Na tarde de 14 de fevereiro, quando saíram de casa com sacos de roupa e comida para levar ao pretenso sem-abrigo que tinha sido avistado a revirar caixotes do lixo na zona do Sobral, na Lourinhã, Vanda Policarpo e Mónica Caçador decidiram pedir ao marido de uma delas que as acompanhasse.
Afinal, iam prestar ajuda a um homem que não conheciam, tinham receio de que pudesse tornar-se agressivo, com ele sempre estariam mais seguras.
Em minutos, numa curva da estrada que dá acesso à aldeia, encontraram o homem para o qual tinham sido alertadas, através de uma mensagem enviada para a página do “Ajudar Quem Precisa Lourinhã”, o grupo criado por Vanda há praticamente dez anos para prestar auxílio a famílias desfavorecidas da zona.
“Percebemos que era indiano, mas falava um pouco de português. Agradeceu-nos e disse-nos que morava num armazém ali perto, queria agarrar nos sacos e ir até lá a pé, sozinho. Mas ele estava muito fraco, com as pernas a tremer de fome, e os sacos eram pesados, por isso dissemos-lhe para entrar no carro. Ele foi indicando o caminho e, mais ou menos a um quilómetro dali, por um caminho de terra batida, entre o pinhal, lá encontrámos o armazém”, conta Vanda Policarpo, de 48 anos.
Nessa altura, à porta de uma espécie de celeiro no meio do nada, na companhia daquele homem magro, já estavam a dar graças por se terem lembrado de pedir ao marido de Mónica Caçador, de 42 anos, que as acompanhasse. Quando entraram no armazém e começaram a ver aparecer uma série de outros homens, de chinelos de praia e com gorros e turbantes na cabeça, para atenuar o frio que se fazia sentir no interior, tiveram a certeza de que tinham feito a coisa certa.
Ao todo, diz Vanda, contaram mais doze homens, todos de nacionalidade indiana ou paquistanesa. Estavam sujos, com fome e com frio. Poucos falavam português e os que falavam não ultrapassavam o nível de Gurjit Singh, o suposto sem-abrigo que tinham ido ajudar. Perceberam imediatamente que estavam todos nas mesmas condições, recorda a portuguesa, proprietária de uma empresa de limpeza, onde trabalha também a amiga Mónica: “Não era um sem-abrigo, era outra coisa que estava ali. Era exploração, tráfico, o que lhe quiserem chamar. Disse-lhes: ‘Viemos em paz. Sabemos que vocês têm alguém que vos explora, mas nós viemos em paz. Viemos só trazer comida’”.
Perante o olhar desconfiado dos homens, abriram os sacos e mostraram-lhes a comida que tinham levado — umas latas de sardinha, atum, grão e feijão, poucas coisas, reunidas na altura em que ainda pensavam que iam ajudar uma única pessoa.
À visão da comida e dos casacos, camisolas e meias quentes que também tinham levado, os homens começaram finalmente a quebrar e abrir o sorriso: “Ficaram com caras completamente diferentes, alguns uniram as mãos e começaram a agradecer. Depois contaram-nos o que se passava: estavam a ser explorados, por um senhor, também indiano, que tem uma empresa de trabalho temporário. Coloca-os em terras a trabalhar, fica-lhes com o ordenado e dá-lhes 20 euros por semana. E para dormirem no armazém têm de pagar 70 euros cada um por mês”.
Para além da fome, perceberam Vanda, Mónica e o marido desta, os homens tinham medo. Como se confirmaria um dia mais tarde, depois de três elementos da área social e de migrações da autarquia local se terem deslocado ao armazém, após denúncia da fundadora do “Ajudar Quem Precisa Lourinhã”, tinham algumas razões para isso.
Para além de terem identificado os 11 homens que lá encontraram na altura, os técnicos camarários identificaram também o arrendatário do espaço que, segundo o contrato, a que o Observador teve acesso, é descrito não como uma habitação mas como “um armazém agrícola com uma dependência que se destina a cantina e abrigo de trabalhadores”.
Depois de ser confrontado pelos técnicos da Câmara Municipal da Lourinhã, esse homem, dono de uma loja no centro da cidade, terá, primeiro, proibido os trabalhadores de aceitarem mais comida de terceiros, e, a seguir, castigado alguns deles, alegadamente por terem trocado números de telefone com as mulheres que os foram ajudar e por se manterem em contacto com elas. Durante dois dias, diz Vanda Policarpo, terão sido obrigados a trabalhar nos campos agrícolas da região sem sequer comer.
“Tivemos medo e não arriscámos mais ir lá. Mas estivemos sempre a trocar mensagens. E eles continuavam com fome e a pedir ajuda”, revela a voluntária, que é também mãe de dois filhos.
Diz, aliás, que foi precisamente por Saddam Hussain Chandio, um dos homens que conheceu no armazém, ter praticamente a idade da filha mais velha que se compadeceu especialmente dele. “Tem 23 anos, a minha filha tem 22. Acho que foi isso que me fez pensar. A certa altura perguntei-lhe se ele queria sair dali. E ele só me perguntava: ‘Porquê eu?!’. Disse-me que tinha sido ameaçado e que estava com muito medo. Mas eu também tinha e não arrisquei ir lá. Tive de insistir muito até me dizer finalmente que sim, que queria sair, mas entretanto perdemos o contacto durante horas. Eram 19h quando me ligou a dizer que estava numa escola. Tinha sido retirado pelo município.”
Homens vivem em “situação de indignidade” e estão em “situação irregular” no país. DIAP de Loures está a investigar
Da primeira vez que se deslocaram ao armazém em Casal Caldeira, os três técnicos da Câmara Municipal da Lourinhã depararam-se com aquilo que, em resposta escrita enviada ao Observador, a autarquia descreve como uma “situação de indignidade”.
Por isso mesmo, depois de terem conversado com os 11 migrantes que lá encontraram, em “situação de permanência irregular” em Portugal, e de terem identificado o nome do homem que os mantinha ali, “através de um alegado contrato de trabalho”, os funcionários trataram de alertar GNR e Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Entretanto, foi contactado também o proprietário do armazém, “a fim de percecionar se o mesmo tinha conhecimento das condições em que se encontravam os cidadãos”, lê-se na resposta enviada pela autarquia ao Observador.
Quando, no dia seguinte, a GNR se deslocou ao armazém — onde um mês mais tarde o Observador também esteve e encontrou uma divisão insalubre, com colchões sujos e trazidos do lixo para fazer as vezes de cama, no mesmo sítio onde são cozinhadas as refeições, a maior parte das vezes feitas à base de água misturada com farinha —, o proprietário do espaço já lá tinha estado.
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Mais do que isso: já se teria travado de razões com o arrendatário, um empresário de nacionalidade indiana que, além de proprietário da empresa de trabalho temporário que canaliza os serviços dos homens que ali moram para as empresas agrícolas da região, também explora uma loja, no centro da Lourinhã.
Para além de ter identificado os homens que lá encontrou, a GNR “comunicou os factos ao Tribunal territorialmente competente e à Polícia Judiciária”, explicou fonte oficial da Guarda Nacional Republicana ao Observador.
A Procuradoria-Geral da República, por sua vez, confirma que foi aberto um inquérito, atualmente em curso no Departamento de Investigação e Ação Penal de Loures, mas não presta mais esclarecimentos sobre o caso.
O que é certo é que, apenas um dia depois de terem ido ao armazém, os técnicos da autarquia começaram a receber mensagens, via whatsapp, por parte de alguns dos migrantes, a avisar que o “patron”, como lhe chamam, estava a tentar levá-los para trabalhar fora do concelho. Alertada a GNR, seguiram para lá para os “resgatar” mas só encontraram Saddam Hussain, que se terá recusado a seguir na carrinha com os colegas, e acabou por ser o único a ser retirado do local e levado para uma antiga escola primária, onde o município lhe providenciou “roupa, cama e alimentação”.
Mais tarde, nesse mesmo dia, ainda haveria de chegar à escola Gurjit Singh, o suposto sem-abrigo que deu início a todo este processo — “Tinha fugido para a Lourinhã e andava desorientado pelas ruas, a pedir ajuda, portanto pegaram nele e levaram-no ao posto da GNR”, explica Vanda Policarpo.
Trabalhadores recebem 20 euros por semana e pagam 70 euros/mês para pernoitar em armazém
Durante algumas semanas, com o auxílio do “Ajudar quem precisa Lourinhã” e da Câmara Municipal, que chegaram a acordo para pagar a meias um pequeno apartamento numa freguesia vizinha, Moita dos Ferreiros, Saddam Hussain, paquistanês de 23 anos, e Gurjit, indiano, de 46, ainda moraram juntos.
“Mas entretanto arranjámos trabalho para o Saddam no restaurante do Chakall e ele tinha de fazer 12 quilómetros de bicicleta para lá chegar. Andámos à procura de casa e conseguimos uma a dois quilómetros de distância, no lugar da Areia Branca, mais donativos para a renda e para a caução”, continua a contar a benemérita. “Ganhava 80 euros por mês, agora vai ganhar 850”, congratula-se, pela nova vida que ajudou a proporcionar ao paquistanês.
Menos sorte têm os restantes 11 migrantes, que continuam a pernoitar no armazém e a sair para trabalhar de segunda a sábado, assegura Saddam Hussain, que mantém contacto com alguns dos ex-colegas.
Um deles, indiano, aceitou trocar mensagens com o Observador, com a condição de permanecer anónimo — “Se você falar com ele, ele vai me demitir”, escreveu no WhatsApp, depois de confirmar que todos os trabalhadores ali a morar recebem entre 20 e 30 euros por semana e têm de entregar 70 euros por mês, para assegurar o pagamento do armazém. “Estou à procura de um bom emprego. A taxa é muito baixa, não sobra nada. Eu trabalho pintor e pedreiro.”
Ao Observador, que o encontrou ao balcão da loja que gere, no centro da Lourinhã, o antigo “patron” de Saddam Hussain e Gurjit negou todas as acusações de exploração, explicou que neste momento tem 64 homens a trabalhar para si através da empresa de trabalho temporário — todos seus “amigos próximos” —, e garantiu que o único responsável pelo pagamento da renda do armazém, onde diz que não moram mais de 8 pessoas, é ele próprio.
“São 420 euros pela renda, os trabalhadores só pagam água e luz”, explica, num inglês que ao longo da conversa se vai revelando tão mais macarrónico quão incómoda é a pergunta. Também diz que tem outras duas casas arrendadas, além do armazém, e que alguns dos seus amigos, a quem dá trabalho, moram consigo.
Munido de dezenas de contratos, que tem ali mesmo, em cima do balcão, ao lado de peças de roupa por etiquetar e chocolates, continua a explicar-se. Diz que paga o salário mínimo, que dá aos trabalhadores 5,3 euros à hora e que recebe 6 por parte das empresas: “Mas eu pago carro, finanças, gasóleo, mecânica”, justifica.
Também assegura que aos fins de semana ninguém trabalha e acrescenta ainda que, aos domingos, todos os trabalhadores vêm ali à loja, buscar as roupas de que precisam, e ao mini-mercado de um amigo, abastecer-se de comida para a semana — tudo a expensas suas. “Me pagamento“, repete, apontando para o peito.
Confrontando com as acusações de exploração por parte de antigos e atuais trabalhadores, fala imediatamente no nome de Saddam Hussain. Garante que o paquistanês é o único com queixas e diz que nem sequer lhe reconhece legitimidade para isso: “Saddam Hussain estava sempre a dormir. Num mês trabalhava dez dias, ficava outro a dormir. Trabalhava mais dez, ficava a dormir”.
Questionado sobre durante quantos meses lhe deu casa e trabalho, conta pelos dedos das mãos: “Agosto, setembro, outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro”. À pergunta seguinte — “Por que não o despediu, se era tão mau trabalhador?” —, diz que não compreende e responde ao lado: “Perguntava-lhe qual era o problema. Problema familiar? De comida? Eu respeitei o homem, seis meses, mas todas as outras pessoas também têm problemas, com as mulheres, os filhos, a família… E todos os dias o Saddam tinha problemas e não queria trabalhar. E eu dizia: ‘Ok, no problem, sleep’“.
Antes de ser explorado na Lourinhã, Saddam Hussain passou pelo mesmo em Benavente
Antes de chegar a Portugal, no dia 21 de novembro de 2021, Saddam Hussain Chandio só tinha saído uma vez do Paquistão, e apenas durante uma dúzia de dias, para treinar com o sensei Frank Pelny, uma espécie de sumidade internacional do karate.
Explica que é um “sportsman”, um desportista, que pratica a modalidade desde os 4 anos e exibe o certificado que trouxe em outubro de 2018 de Nordhausen, na Alemanha, escrito em inglês e em japonês.
É cinturão negro, assegura, e esse é o próximo objetivo: conseguir voltar a pisar um tatami, coisa que não faz desde que aterrou em Portugal à procura de uma “bright life” e acabou a trabalhar dia e noite numa fábrica de plásticos em Benavente. “Não fui para a universidade, vim para Portugal. Foi um grande desafio para mim, porque não tenho amigos, não sei a língua, não conheço ninguém”, conta em inglês, antes de dar início a mais um turno como ajudante de cozinha no restaurante do famoso chef argentino, na praia do Areal Sul.
O mais novo de oito irmãos, filho de um funcionário público, Saddam Hussain Chandio cresceu na zona de Hyderabad, a cerca de 160 km de Carachi, no Paquistão. Diz que no país não tinha oportunidades e que foi por isso mesmo que decidiu vir para Portugal.
Mas o sonho acabou por converter-se rapidamente em pesadelo: no Facebook conheceu um indiano, com nacionalidade britânica, que lhe ofereceu trabalho em Benavente. “Trabalhava 8 ou 9 horas na fábrica de plásticos, como operador de máquinas, e à noite trabalhava para os donos: cozinhava, limpava e lavava a loiça — de graça!”, revela. Depois do turno duplo, que diz que lhe rendia entre 500 e 600 euros por mês, dormia ali mesmo, numa zona da fábrica onde foram colocados beliches e onde dormiam também os outros trabalhadores, dois seus compatriotas, oito da vizinha Índia.
Ao longo de 9 meses, os dias e as noites de Saddam Hussain sucederam-se sem história, com algumas reclamações ocasionais que tinham sempre a mesma resposta: “Às vezes pedia mais comida, mas não me davam: ‘Se não gostas, podes ir dormir. Se não trabalhares aqui, podes voltar para o Paquistão. Somos os donos, ligamos para a polícia’”, diz que lhe diziam.
Até que, no verão de 2022, através de um grupo de Facebook que reúne indianos, paquistaneses e nepaleses em Portugal, e onde são publicadas oportunidades de trabalho nos campos agrícolas do país, conseguiu que lhe oferecessem um “bom trabalho” na Lourinhã.
Não disse nada ao “patron” — e muito menos aos pais, com quem não fala há meses e a quem nunca contou aquilo por que tem passado desde que chegou a Portugal — e seguiu para a zona Oeste, cheio de esperança. “E na Lourinhã é o mesmo. É pior: na Lourinhã este homem dava-me 20 ou 30 euros por semana. Só comia água e farinha. Não me davam comida. As pessoas não são humanas em Portugal. As pessoas indianas, do Paquistão, do Nepal. Os portugueses são bons, mas às vezes… Não tenho palavras para explicar a minha vida em Portugal…”
Desde a fatídica tarde de fevereiro em que, por acaso, descobriu 13 migrantes a viver em situação de exploração, mesmo ali ao lado de casa, Vanda Policarpo nunca mais deixou de tentar ajudar Saddam Hussain e os restantes trabalhadores. O caso do jovem paquistanês é de sucesso mas o mesmo não acontece com Gurjit Singh, que segue “ao cuidado exclusivo da equipa municipal”, e que acabou por revelar-se, diz a autarquia da Lourinhã, baseada nas informações transmitidas pelos membros do “Ajudar quem Precisa Lourinhã”, “conflituoso, adito ao álcool e inativo face ao trabalho”.
E o pior, diz Vanda, é que haverá muitos mais trabalhadores em circunstâncias idênticas. “Tenho recebido muitas mensagens privadas a denunciar, com moradas, número de homens, onde trabalham. O que me surpreende é que numa terra tão pequena haja tantas pessoas nesta posição. Mas se nós aqui travarmos, isto tem fim. Não é preciso ser português para ter dignidade. Não consigo aceitar que indianos explorem indianos, mas muito menos consigo aceitar que alguém da minha terra faça isto”, diz.
Mónica Caçador, sentada ao lado, pega na deixa: “Todos os que trabalham com estas empresas de trabalho temporário sabem o que se passa”, acusa, apontando o dedo a várias sociedades agrícolas locais, com quem terão entrado em contacto para tentar arranjar trabalho para Saddam Hussain e Gurjit mas que terão declinado, alegadamente por não quererem “confusões” com os empresários que lhes fornecem, dia após dia, o grosso da mão-de-obra.
Apesar de várias tentativas para chegar à fala com alguns destes empresários do setor agrícola lourinhanense, por telefone e e-mail, nenhum se mostrou disponível para conversar sobre o assunto.
Já a Câmara Municipal da Lourinhã, questionada diretamente sobre quantos migrantes estrangeiros estarão neste momento em condições de indignidade e exploração no concelho, diz que é impossível saber, porque “estão em situação abscôndita”, mas admite que poderão ser “muitos outros”. “Importante referir que desde há muito, quer o Município, quer as Juntas de Freguesia, tentam sensibilizar a comunidade e os proprietários de espaços arrendados para a questão da sobrelotação e salubridade dos imóveis a arrendar”, acrescenta ainda o texto enviado ao Observador.
No resto do país, a começar em Odemira, onde em 2021 a pandemia revelou as condições sub-humanas em que viviam dezenas de trabalhadores estrangeiros, a situação não será muito diferente. “É por isso que o Saddam quer falar, para mostrar aos outros que é possível”, diz Vanda Policarpo.
Um ano e meio depois de ter chegado a Portugal, empregado e já à espera do cartão de residência no país, o jovem paquistanês diz que pode finalmente telefonar para casa e falar com a família. O objetivo de ter uma “vida brilhante” também voltou a ser tangível: “Agora posso tentar”.