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Duarte Calvão (à direito), já lia o Chez Pirez de Miguel Pires quando decidiram unir forças gastronómicas. Nem sempre concordam mas num aspeto não hesitam: abrir um restaurante? "Nunca"
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Duarte Calvão (à direito), já lia o Chez Pirez de Miguel Pires quando decidiram unir forças gastronómicas. Nem sempre concordam mas num aspeto não hesitam: abrir um restaurante? "Nunca"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Duarte Calvão (à direito), já lia o Chez Pirez de Miguel Pires quando decidiram unir forças gastronómicas. Nem sempre concordam mas num aspeto não hesitam: abrir um restaurante? "Nunca"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Hoje é muito raro uma má crítica fechar um restaurante. Tem muito mais peso uma primeira boa crítica que se torna viral"

15 anos depois de lançarem o blogue Mesa Marcada, Miguel Pires e Duarte Calvão voltam a distribuir prémios na área da gastronomia. Das redes ao turismo, falámos do que mudou e do que não muda.

Muitos desconheciam o conceito de pesto ou de foie gras, a mais acesa das guerras travava-se entre tradição e nova cozinha, os restaurantes não proliferavam como cogumelos, e dispensava-se reserva antecipada para garantir uma mesa em Lisboa. 15 anos depois, Miguel Pires e Duarte Calvão admitem que muito mudou na literacia gastronómica do público português. O primeiro vem da publicidade, o segundo do jornalismo. Conheceram-se no extinto Aya e em 2009 lançavam o blogue Mesa Marcada, unindo os pontos de um universo que viu crescer o número de chefs, foodies, críticos, emergentes influenciadores via redes sociais e outros protagonistas do setor. Esta segunda-feira, a partir do Centro de Congressos do Estoril, voltam a distribuir prémios em 11 categorias, perante um auditório onde se esperam 500 convidados.

Dos habitués do Gambrinus às estrelas Michelin, das mesas do dia a dia ao poder de uma crítica, passando pelo controverso tema do turismo, recuamos no tempo, regressamos ao presente da gastronomia e antecipamos os próximos 15 anos — se por acaso mantiverem a genica do crítico gastronómico do El País, Jose Carlos Capel, para se manterem nesta maratona de almoços e jantares.

“Mal as pessoas sabem que se fala aqui de comida”, comentava o Miguel quando pedimos uns meros cafés e água. Ainda acontecem momentos como este, em que vão a restaurantes e passam despercebidos?
Miguel Pires (MP) — Depende do tipo de lugar, mas também há um bocadinho o mito urbano em torno dessa personalidade.

Da figura do crítico?
MP — Sim, acho que muitas pessoas viram muito o Ratatouille… (ri-se)

Duarte Calvão (DC) — Eu tive sempre esse problema porque comecei nisto na segunda metade dos anos 90, como jornalista, e só comecei mais a escrever crítica cinco, seis anos depois, e realmente não dava para uma pessoa estar incógnita. Eu falava com os chefs, os restaurantes eram relativamente poucos, e portanto quanto entrava… Mas há uma coisa que nunca fiz na vida que é marcar restaurantes em meu nome.

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Usa um pseudónimo?
DC — Marcava sempre com outro nome, da minha mulher, ou da pessoa com quem ia, ou inventava nomes. Quando aparecia muitas vezes de facto era reconhecido, mas há muitos casos em que de certeza não o sou. Depois, ainda por cima, como fui 12 anos diretor do festival Peixe em Lisboa, durante esse período era famosíssimo no bairro todo. Mas a certa altura pensei: não me vou preocupar com isso. O que é que vão fazer se eu por acaso entrar num restaurante, desde que não me anuncie? Vão de repente começar a cozinhar melhor? Servir-me mais comida? Pode haver uma atenção ou outra mas…

Na prática, não muda radicalmente a experiência?
DC — Claro.

MP — Acho que também há duas situações diferentes. O problema é que temos vários papéis, não dá para viver em Portugal só da crítica. Salvam-se umas exceções. Por um lado, não queríamos conviver muito com os chefs para ter uma certa distância, por outro tínhamos que fazer certo tipo de trabalhos em que envolvia fazer isto. Tenta-se manter este equilíbrio. Mas hoje, com o jornalismo quase a acabar, há aqui uma mistura de coisas, e nós próprios temos que ter a nossa própria ética. Nesse sentido, sim, sou reconhecido nos restaurantes que estão mais ligados à comunidade gastronómica, mas se calhar sou mais reconhecido em sítios onde não estava à espera do que aqui no Príncipe Real, onde moro. No outro dia lá vieram mais dois ou três pratos no sítio onde estava e no fim não me queriam deixar pagar, e eu disse que tinha de pagar.

"Sempre me desagradou e evitei essa intimidade com os chefs. Quero que essas pessoas deem certo mas precisamente por isso evito esse contacto. Se fosse escrever sobre o sítio tal tinha que dizer que o pisco não presta para nada para o preço que pedem. Procurei sempre ser o mais possível transparente com o leitor. Se é um chef que conhecemos há muito tempo, referir isso. Se fomos reconhecidos, muito bem, contar isso."
Duarte Calvão

Mantêm a regra?
MP — Sim, quando faço crítica. Quando sou convidado é diferente. Quando eu marco, eu pago. Mas essa figura do crítico gastronómico, que vive ali nas trevas e depois sai para ir…

DC — Ou então cria-se uma vida paralela. Noutro aspeto temos os inspetores Michelin mas têm que ter uma vida só para aquilo. Havia uma crítica muito célebre que era a Ruth Reichl, que chegava a disfarçar-se. Um dia era a hippie velha, ou a mulher de negócios..

MP — Porque nos EUA, e nomeadamente em Nova Iorque, o tratamento é diferente

DC — Mas por exemplo o Mario Batali dizia a gozar “lá vem a Ruth Reichel, desta vez vem disfarçada de não sei quê” (ri-se). Mesmo com cuidados…

Era reconhecida.
MP — E com os inspetores é a mesma coisa, entre os chefs. Hoje é mais difícil mas com os espanhóis já sabíamos quem eram. Até pelos grupos de WhatsApp. “Olha, andam aí”. É tipo fiscais da Emel.

Essa proximidade que acabam por construir com os chefs também é fonte de constrangimento? Limita o que escrevem?
MP — Limita em algumas coisas, que prefiro não fazer. Por outro lado, o anonimato permite fazer às claras o que a pessoa não faria, ou seja, para o mal. Ser mais jocoso, talvez, gozar com a profissão e com o estatuto social, etc. Hoje aquela influência que uma má crítica podia fechar um restaurante ou uma boa crítica podia torná-lo um mega sucesso, isso é muito raro. Talvez em Nova Iorque. Um conjunto de más críticas pode dar problemas, uma muito boa crítica se for a primeira, e se aquilo se espalhar de forma viral, tem muito mais peso.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Aqui entra o fator redes sociais, uma outra realidade em relação a 2009, quando começaram com o blogue Mesa Marcada.
MP — Sim, e sei que isso pode, de facto, ter impacto. Tenho casos por aí em que um restaurante em que até não estava à espera [de grande procura] e nos dias seguintes o dono diz-me que teve imensa gente. Mas se tivesse desancado naquilo…

Continuaria aberto?
DC — Acho que se cria um certo movimento. Só uma pessoa não [tem impacto], mas muitas vezes quem escreve, não só jornalistas, personalidades das redes… De repente, há um que começa a falar mal de um restaurante, e pode de facto afetar a imagem de um restaurante novo.

MP — Sim, mas se é num caso em que a comida serve apenas para compor um lugar bonito, não tem influência nenhuma essa má crítica.

DC — Agora, em relação aos chefs que conheço, e gosto muito de vários, posso considerar alguns amigos, mas não amigos íntimos, não de ir a casa deles, não de fazer programas com eles, que eu vejo que está muito em voga internacionalmente. Sempre me desagradou e evitei essa intimidade com os chefs. Quero que essas pessoas deem certo mas precisamente por isso evito esse contacto. Se fosse escrever sobre o sítio tal tinha que escrever que o pisco não presta para nada para o preço que pedem. Procurei sempre ser o mais possível transparente com o leitor. Se é um chef que conhecemos há muito tempo, referir isso. Se fomos reconhecidos, muito bem, contar isso.

É importante deixar clara a natureza da relação quando escrevem?
DC — Sim, e depois cada um tira a conclusão. Há uns que dizem “estes tipos são uns comprados e só querem comer à borla”.

Ainda ouvem muito isso?
MP — Mas isso faça-se o que se fizer… Havia um restaurante em Lisboa de que gostava mesmo muito e talvez por isso nesse ano, ainda não tinha filhos, devo ter lá ido umas 10 vezes. Só havia um cliente que tinha ido mais vezes que eu e acabou por ficar lá a trabalhar (ri-se). E paguei sempre. E resolvi escrever. Fiz uma declaração de interesses dizendo que lá tinha ido pelo menos cinco vezes e pude fazer uma avaliação de tudo. Acho que foi pacífico e caiu bem essa declaração de desinteresse, neste caso, porque paguei sempre.

É curioso menci0nar esse número de vezes. Entrevistaram recentemente o Edgardo Pacheco, que é um compêndio de saber nesta área, e ele comenta precisamente a falta de fidelização que se sente atualmente nos restaurantes.
MP — Eu por acaso não acho. Experimente ir ao Gambrinus ou ao Solar dos Presuntos. Claro que a maior parte vão ser estrangeiros mas vê sessentões a serem tratados por “menino”.

"Quando comecei a escrever [no final dos ano 90] tinha que explicar o que era pesto, que o foi gras não era um patê. Achavam que era qualquer porcaria. A grande discussão era entre tradição e modernidade, que hoje é praticamente ultrapassada. Chamava-se nouvelle cuisine a tudo e mais alguma coisa. A TV teve um papel importante, programas de tipos como o Jamie Oliver."
Duarte Calvão

Fala da figura do habitué?
MP — O Vasco Pulido Valente tinha a sua poltrona, o Fernando Lopes tinha o seu lugar, se calhar é uma forma romântica mas nos bairros então ainda existe.

DC — Estás a falar dos restaurantes mais antigos. Ele [Edgardo Pacheco] falava dos novos projetos.

Sim, também me referia aos mais recentes. Esta coisa de vivermos de entusiasmo em entusiasmo quando falamos de novos restaurantes.
MP — Claro que restaurantes mais gastronómicos têm uma proposta de que eu gosto muito mas não são para ir todos os dias. Há menus de degustação que a pessoa faz uma vez por ano… Sei lá, fui ao Quique Dacosta e em seis meses ele tentou fazer pratos diferentes e aquilo cansa, e estamos a falar de um dos melhores do mundo. É isso e o excesso de turismo. Se eu passo por um restaurante que é o meu restaurante mas tenho que marcar cinco meses antes fica difícil…

DC — E também tem a ver com a idade e o tempo. Hoje já não tenho aquela capacidade de almoçar, jantar. Há tantos convites que eu procuro…

MP — Às tantas só queremos comer em casa (risos).

DC — Até por razões de saúde. Nesta área assisti a imensos casos de pessoas que não tiveram cuidado e até morreram. Com o passar do tempo procuro poupar-me. No dia em que deixar de ter prazer a ir a um restaurante mudo de vida. Por muito que tente ser analítico, o prazer da refeição é fulcral.

MP — Só corrigindo o “eu gosto de comer em casa”, porque isto dá uma boa tirada, eu sei…

Uma boa t-shirt até.
MP — (ri-se) Porque é supostamente o contrário do que é a nossa profissão. Temos muitas solicitações, mesmo que se recuse 80% delas. Quando era solteiro, tinha duas malas preparadas em casa: uma para um lugar quente e outra para o frio. Fazia parte, e se eu quisesse ainda hoje haveria viagens dessas para fazer no circuito. É daquelas em que se sai de um almoço para um jantar. Mesmo só a nível nacional, há excesso de gordura, álcool, açúcar, enfim. Primeiro, gosto muito de cozinhar em casa e também gosto de ir aos meus restaurantes.

Que não são necessariamente novos?
MP — São quatro ou cinco em que acabo por ir, aqui ao pé. Socialmente não sou fã de “vamos conhecer um restaurante novo”.

Não há essa urgência?
MP — Não, não. Mas quando escrevemos sobre um lugar novo que abre é o que tem mais visualizações. Ou então sobre um clássico.

DC — Há coisas de que gosto imenso e não vou lá há anos. Há uma profusão de aberturas em Lisboa, de chefs, imensas solicitações. E eu adoro restaurantes, sinto imensa falta.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Fala da experiência de ir, de estar, não só de comer?
DC —  Sinto falta da criatividade, não tanto da cozinha caseira, porque também a faço. Sinto falta da alta degustação. Quando foi a pandemia senti muito isso. Precisamente porque gosto muito de ir a restaurantes tento não exagerar.

Já falámos de algumas mudanças quando rebobinamos estes últimos 15 anos. Já não se janta sem reservar, por exemplo, pelo menos em Lisboa.
MP — Sim, sobretudo em certas alturas do ano.

E outro aspeto: a evolução da nossa cultura gastronómica. Interessamo-nos mais pelo mundo dos alimentos e cozinhamos mais em casa?
MP — Por um lado sim, e ainda bem, porque também acabaram as mães que cozinham. Ou as avós. Que tem a ver com a evolução da sociedade. Por outro lado, talvez haja mais homens a cozinhar. Perde-se algumas coisas, de família, se havia essa tradição – essa questão coloca-se sobretudo em Itália, com a cozinha da nonna. O [chef italiano] Davide Scabin dizia que as mães vieram trucidar a comida da nonna porque começaram a trabalhar. Há outra questão, não sei se queria perguntar se está a haver uma descaracterização da cozinha portuguesa no meio disto tudo…

Apontava sobretudo para as mudanças mais significativas.
MP — Neste último ano e meio, os preços das coisas. Os 100 são os novos 60, os 60 os novos 40…

DC — E não vai voltar…

MP —  Pois, mas isso é em tudo, desde o litro de leite. E não é porque os chefs de repente ficaram todos famosos e ricos. Alguns ficaram, mas não é por isso. As coisas aumentaram mesmo, mas os ordenados não. Está a viver muito do turismo, não sei se é uma bolha ou se está consolidado, e o mercado vai-se mexer. Se não der para todos, alguns vão fechar, isto acontece em todo o lado. Em Madrid passa-se o mesmo.

DC — Em relação ao que mudou em 15 anos, e pensando no horizonte dos prémios, acho que houve um alargamento muito grande a outros pontos além da capital.

Uma efetiva descentralização?
DC — Sim, dos portugueses e turistas. Tenho impressão que se acabasse o turismo, ou se diminuísse muito, metade dos restaurantes fechavam. E lá fora é o mesmo. Quando comecei, metade destes restaurantes estavam às moscas.

MP — Os restaurantes também estão a perder o almoço de negócios. Isto alimentava uma série de restaurantes.

DC — Hoje os mais criativos estão cheios, o que viabilizou esses negócios foi o turismo, não foi apenas o mercado português.

Mas que também cresceu muito?
DC — É verdade, cresceu o interesse das pessoas para novas experiências. Quando comecei a escrever no DN tinha que explicar o que era pesto, que o foie gras não era um patê. Achavam que era qualquer porcaria. Havia um conhecimento bom da cozinha portuguesa mas mesmo assim era limitado. A TV teve um papel importante, programas de tipos como o Jamie Oliver. Quando comecei, a grande discussão era entre tradição e modernidade, que hoje é praticamente ultrapassada. Chamava-se nouvelle cuisine a tudo e mais alguma coisa.

Depois vieram os espanhóis.
DC — A vanguarda espanhola. Lembro-me de o Vítor Sobral fazer uma emulsão com um azeite portuguesíssimo e havia um tipo a dizer que ele estava a fazer cozinha francesa porque bateu aquilo. Essa geração bem pode falar do que era a pancadaria, entre aspas, com os clientes.

MP — E a pessoa dizia que era preciso uma bela posta para encher um prato e não aquela coisinha pequena. Mas um lombo em termos reais tem mais que uma posta.

DC — Toda a gente contava uma história. “Ah, porque eu fui a um restaurante e serviram-me três ervilhas”.

"A maior parte queixa-se disso [fecho de alguns restaurantes históricos] mas não ia lá há dez anos. O Bota Alta, por exemplo. A última vez que fui tinha vinte anos. Tenho pena, por um lado, sim, se aparecer mais uma loja de bugigangas ou um restaurante de poké. Mas deve haver algumas regras e há cidades europeias que o tiveram."
Miguel Pires

Isso já é história?
MP — De vez em quando ainda aparece esse estereótipo. Importa também falar da qualidade dos chefs. Com um, dois anos de experiência, é incomparável à que tinham há 15 anos. Hoje sente-se pouca diferença entre um chef com estrela Michelin e outro que não tem. Há miúdos que passam lá por fora, chegam e abrem um restaurante.

DC — E muitas vezes nas terras deles.

MP — Quando perguntamos porque não temos mais estrelas, é porque há outras coisas à volta que se calhar ou não evoluíram tanto ainda ou a consistência é difícil. A questão do serviço de sala é um problema em todo o lado. Depois da pandemia, nos EUA por exemplo, 30% das pessoas não voltaram aos restaurantes. Querem ter outra vida e não há uma compensação financeira também. Não se conseguiu produzir tantas pessoas de sala como de cozinha para acompanhar essas aberturas todas. Isso torna mais difícil a constância.

Ainda se trabalha muito para a estrela?
MP — Há exceções, mas ninguém poderia sobreviver a trabalhar só para a estrela.

DC — Não há nenhum cozinheiro no mundo deste nível que não gostasse de ter estrelas. Agora, o que é trabalhar para a estrela, é discutível. Já vi casos trágicos de pessoas obcecadas com isso e nunca o conseguiram. Cada vez mais as pessoas percebem que têm de trabalhar bem dentro de um certo nível. Não basta ser um chef talentoso, tudo conta. A Michelin diz que o que vigora é a parte da cozinha. Mas o que os chefs percebem cada vez mais é que têm que se preparar muito, sair para ir trabalhar nos melhores restaurantes do mundo. Quando voltam querem fazer uma cozinha em que sabem que não basta fazer umas receitas.

MP — A um determinado nível, há chefs que sabem que se conseguirem reunir um certo conjunto de coisas durante uns quatro anos é porque a estrela pode vir no primeiro ano, apenas no terceiro, ou falhar tudo ao segundo. Não existe uma fórmula mas por exemplo será muito estranho se a [chef] Marlene [ Vieira] este ano não ganhar uma estrela.

O ano passado já essa hipótese andava muito no ar.
MP — E todo aquele restaurante é de A a Z para uma estrela. Mais do que isso, já é outro campeonato, mas é para uma.

DC — Para a Michelin a consistência é muito importante. Não basta fazer um brilharete um mês ou dois. Não querem andar a dar e a tirar. Aqui em Portugal são mais exigentes com a consistência porque temos um passado de inconsistência.

MP — Essa consistência tem outra razão. As estrelas são atribuídas apenas uma vez por ano. Ou seja, mesmo que mude o conceito, ou rejeite a estrela, aquilo fica ali no papel.

Recuando só um pouco na conversa. Falavam do efeito do turismo. Pelo que vos tenho lido, não é algo que diabolizam. Há sítios que fecham portas porque são maus negócios, ponto?
MP — Ia dar o exemplo da Catarina Portas, da Vida Portuguesa, de que se falou muito. Partilho em parte. Ela tem noção de que o turismo foi super importante para aquela loja, a questão é a overdose, no que está a transformar a cidade.

O panorama dos restaurantes está ou virá a sofrer com isso também?
MP — Também. Dou como exemplo o restaurante de um chef que achava que devia mudar o menu para cativar o público português. Chegou à conclusão que a maior parte das pessoas que lá vão são estrangeiras e então não vai mudar. Esse é o problema da criatividade. Nós que organizamos os prémios, temos um que vai para o restaurante novo do ano e outro para o destaque do ano, que avalia os espaços que subiram mais de um ano para o outro. Aqui tivemos umas 215 pessoas a votar e se calhar os cinco nomeados não estiveram numa posição tão boa como o ano passado.

DC — Em geral as pessoas falam do turismo como se fosse uma coisa que se pudesse controlar.

MP — Mas podes controlar em parte.

DC — Mas quê, impede-se as pessoas de chegarem ao aeroporto? De frequentarem restaurantes? Não sei muito bem como se faz. Cabe-nos a nós protegermos o que gostamos. Se gostamos de água desta marca cabe-nos não mudar esta água porque achamos que os turistas vão gostar mais de outra marca.

MP — Acho que é mais amplo. Sou a favor de algumas formas de controlar. Agora, às tantas é uma posição mais elitista. Tanto há formas que não pode haver mais Airbnbs nesta zona. Agora, vivemos numa democracia mais ou menos liberal em que não podemos de repente…

Também se dividem sobre aquele fator nostalgia associado aos restaurantes. É algo que sentem?
MP — Pois, a maior parte queixa-se disso mas não ia lá há dez anos. O Bota Alta, por exemplo. A última vez que fui tinha vinte anos. Tenho pena, por um lado, sim, se aparecer mais uma loja de bugigangas ou um restaurante de poké. Mas deve haver algumas regras e há cidades europeias que o tiveram. Em Nova Iorque não houve e hoje vai-se ao Soho e não tem nada a ver com o Soho antigo.

DC — Mas também já tinha mudado em relação ao Soho anterior. As cidades são seres vivos, têm que estar sempre a mudar.

MP — Não queremos ir a um bairro e qualquer que ele seja temos a repetição das mesmas cinco ou seis lojas. Se é isso que queremos, não estamos muito longe, mas há formas de contrariar um pouco isso. Turismo, sim, mas há formas de regulamentar. Claro que o Duarte tem razão, Lisboa estava a cair e quem disser o contrário não tem noção do que era em 2010. Havia coisas da CML a dizer “construa e pague os impostos só no fim”. Um incentivo para vir construir ao centro. Só que isso mudou radicalmente em dez anos, o que é muito pouco tempo. Agora, se calhar é possível limitar o impacto dos fundos de imobiliário. Tentem lá comprar uma segunda casa na liberal Holanda.

Perante esta conjuntura toda…investiriam num restaurante?
DC — Nunca!

MP — Não (risos). Eu de vez em quando tinha assim uns devaneios. Ah, queria muito ter mas era assim no meio do Alentejo. Ah, um bar de vinhos naturais…

DC — Jamais. Conheci muito casos de pessoas que não eram do ramo e se meteram nisto e se arruinaram. E depois, ter um bom restaurante é uma escravatura, as pessoas vivem só para aquilo. Sete dias por semana. Perderia completamente o gosto de estar à mesa.

MP — Qual é a melhor forma de ganhar um milhão de euros num negócio de vinho, sendo produtor de vinho? É começar com um milhão de euros (risos). É uma piada que se aplica. Claro que há um lado romântico. Prefiro fazer o meu restaurante em casa, de vez em quando, só para os amigos.

O Mesa Marcada começou em alguma mesa da cidade ou tinha zero relação com a comida?
DC — Não, eu tinha saído do DN, foi em 2009. Tinha a página Boa Vida, não quis continuar como jornalista mas quis continuar a escrever. Já lia as coisas do Miguel.

Mas já se conheciam pessoalmente?
MP — Conhecemo-nos no balcão do Aya.

DC — De alguma maneira foi à mesa mas não foi ali que começou o blogue. Eu lia o Chez Pirez.

MP — Passava lá demasiado tempo em vez de trabalhar e usava um pseudónimo.

DC — Estávamos mais ou menos na mesma onda, e falámos com o Rui Falcão para a parte dos vinhos. Depois só nós dois. Foi assim.

E os prémios?
MP — Vieram uns dois anos depois. Hoje continuamos neste meio termo no site. Temos outros trabalhos e é ali no intervalo que fazemos isto, exceto nesta altura, três meses, dedicada aos prémios. É um site aberto, não se paga, e não é fácil viver só disto. Felizmente temos outras vidas e rendimentos senão, para ser sincero, acho que o site já não existia. Ou então era um folheto de supermercado. Fica aquém do que poderia ser mas de outra forma se calhar também não seria tão duradouro, ou teríamos que nos ter vendido mais comercialmente ao ponto de perder a nossa independência. Porque temos vários projetos comerciais mas pomos logo em cima da mesa a nossa independência editorial.

DC — E acho que no fundo escrevemos sobre aquilo que queremos, de que gostamos.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Insistem muito que são independentes, não imparciais, que também é um ponto importante.
MP — Completamente parciais, claro. Sou parcial no sentido em que tenho as minhas preferências.

DC — Se escolho um restaurante e não outro já estou a ser parcial.

MP — Se às vezes quero ser mais radical se calhar escolho uma rede social minha. O Mesa Marcada, sinto-o como uma soma de duas individualidades. Não posso de repente escrever um artigo a dizer mal do nosso principal patrocinador. Aquilo só me vai comprometer a mim quando escrevo na minha rede. Mas ninguém se sente constrangido.

Há um momento em que perceberam que estavam a ser lidos? Em que não era só um blogue de duas pessoas para duas pessoas?
MP — Acho que no meio sentimos essa influência. No outro dia alguém nos disse algo curioso. Não interessa às tantas se hoje há mais coisas para ser lidas, ou a concorrência das redes, essa pessoa destacava a capacidade de influenciar as pessoas que influenciam.

Sentem isso?
DC — Há pouco perguntava-nos sobre a repercussão de uma crítica. Sinto que se o Miguel ou eu escrevermos sobre determinado restaurante, não quer dizer que as pessoas vão lá e concordem connosco, mas sentimos que esse restaurante fica sinalizado para um determinado tipo de pessoas.

MP — E que influencia pessoas que depois vão influenciar outras. Uma vez escrevi que um sítio era uma lufada de ar fresco e outros jornais que lá foram depois até referenciaram isso. Não digo que é sempre, mas há casos em que se nota. Mesmo nos prémios se nota isso.

DC — Claro que não vamos atingir um milhão de pessoas. O nosso propósito é atingir aquilo que achamos que é uma comunidade gastronómica, com um conjunto de interesses.

Têm noção de um número?
MP — Os Blitz e Sete desta vida nunca passavam dos cinco mil por mais que se esforçassem. Esta área é mais complicada. Tivemos um artigo da Cris Beltrão, Terrorismo de Sushi, que viralizou.

DC — Esta entrevista do Edgardo foi uma loucura.

Mas vão além do meio?
DC — Algumas vão, como os prémios.

MP — Mas neste caso o que acho curioso é que mostra a dimensão de uma comunidade gastronómica alargada e depois uma outra que anda atenta às coisas. Talvez no total falemos de umas três mil pessoas, que em fenómenos como este [mais virais] podem ir aos 10 ou 15 mil.

E quanto aos prémios, é impressionante passarem de 60 pessoas iniciais envolvidas para quase 300 votantes.
MP — E haverá muito mais. Nas cozinhas e no esforço mais difícil que é sair de Lisboa. Procuramos ter votantes de outras partes.

"Temos muitas solicitações, mesmo que se recuse 80% delas. Quando era solteiro, tinha duas malas preparadas em casa: uma para um lugar quente e outra para o frio. Fazia parte, e se eu quisesse ainda hoje haveria viagens dessas para fazer no circuito. É daquelas em que se sai de um almoço para um jantar. Mesmo só a nível nacional, há excesso de gordura, álcool, açúcar, enfim." 
Miguel Pires

Como chegam aos nomeados?
MP — Há vários tipos de votações. Tornou-se complexo. Para além do júri dos 280, começámos a criar prémios dentro de várias categorias da restauração, que vão além dos chefs.

Vão ter duas novas categorias ao nível dos bares.
MP — E achámos que deviam ser nomeados a partir de um júri mais pequeno. Procurei barmen, pessoas que se interessam pela coquetelaria, juntámos 40 pessoas. No Escanção do Ano são 51. Nos prémios carreira são nomeados pelos anteriores vencedores, ou por quem esteve no top 10. Enfim.

DC — Há pessoas que pedem até para integrar o juri.

Como gerem essas solicitações?
MP — O júri começou por ser mais elitista. Mas quanto mais variedade de pessoas melhor, acaba por haver grupinhos, mas interessa-me alguém de mais idade que está em Viseu e me diz que adora o sítio tal.

DC — Não pomos qualquer limitação ao restaurante que as pessoas querem votar. Pode pô-lo à frente de toda a gente, do Avillez, do João Rodrigues. No início achavam que isto são os prémios do Miguel e do Duarte.

MP — Mas acho que isso passou rapidamente.

DC — O nosso voto vale tanto como o das 280 pessoas. Nos prémios especializados nem estamos lá.

MP — Convido pessoas de quem discordo completamente nos vinhos que gostam para a categoria de escanção, por exemplo. Procuro um equilíbrio. Aquilo não são os meus prémios. Tento dar voz para não serem os mesmos de sempre mas também para aquilo não se transformar numa quintinha. Bora trazer gente.

Passados 15 anos, ainda somos muito de quintinhas nesta área?
MP — As vezes nisto dos vinhos apetecia-me ser mais de quintas mas se quero fazer uma coisa em que tenho pretensões de ser um bocadinho mais… é uma estupidez ficar fechado.

Mas a comunidade está mais entrosada no geral?
MP — Sente-se mais esse sentido de comunidade do que há 15 anos, sim. Quando se atinge uma estrela Michelin, posso dizer que se passa para outro nível, isso existe um pouco, mas ninguém passa a menosprezar outro. Passou-se é para outro nível.

DC — O que sinto é que há menos ideia de uma cozinha contra a outra. Se eu gostava de uma cozinha criativa era porque não gostava da outra. Hoje percebe—se que cada cozinha tem o seu lugar. O chef já não tem que ir fazer patanasquinhas como a minha avozinha fazia. E nisto não é alheio a maior abertura dos portugueses.

Recuámos até ao passado. Se aqui estivermos daqui a 15 anos, que cenário encontraremos?
MP — Mas tendo a idade que temos hoje ou daqui a 15 anos? (risos) É que já não vamos conseguir fazer menus de degustação, bem eu vejo o [Jose Carlos] Capel e ainda almoça e janta. Duvido que a inteligência artificial consiga chegar ao ponto de haver um robô que produz comida.

DC — Acho que as coisas vão melhorar no geral. Essa preparação técnica, o maior cuidado com as coisas. Por outro lado, este movimento de abertura cá em Portugal, que atinge não só Lisboa e Porto. Os nossos cozinheiros têm vindo a evoluir todos. Agora, se vem aí uma crise ou uma pandemia, não sei. É claro que vão fechar restaurantes que gostávamos que estivessem abertos, outros que achamos que não valem nada e que vão ter sucesso. É tudo normal. Sou completamente eurocêntrico, defendo a cozinha europeia, com produtos bons. Estamos inseridos nesse mundo, ao lado de Espanha, Itália, França. Temos peixe, marisco, fruta fantástica, azeite. Estamos no centro do atlas gastronómico, podemos tirar partido disso.

MP —  Falando de uma coisa mais abrangente, estou muito mais preocupado com o futuro da alimentação do que este mundo mais elitista da gastronomia. Não é achar que o mundo vai explodir, mas aquela coisa de fazer opções, de saber que uma boa sardinha é melhor que uma má lagosta, como dizia o Ferran Adrià, isso preocupa-me mais. Perdemos esses referenciais. Não é natural que não possa haver uma educação nas escolas para o alimento. E se calhar caminhar para um mundo mais vegetal, voltar atrás olhando para a frente.

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