaço nas palmas | e o zodíaco em torno à fronte. || Eu o vi dansando, ardente e mudo, | a dansa cósmica do Encanto. | Unicamente abismos, — tudo || quanto no seu cenário existe! |  Que vale o que valia tanto? | Eu o vi dançando, e fiquei triste…»

Sobre Lisboa, com desenho de Vieira da Silva

Sobre Lisboa, com desenho de Vieira da Silva

Há dois tipos fundamentais de poeta: aquele em que é discernível o tema e a sua encarnação verbal; e aquele em que a poesia parece nascer do próprio fluir mozartiano das palavras. Não é mais poeta um tipo do que o outro; mas são diferentes; e não reside essa diferença nas decantações antínomas do subjectivismo e objectividade, lirismo e não sei que mais. Ao tipo em que é discernível o corpo e a alma do poema pertencem um Eliot, um Antero, um Carlos Drummond de Andrade; ao tipo mozartiano (que nada tem a ver com qualquer noção de saloia espontaneidade) pertencem D. Dinis, o Camões das redondilhas, incluindo «Sôbolos rios» (mas não o dos sonetos), o Bocage dos sonetos mais patéticos, o melhor João de Deus, quase todo Manuel Bandeira, e Cecília, a grande Cecília.

Esse tipo de poesia não é sinónimo de simplicidade nem de uma arbitrária noção de lirismo. Chamar-lhe-ei uma poesia mozartiana, pois a riqueza de pensamento é gémea do rigor arquitectónico e de não sei que graça que faz a tessitura semântica se confunda com a sua música. O sentido mais profundo das palavras parece ter sido precipitado pela sua música, e a música do poema, verso a verso, parece ter sido precipitada quimicamente pela sua estrutura intelectual e a sua carga temática e emotiva. É mais subtil e mais difícil de definir do que o equilíbrio indestrincável fundo-e-forma que toda a obra de arte exige.

Cecília Meirelles é da família dos artistas em que o próprio meio de expressão — no seu caso, a palavra e o ritmo — desencadeia, na maior parte das vezes, as suas reservas emotivas, intelectuais, metafísicas. Mozart é o arquétipo desta família de artistas. Cecília Meirelles, uma das três ou quatro mulheres de génio de literatura universal, é o mais mozartiano dos poetas de língua portuguesa.

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Memento a Cecília Meirelles

Reprodução do texto de Vitorino Nemésio, editado em A Esfera, Lisboa, em Dezembro de 1964. Com o poema «Epitáfio da Navegadora». Meses depois, Nemésio dedicou Ode ao Rio «à memória de Cecília Meirelles» (e de outros).

Pedem-me gentilmente uma impressão ou perfil de Cecília Meirelles comemorando a sua morte, há semanas. Morte de quem sempre será viva! A poesia de Cecília, fina e profunda como ela, ficará sendo o seu corpo enquanto o português durar. Poetas tão altos como ela alguns houve no Brasil e em Portugal; maiores, talvez nenhum. Poesia de interioridade, em que as próprias coisas são signos de sentido e valor — aparentemente «vaga música», como ela chamou a um livro, mas no fundo a orquestração prodigiosa de um «mar absoluto» — a sua vida.

Esta imagem da água é das que mais vezes passam, com diversas variantes, nos seus livros, de que «solidão» e «silêncio» são os motivos fundamentais. Nascida órfã de pai, perdeu a mãe aos três anos; a mãe da mãe a criou. Era uma senhora das ilhas, de São Miguel; Cecília aprendeu da avózinha os mesmos romances que, cem anos antes, tinham encantado Garrett, menino e moço na Terceira. Pedrina, a boa serva, completou-lhe a criação com histórias e lendas do Brasil.

Estilo poético linguisticamente português, exprimindo todavia uma concepção do mundo tão universal na amplitude como brasileira em muitos módulos: o mundo exterior colorido dos trópicos, o meio social aculturado do Romanceiro da Inconfidência.
Vitorino Nemésio

Estas raízes açorianas de Cecília ajudaram a nossa amizade quando nos conhecemos, encontrados quase sempre a breve prazo, a não ser no inverno brasileiro de 1952, na sua cidade natal do Rio de Janeiro. Então, como em 1958, — mas cruzados à pressa, e pela última vez, — conferimos as coisas que estimávamos, falámos dos amigos comuns. Afonso Duarte, grande poeta como ela, foi uma das maiores afeições que por cá semeou. Outra, fortalecida na viagem que em 1951 Cecília fez aos Açores, foi a de Armando Côrtes-Rodrigues, de quem se despediu em cantigas quadradas resolutamente negligentes, irmanando-se assim por humildade com os velhos cantadores ilhéus e sertanejos que tão finamente compreendia.

Como resumir obra e vida tão harmoniosas e longas, em meia dúzia de linhas? Do estilo sim, que se pode falar mais depressa. Este grande poeta brasileiro escreve português vernáculo, bebido nos clássicos comuns a Portugal e Brasil, sobretudo nas fontes do lirismo: o Romanceiro e o Cancioneiro (Cecília foi folclorista e mesmo etnógrafa), e os poetas maiores e mais fiéis ao filão: de Camões a António Nobre, com trânsito por Garrett e por Gonçalves Dias. Com um vocabulário médio, depurado de formações particularistas e anómalas, Cecília criou a sua linguagem de toda a gente e só dela: expressão ao nível de um Rilke, de um Supervielle, de um Pessoa. Estilo poético linguisticamente português, exprimindo todavia uma concepção do mundo tão universal na amplitude como brasileira em muitos módulos: o mundo exterior colorido dos trópicos, o meio social aculturado do Romanceiro da Inconfidência. Sobre isso, vastidão de imagens, mas contensão exemplar de metaforismo e sintaxe, tirando a força do sentido da prodigiosa fundura da experiência verbal do mundo.

CM RI

Mas que podem dizer análises estilísticas que elucide o encanto da entrada natural do leitor em tal sistema poético: o universo ceciliano do silêncio e da solidão, da Morte vencida a Tempo, da infância recuperada pela recordação numa inocência de renúncia, da «Balada da Bela Adormecida» pela «serena desesperada»?

Na Poesia imortal de Cecília Meirelles está o seu grande espírito, honra da pátria brasileira, que fala portuguêsmente a todos. Todos, num livro de opera omnia a papel pluma, o podem conversar. Mas aos amigos da mulher incomparável — «graciosa, boa e doce», como diria Eça — falta humanamente o melhor: a gentileza mineira, a boa graça, o verde grão-de humor dos seus olhos cansados de tanto ver mas sempre com um lume de esperança: «Do lado de oeste, | do lado do mar, | há um suave cipreste | para me embalar. | Pássaros celestes | me virão cantar.

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