Estávamos ainda em finais de junho quando os sindicatos que representam a maioria dos trabalhadores da Groundforce cruzaram uma linha vermelha que ainda não tinham passado desde o início da pandemia (e do início da maioria dos problemas da empresa): a marcação de greves. A Groundforce – que tinha passado de uma redução brutal da atividade para uma guerra surda entre acionistas (Alfredo Casimiro e TAP), a que se juntou um braço de ferro com o ministro Pedro Nuno Santos – esgotou, ao longo de meses, a sua capacidade de pagar aos trabalhadores a tempo e horas e um comunicado de Alfredo Casimiro em 28 de junho precipitou a bomba atómica.
Nessa nota aos trabalhadores no final do mês passado, Alfredo Casimiro propunha-se a pagar o salário de junho por tranches: apenas 65% da remuneração numa primeira fase e o resto depois. Pior: deixava em dúvida o pagamento de julho. Por essa altura do mês já os salários deveriam estar processados, notaram na altura fontes sindicais, acrescentando que alguns pagamentos continuavam por fazer: anuidades vencidas e subsídios de férias. Foram os subsídios de férias que, mais tarde, fariam entornar o copo no fim de semana passado. Mas já lá vamos.
Logo na altura foram quatro as estruturas sindicais que convocaram vários tipos de greve: greve por tempo indeterminado ao trabalho suplementar, bem como à primeira e à última horas de cada turno. Mas, mais grave, uma greve total que apanhava o fim-de-semana do fim da primeira quinzena de julho: 17 e 18 de julho. Os pré-avisos de greve foram enviados pelo Sindicato dos Trabalhadores dos Transportes de Portugal (STTAMP) – estrutura com forte implantação no Porto e que representa cerca de 250 trabalhadores da Groundforce; e o Sindicato dos Trabalhadores dos Aeroportos Manutenção e Aviação (STAMA) – que tem como associados 80 trabalhadores da empresa. O Sindicato dos Técnicos de Handling de Aeroportos (STHA) – cerca de 100 associados da Groundforce – e o SITAVA (800 associados da Groundforce) juntaram pré-avisos depois.
Além deste período que apanhava 17 e 18 de julho, havia outros períodos de greve pré-agendados: 30 e 31 de julho e 1 de agosto. E um período “pré-reservado” de greve entre 2 e 31 de agosto, marcado pelo STTAMP, que incluirá uma paralisação em cada um dos dias que eventualmente sejam marcados para manifestações.
Ou seja, um cenário de vários dias de greves totais marcadas para dois fins de semana importantes para os turistas (os que partem e os que chegam a Portugal): o do fim da primeira quinzena de julho e o do início do mês de agosto. Na sequência da marcação das greves, os representantes do Ministério das Infraestruturas e Habitação reuniram-se com os representantes do STTAMP e do STAMA. E tinham uma solução na mala: a TAP iria assumir os subsídios de férias que a Groundforce não estava a pagar. Mas exigiam que, em troca, os dois sindicatos retirassem os pré-avisos.
A 9 de julho, as duas estruturas sindicais davam conta de que tinham chegado a acordo nos termos propostos pelo Governo/TAP. “Foi possível chegar a um entendimento com o Governo/TAP tendo sido firmado o compromisso de ser pago o subsídio de férias aos trabalhadores da Groundforce”. A TAP pagaria 5 milhões de euros em subsídios de férias dos trabalhadores. Os pré-avisos de greve do STTAMP e do STAMA foram levantados e tudo parecia bem encaminhado. O ministério convocou então os restantes sindicatos para lhes dar conta do que tinha sido acordado, para que também estes levantassem os seus pré-avisos de greve.
O “não” de Casimiro que custou milhões à TAP
Mas isso não aconteceu. O SITAVA – o sindicato mais representativo, que tem cerca de 800 associados que são trabalhadores da Groundforce – considerou que o acordo era “uma boa notícia”. E foi tudo. “Logicamente que o pagamento do subsídio de férias é uma boa notícia, no entanto, não abdicaremos de manter os pré-avisos de greve nos dias finais de cada mês, enquanto não estiver definida a situação de estabilidade da empresa”. Também dizia que não iria retirar quaisquer greves antes de discutir o assunto com os associados em plenário, marcado para dia 15, ou seja, nas vésperas de começar a paralisação. Também o STAH manteve os seus pré-avisos, que diziam apenas respeito ao fim de semana que passou.
Numa história que já conheceu volte-faces consideráveis – incluindo acordos entre a TAP e a Groundforce que Alfredo Casimiro primeiro aceitou, mas depois deixou de reconhecer, ou gravações não autorizadas de reuniões entre a tutela e o acionista maioritário da empresa – também nesta negociação haveria uma surpresa de última hora.
Nas reuniões com os sindicatos, o Governo esteve representado por Hugo Mendes, secretário de Estado Adjunto de Pedro Nuno Santos (e das Comunicações), que exigiu a retirada dos pré-avisos, mas não terá dado uma informação importante. A Groundforce – ou seja, Alfredo Casimiro – teria de aceitar o pagamento do subsídio de férias por parte da TAP acordado entre o Governo e os sindicatos. Ou, explicando melhor, o acionista minoritário da Groundforce, a TAP, poderia ser acusada de estar a abusar da sua posição, ao injetar, sem concordância, 5 milhões de euros na empresa. Mas ninguém terá pensado que Alfredo Casimiro – atualmente a tentar (mas a sentir dificuldades) vender a sua posição à Swissport – rejeitaria o adiantamento da TAP.
Só que foi isso mesmo que aconteceu. A 14 de julho, a Groundforce rejeitou o adiantamento – considerando que se tratava “de um estratagema jurídico de última hora” antes de começar o julgamento da insolvência pedida pela companhia. E dizia que, à data de final de junho, a TAP devia mais de 7 milhões de euros à Groundforce em serviços prestados, dos quais 3 milhões já vencidos.
Com os pré-avisos do STTAMP e do STAMA já retirados – e os do SITAVA marcados apenas para o final de julho – valeram os do STAH. Haveria greve a 17 e 18 de julho. No sábado e no domingo, mais de 80% dos trabalhadores da Groundforce aderiram à paralisação, obrigando as companhias aéreas a cancelar centenas de voos, especialmente no aeroporto de Lisboa.
Dos 1.049 voos marcados para os aeroportos portugueses (aterragens e descolagens), apenas se realizaram 399. O cenário, especialmente no Humberto Delgado, foi o de dezenas ou centenas de turistas espalhados pelas salas de espera ou a dormir pelos corredores. A TAP terá cancelado todos os seus voos de domingo, numa tentativa de, logo à partida, evitar a ida dos passageiros para os terminais.
O transporte aéreo em Portugal, pelo menos em termos de número de voos, ainda não estará aos níveis do pico de época de 2019. Mas para lá caminha. Fontes do setor da aviação ouvidas pelo Observador concordam que, por estes fins de semana, a Groundforce já estava a lidar com movimentos (aterragens e descolagens) semelhantes aos meses de setembro e outubro de 2019. Pode ser uma boa evolução face ao que havia, mas não deixa de se comparar a melhor altura do ano, julho e agosto (neste caso de 2021), com a mais fraca de 2019 (setembro e outubro).
E isso levanta a questão: quanto é que isto custou à TAP? Numa altura normal, com a TAP a operar normalmente, uma interrupção como a que se verificou resultaria em compensações aos passageiros (e gastos com alojamentos) de cerca de 5 milhões de euros por dia. São os chamados “Delayed Bording Compensations”, a cargo de cada transportadora. A nova CEO diz que a atual operação da companhia estará nos 60%, o que reduziria este valor de prejuízo para 3 milhões diários.
Numa primeira análise, são as companhias que têm o dever de indemnizar e compensar os passageiros pelos constrangimentos. Mas podem exigir o direito de regresso a quem lhes presta o serviço. Foi o que foi feito na altura da crise de abastecimento dos combustíveis, devido à greve dos camionistas, em abril de 2019. Neste caso trata-se de outra entidade, por sinal uma que já deve bastante à TAP, a Groundforce.
Uma fonte do setor ouvida pelo Observador considera que não é claro que a TAP possa imputar à Groundforce as compensações. Os acordos de handling entre as companhias e as empresas de handling seguem um modelo padrão definido pela IATA (a associação internacional de transporte aéreo). São os chamados SGHA (Standard Ground Handling Agreement). E, neste ponto, não existe responsabilidade pelas greves se houver aviso atempado:
“Ambas as partes ficam isentas de obrigações se qualquer uma delas der notificação atempada a respeito de qualquer falha no cumprimento das suas obrigações (…) que resulte de qualquer uma das seguintes causas:
- Disputas laborais que envolvam paralisação total ou parcial ou atrasos no cumprimento do trabalho.
- Causas de força maior (force majeure) ou qualquer outra causa fora do controlo das partes.”
A TAP poderia alegar que Alfredo Casimiro recusou uma solução que evitaria a greve: a injeção de 5 milhões de euros por parte da TAP para saldar os subsídios de férias dos trabalhadores. Ou seja, a TAP teria de invocar que esta foi uma “greve dolosa” para a TAP. Mas, no final do dia, o caso ficaria dependente da arbitrariedade de um tribunal. Como foi no caso da greve dos motoristas de matérias perigosas, decidido a favor a TAP.
Que caminhos tem a TAP?
Resta uma pergunta. E agora? A pergunta que tem sido repetida desde que Alfredo Casimiro, a TAP e Pedro Nuno Santos se sentaram pela primeira vez para encontrar uma solução definitiva e permanente para o (cada vez maior) problema da Groundforce.
Com Alfredo Casimiro incapaz de concluir a venda da sua posição, o que pode o Governo fazer? Uma vez que a TAP é, desde há meses, a dona do material da Groundforce (devido a um acordo em que companhia injetou 6,9 milhões, mas que depois Alfredo Casimiro considerou nulo), poderia o Estado anular o contrato com a empresa de handling e fazer um novo acordo com outra empresa?
A resposta, segundo várias fontes é “sim, mas…”. Vamos por partes. A TAP, provavelmente, nem teria de pagar indemnização à Groundforce, isto porque a empresa já terá falhado suficientes vezes o cumprimento das suas obrigações contratuais. Ou seja, a TAP já estará em condições de rescindir com justa causa.
Teria então de se adjudicar o serviço que presta a outra empresa. Caso fosse uma empresa internacional, esta teria desde logo um obstáculo: teria de comprar a licença de operação a Alfredo Casimiro, só para poder operar nos aeroportos portugueses. Ou teria de esperar por uma licença passada pela ANAC (a Autoridade Nacional de Aviação Civil). O que demora.
Uma possibilidade seria a empresa de handling Portway – da Vinci – ficar com o contrato de prestação de serviço. Trata-se de um candidato natural. Mas a empresa não tem capacidade atualmente para lidar com todo o volume de uma operação normal.
E aqui surge outro problema: qualquer empresa a operar em substituição da Groundforce teria de ter gente formada para trabalhar neste setor. Para não “perder” meses em formação de trabalhadores, poderia absorver os trabalhadores da Groundforce, algo que teria de fazer integrando – com os mesmos salários e condições originais – os colaboradores da atual empresa de handling de Alfredo Casimiro. “Mas há inúmeras questões legais que poderiam ser atacadas”, ressalva outro especialista ouvido pelo Observador.
A solução mais definitiva passa por um desejo antigo de Pedro Nuno Santos: o afastamento de Alfredo Casimiro (e sem nacionalização da sua parte, para evitar eventuais compensações). Para tal, o banco Montepio, que originalmente deu um crédito a Alfredo Casimiro para comprar a SPdH (nome oficial da Groundforce), teria de completar a execução de vários penhores que detém sobre essas ações (o Novo Banco também tem um). Há muito que Casimiro já está em incumprimento perante, pelo menos, o Montepio.
A execução dessas ações permite, por exemplo, à Swissport (Suíça) e à Aviapartner (Bélgica) virem a adquirir a posição. Mas também poderia permitir ao anterior CEO da Groundforce, Paulo Neto Leite, (afastado por Alfredo Casimiro) materializar a intenção, já manifestada, de realizar um management buy out (MBO), caso apresentasse ao Montepio a melhor oferta.
Esta segunda-feira, o jornal Eco adiantou que essa solução a envolver uma ação do Montepio está agora mais perto. Segundo o jornal, o Montepio – que avançou mesmo para a execução – obteve uma vitória em tribunal, ao ver o juízo central cível de Lisboa a considerar improcedente uma providência cautelar apresentada por Alfredo Casimiro. Esta decisão significa que o Montepio já pode vender as ações da Groundforce.
Por outro lado, a ANA – Aeroportos de Portugal – um dos maiores credores da Groundforce, com dívidas acumuladas de mais de 13 milhões de euros – decidiu revogar uma das licença de ocupação da empresa de handling. Uma decisão com um alcance ainda difícil de avaliar, especialmente porque a empresa que gere os aeroportos refere um valor de cerca de 769 mil euros em dívida, relativos ao aeroporto de Faro.
Ou seja, por muito que a greve da Groundforce tenha dado força (temporariamente) a Alfredo Casimiro no braço com o Governo, nomeadamente com Pedro Nuno Santos, pode ter sido uma “vitória de pirro”. O impacto da paralisação – e a possibilidade de se repetir, com maior força, no final do mês – pode ter precipitado as peças no tabuleiro rumo a uma solução definitiva. Sem ele. Mas o maior acionista da Groundforce já viveu (e ultrapassou) apertos destes antes.