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O bispo José Ornelas e os restantes bispos portugueses em Fátima, em abril de 2023, numa celebração em honra das vítimas de abusos sexuais de menores
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O bispo José Ornelas e os restantes bispos portugueses em Fátima, em abril de 2023, numa celebração em honra das vítimas de abusos sexuais de menores

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O bispo José Ornelas e os restantes bispos portugueses em Fátima, em abril de 2023, numa celebração em honra das vítimas de abusos sexuais de menores

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"Incompatível com necessidades das vítimas." APAV acusa Igreja de falta de transparência e independência nas indemnizações por abusos

Associação de Apoio à Vítima discorda de regras da Igreja para atribuir compensações a vítimas de abuso. Fala em falta de transparência, pouca imparcialidade e revitimização desnecessária.

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) acusa a Igreja Católica em Portugal de falta de transparência no processo de atribuição de compensações financeiras às vítimas de abusos sexuais — um processo que a APAV considera estar manchado pelo facto de as vítimas terem de “provar” os abusos que sofreram e pela existência de elementos ligados à Igreja na análise de cada caso, o que pode levar as vítimas a não acreditarem numa “ação isenta”.

As críticas constam de uma posição pública de 20 páginas, com data de setembro, e produzida em reação à divulgação por parte da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), em julho, do regulamento do mecanismo criado pelos bispos católicos para atribuir compensações financeiras às pessoas que sofreram abusos sexuais, quando eram menores, cometidos por membros do clero ou pessoas ligadas à Igreja. A posição pública foi inicialmente noticiada pelo jornal especializado 7 Margens e foi enviada ao Observador pela APAV.

De acordo com a associação que apoia vítimas de crimes, as regras da CEP para a atribuição de compensações financeiras a vítimas de abusos são “incompatíveis com as reais necessidades das vítimas”, o que leva a antecipar “situações de revitimização face à necessidade de provar os abusos sofridos” perante uma estrutura de decisão que, na prática, integra vários elementos da própria Igreja Católica, comprometendo a imparcialidade.

Igreja anuncia duas comissões para avaliar casos de vítimas de abusos sexuais e definir compensações. Já 43 pessoas apresentaram pedido

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A 25 de julho deste ano, quando divulgou as regras deste mecanismo de compensações financeiras, a CEP anunciou a criação de duas comissões responsáveis por analisar cada caso e por decidir o montante a atribuir a cada pessoa. O regulamento inclui detalhes sobre como devem ser apresentados os pedidos de compensação, o modo como vão ser analisadas as situações e ainda os critérios que vão ser usados para determinar a gravidade de cada situação (como a duração, frequência, idade, estratégias usadas pelo agressor, relação entre agressor e vítima, etc.) — que foram alvo de duras críticas por parte de organizações representativas das vítimas e também de várias vozes da sociedade civil.

O bispo de Leiria e Fátima e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), Dom José Ornelas (C), acompanhado pelo bispo de Coimbra, Virgilio Antunes (D), e pelo padre Manuel Barbosa (E), fala aos jornalistas durante a conferência de imprensa relativa aos trabalhos da Conferência Episcopal Portuguesa, que reuniu em plenário os bispos das dioceses portuguesas no Santuário de Fátima, 16 de novembro de 2023. PAULO CUNHA/LUSA

Os bispos portugueses anunciaram este ano um mecanismo de compensações financeiras às vítimas de abuso

PAULO CUNHA/LUSA

“Ausência de transparência e informação”

A necessidade de algumas vítimas terem de voltar a contar as suas histórias à Igreja após terem revelado, em 2022, os abusos à comissão independente que investigou o fenómeno levou, inclusivamente, a uma controvérsia pública entre os diferentes organismos a propósito do apagamento da base de dados daquela comissão — e obrigou o presidente da CEP, o bispo José Ornelas, a vir a público pedir o fim da polémica e do ruído, que “faz mal às vítimas”.

Agora, a APAV deixa duras críticas ao mecanismo da Igreja Católica. Por um lado, aponta falhas ao “prazo para a interposição do pedido de indemnização”, que considera ser “curto”. Sendo apenas “seis meses, isto é, de junho a dezembro de 2024”, é um prazo “muito distinto da realidade de outros países que iniciaram ações semelhantes”, diz a APAV, lembrando casos como França, Áustria e Alemanha (onde não existe um prazo formal) ou Austrália (onde foi dado um prazo de quase dez anos).

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Ainda assim, importa lembrar que o mecanismo anunciado pela CEP diz respeito apenas aos casos de abuso ocorridos entre 1950 e 2022 e denunciados no contexto das investigações recentes. Além deste mecanismo, o bispo José Ornelas deixou aberta a porta a, no futuro, continuar a haver um processo de indemnização às vítimas, independente de serem casos antigos ou novos.

“Este ruído faz mal às vítimas.” Bispo José Ornelas quer fim da polémica entre Comissão Independente e Grupo Vita

“Prazos estendidos (ou a sua ausência, conforme determinaram alguns países) são bastante mais compatíveis com as dificuldades que as vítimas podem experienciar e permitem uma divulgação mais ampla que abranja o maior número de pessoas possível”, diz a APAV.

Essa é, aliás, a segunda crítica da associação liderada por João Lázaro. “A divulgação desta possibilidade não tem sido ampla, levando a que possa não estar a chegar a mais pessoas vítimas por não serem utilizadoras assíduas de serviços online”, diz a APAV. “Não tem sido feita uma divulgação massiva, com recurso a outros instrumentos, não apenas spots publicitários, mas também outros meios, nomeadamente das estruturas e canais da própria Igreja Católica que cobrem, de forma capilar, todo o território nacional, e, em particular, localmente junto das comunidades, e que vise abranger o maior número de pessoas a quem pode ser concedida a indemnização em apreço, o que limitará o acesso das vítimas a este direito.”

"A ausência de transparência sobre o procedimento a adotar poderá significar, para as vítimas, uma menor confiança no processo de ‘compensação financeira'."
APAV

A associação lamenta, por outro lado, que não seja “referido qual o tempo expectável para se obter uma resposta, sendo que parece emergir a ideia de que todos os processos serão recebidos naquele período e só depois serão analisados”.

Toda esta falta de clarificação em torno dos prazos complica ainda mais o processo, diz a APAV, recordando que o regulamento foi publicado “quase depois meses após o início do (curto) prazo para se encetarem os pedidos”, o que originará, ainda na leitura da associação, “ausência de transparência e informação, que são igualmente direitos das vítimas de crime”.

De acordo com o documento da associação, o regulamento da CEP não permite extrair a “garantia de que os processos iniciados após dezembro de 2024 vão ter uma tramitação equitativa em termos de critérios, avaliação, prazos e montantes a atribuir”. Por isso, continua a APAV, “a ausência de transparência sobre o procedimento a adotar poderá significar, para as vítimas, uma menor confiança no processo de ‘compensação financeira’” — uma expressão de que a associação discorda, preferindo referir-se a “indemnizações”.

“A indemnização (ou, como designa a CEP, a ‘compensação financeira’) às vítimas é um direito que lhes é devido: por um lado, afigura-se como um reconhecimento simbólico do dano causado, e, por outro, pode ser a forma de estas poderem suprir algumas necessidades que sejam decorrentes do crime vivenciado”, diz a APAV, lamentando que a Igreja use a expressão “benefício” para se referir ao processo.

“A APAV não considera correta a expressão (…) de que ‘as compensações financeiras deverão representar um benefício significativo e proporcional à gravidade do dano avaliada, sem a pretensão de pagar o que é impagável ou anular o que, lamentavelmente, não pode ser anulado.’ O acesso à indemnização ou à ‘compensação financeira’, como designa a CEP, não é, para as vítimas, um benefício, nem de tal forma deve ser adjetivado em algum momento”, escreve a associação. “Trata-se, sim, de um direito que lhes é devido enquanto vítimas de crime e de uma reparação que lhes é devida por força da violência que sofreram. Em nenhum momento, a indemnização deve ser vista como um ‘benefício’, muito menos como um ‘benefício significativo’ para as vítimas.”

"O facto de uma parte significativa dos decisores pertencer à Igreja Católica não faz antecipar um cenário de imparcialidade na análise dos pedidos, e acentua o percurso trilhado de falta de independência nas respostas e processos escolhidos para lidar com esta situação."
APAV

“Princípio de presunção da vitimação”

Por outro lado, a APAV faz uma dura crítica ao ponto do regulamento que elenca as formas como podem ser provados os abusos cometidos, e que incluem o recurso a eventuais sentenças judiciais civis ou canónicas.

“Emerge, da análise do Regulamento apresentado pela CEP, a necessidade de ‘provar’ os abusos sofridos”, critica a APAV. “Ao invés, numa ótica de reconhecimento e reparação, e perspetivando a necessidade de evitar a revitimização, as decisões sobre a indemnização deveriam basear-se num princípio de presunção da vitimação – ou seja, o depoimento das vítimas e o impacto por si manifestado deve poder ser per si evidência suficiente da vitimação sofrida.”

A posição pública da APAV é também muito crítica da “robusta presença de elementos ligados à Igreja Católica em todo o processo decisório”, incluindo a “instrução do pedido”, a “determinação do montante a pagar” e ainda o facto de caber “à Igreja Católica a decisão em termos definitivos” — no caso de haver qualquer diferendo entre as partes, cabe à Conferência Episcopal Portuguesa ou ao superior da comunidade religiosa decidir “em termos definitivos” sobre um caso.

“O facto de uma parte significativa dos decisores pertencer à Igreja Católica não faz antecipar um cenário de imparcialidade na análise dos pedidos, e acentua o percurso trilhado de falta de independência nas respostas e processos escolhidos para lidar com esta situação”, diz o documento da associação.

Finalmente, a APAV deixa ainda uma forte crítica ao “escalonamento” dos casos — o tema mais polémico no centro do debate público sobre as indemnizações. A associação que representa algumas vítimas de abusos, bem como várias vozes da sociedade civil (incluindo o ex-ministro da Educação João Costa), já vieram a público criticar o facto de o regulamento prever que as compensações financeiras sejam atribuídas consoante a gravidade de cada caso, avaliada através de um conjunto de critérios por uma equipa nomeada pela Igreja. A associação de vítimas defendeu que devia ser atribuído um valor igual a todas as vítimas. A APAV, apesar de criticar o “escalonamento”, não concorda com um valor tabelado.

“Parece existir um ‘escalonamento’ das vítimas em função do tipo de atos sofridos, locais, frequência, reação das pessoas em redor, entre outros critérios elencados no Regulamento da CEP”, lê-se no documento divulgado. “A APAV defende que as indemnizações devem ser atribuídas caso a caso, mas que os critérios decisórios sobre valores não devem ser ‘tabelados’ desta forma, mas antes determinados na mesma linha que é adotada pela jurisprudência portuguesa.”

Segundo a APAV, deve ser feita uma “análise casuística de cada pedido de indemnização”, uma fórmula seguida por comissões criadas para o mesmo efeito em países como França, Irlanda ou EUA. “Entende a APAV que cada pessoa tem vivências diferentes e é também dessa forma que a Lei opera em Portugal – não um ‘valor único’, mas um valor assente na jurisprudência e nos pressupostos legais”, destaca. “Atribuir um valor único a todas as vítimas que requeiram uma indemnização seria optar por um princípio de igualdade e não por um princípio de equidade. Embora sejam conceitos percecionados como intercambiáveis, o facto é que a aplicação igualitária não garante uma ação equitativa, que consideramos fundamental neste processo.”

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A APAV deixa ainda uma crítica à Conferência Episcopal pelo modo como planeia tratar os casos relacionados com vítimas residentes no estrangeiro, que devem viajar até Portugal para a reconstituição dos factos. A viagem deve ser paga pelas próprias vítimas, “que poderão ser reembolsadas na eventualidade de ser fixada uma compensação financeira”, diz o documento da Igreja. Para a APAV, “colocar nas vítimas o ónus de pagar a sua própria deslocação para a referida ‘reconstituição dos factos’ é afastar do acesso a um direito uma vítima que, por exemplo, não consiga antecipar financeiramente um valor para deslocação a Portugal para ser inquirida pela Comissão de Inquérito”.

“Com o advento dos meios tecnológicos, não é possível perceber o motivo de não utilização dos mesmos, que, recorrentemente, são inclusive utilizados pela Justiça em Portugal”, diz ainda a APAV.

Igreja para já em silêncio face a críticas

O Observador contactou a psicóloga Rute Agulhas, coordenadora do Grupo Vita, estrutura criada pela Igreja Católica para o acompanhamento das vítimas de abusos sexuais, que preferiu não comentar as críticas da APAV e remeteu os esclarecimentos para a Conferência Episcopal, já que foi este órgão colegial dos bispos que definiu as regras para a atribuição de compensações financeiras. Por sua vez, fonte oficial da presidência da Conferência Episcopal recusou, para já, comentar estas críticas, revelando que os bispos deverão fazer “em breve” um ponto de situação sobre o processo de compensação financeira às vítimas. O presidente da CEP, o bispo José Ornelas, encontra-se atualmente em Roma a participar no Sínodo dos Bispos com o Papa Francisco.

Antes, porém, Rute Agulhas já tinha abordado algumas destas críticas, nomeadamente quando escreveu um artigo de opinião no Expresso a defender o trabalho do Grupo Vita e a rebater as muitas críticas ao processo de compensações financeiras no espaço público. Nesse texto, Agulhas defendeu que a Igreja não devia seguir “um modelo de ‘one fits all’” porque “a avaliação do dano psíquico é habitualmente pedida por parte dos nossos tribunais civis, em diversos tipos de processos, bastante estudada nacional e internacionalmente, e que se pauta por orientações técnicas e científicas rigorosas, sem espaço para opiniões que não sejam devidamente baseadas em evidência”.

“E é nesse contexto que foram definidos os critérios apresentados – não fruto da modesta opinião do Grupo VITA ou mesmo da Igreja, mas sim de anos e anos de investigação sobre o tema. Critérios esses que não são analisados de modo linear, um a um, mas sim de forma integrada com todo um outro conjunto de informação. Esta avaliação será feita por Psicólogos e Psiquiatras, com experiência em avaliação médico-legal”, destacou Agulhas.

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