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O futuro dirá que ações é que a Igreja Católica de Portugal vai tomar

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O futuro dirá que ações é que a Igreja Católica de Portugal vai tomar

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Indemnizações, pedidos de desculpa e o tabu do segredo da confissão: a reação da Igreja em três países após a divulgação de abusos sexuais

Na Alemanha, Austrália e França, a Igreja Católica também foi confrontada com a divulgação de casos de abusos sexuais a menores. Das indemnizações às desculpas, resposta da instituição variou.

“A Igreja, como instituição, tem de repensar a sua atuação no futuro” — e quanto “mais rápido”, “melhor”. Esta terça-feira, um dia após a divulgação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, o Presidente da República lembrou que, em “vários países” onde se verificaram iniciativas semelhantes, houve lugar à atribuição de “indemnizações às vítimas” da Igreja.

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Portugal está longe de ser o único país em que foi recolhido um extenso número de testemunhos de casos de abusos sexuais sobre menores, ocorridos ao longo de várias décadas no seio da Igreja Católica. As Conferências Episcopais de vários países — muitas vezes numa ação conjunta com alguns governos — empenharam-se em estudar o fenómeno, num esforço que contou com o incentivo à ação do próprio Papa Francisco. O objetivo das comissões é claro: apurar o que se passou, pedir perdão às vítimas e tentar evitar que os abusos se repitam no futuro.

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Os números, os métodos e a reação da Igreja. Como se compara o relatório dos abusos na Igreja com investigações de outros países?

A Comissão Independente, cuja composição foi escolhida pela Igreja Católica, deixou algumas conclusões e recomendações no relatório final. As sugestões — dirigidas à própria Igreja, mas também à sociedade civil — deverão, espera-se, nortear a ação dos clérigos nas próximas décadas, para travar a ocorrência de abusos sexuais dentro do clero e por membros do clero (ou que estejam, de alguma forma, ligados à instituição). É preciso, assim, segundo afirma o relatório, superar a resposta à problemática “caracterizada por negação, clivagem, projeção e ocultação da existência do tema e do seu impacto”. Os membros da Comissão entendem que a atitude da Igreja deve ser a de “assumir o problema, sinalizá-lo e atuar de forma rápida”.

Em que moldes se desenvolverá a atuação da Igreja Católica Portuguesa nos próximos tempos, permanece uma incógnita. Em reação às conclusões expressas no relatório, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, garantiu, pelo menos, que haverá uma política de “tolerância zero”. “Quem comete estes crimes tem de assumir as responsabilidades, criminais e civis, dos seus atos”, frisou.

"Quem comete estes crimes tem de assumir as responsabilidades, criminais e civis, dos seus atos”
D. José Ornelas

No próximo dia 3 de março, os bispos portugueses reúnem-se num encontro da Conferência Episcopal Portugal, precisamente para analisar o documento de 486 páginas com o que resulta dos 512 testemunhos validados pela Comissão e em que são relatadas situações de abuso ocorridas desde a década de 1950. Espera-se que, no final desse encontro, os responsáveis da Igreja em Portugal possam já deixar um sinal de medidas que pretendem tomar em relação às vítimas que prestaram o seu testemunho, por um lado, e às mudanças que pretendem introduzir no funcionamento da instituição para garantir que aquilo que aconteceu em centenas de casos não se repete.

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Olhando para experiências anteriores, em países onde este mesmo percurso já foi feito, é possível perceber que medidas concretas foram postas em prática — e que poderão permitir antever a resposta portuguesa.

A resposta francesa: as indemnizações e a recusa em ceder nas confissões

Em outubro de 2021, a Comissão Independente francesa publicou um relatório devastador, que dava conta de que em 70 anos terão sido abusadas 330 mil pessoas no seio da Igreja Católica naquele país. A maior parte das vítimas eram rapazes entre os 10 e os 13 anos que tinham sido abusados por clérigos.

A divulgação destes dados gerou uma onda de choque na sociedade francesa. Vários membros da Igreja admitiram os erros cometidos no passado. O Papa Francisco também reagiu e descreveu o momento que o catolicismo estava a atravessar como uma “vergonha”. Mas os números não foram aceites pacificamente — oito membros da academia católica escreveram ao sumo pontífice, deixando críticas à forma como o estudo da comissão tinha sido realizado.

Críticas à parte, a Igreja decidiu aplicar um processo de reconhecimento da qualidade de vítima e de reparação dos danos que a mesma sofreu, incluindo casos que já haviam prescrito ou em que o agressor já tinha morrido. Estas duas missões desembocaram na criação de duas estruturas: a Inirr (Instância Nacional Independente de Reconhecimento e Reparação), que tinha como função a identificação e futura indemnização das vítimas; e a CRR (Comissão de Reconhecimento e Reparação), que estava encarregada de fazer uma mediação entre as vítimas e os institutos religiosos para eventuais indemnizações.

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A Comissão de Reconhecimento e Reparação

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Num ano, os dois organismos tinham recebido já 1.550 pedidos de indemnização, sendo que, no início de fevereiro deste ano, o presidente da Comissão Independente francesa, Jean-Marc Sauvé, precisava que já eram cerca de 1.800. Recuando a 30 de setembro de 2022, a Inirr tinha já contabilizado 1.004 pedidos de indemnização, 45 dos quais já tinham sido decididos, levando a que as vítimas já estivessem a ser indemnizadas. Naquele momento — menos de um ano após a divulgação do relatório —, a CRR, com 450 dossiês relevantes, já tinha ressarcido 15 vítimas, com montantes entre os 50 mil e os 60 mil euros (fixado como valor máximo a que poderia chegar uma indemnização).

No entanto, apesar de os organismos já terem dado uma resposta inicial, nem todas as vítimas estão satisfeitas com o seu funcionamento. Em entrevista à Euronews, Nancy Couturier, vítima de abusos sexuais e diretora da associação Tous Ensemble, que defende outras pessoas que foram abusadas por membros da Igreja, lembrou o seu caso pessoal. Segundo o seu relato, a CRR ofereceu-lhe primeiro uma verba para pagar as despesas que mantinha num veterinário e depois uma espécie de pensão que lhe seria atribuída todas os meses.

Nancy Couturier lembra que se sentiu humilhada quando soube da pensão. “Estamos a pedir Justiça. Já não temos mais Justiça civil. [Pedimos] Reconhecimento de todo o sofrimento por que passámos. E que continuamos a sofrer mental e moralmente.”

"Estamos a pedir Justiça. Já não temos mais Justiça civil. Reconhecimento de todo o sofrimento por que passamos. E que continuamos a sofrer mental e moralmente."
Nancy Couturier, vítima de abusos sexuais e diretora da associação Tous Ensemble

A diretora da associação também se insurgiu contra os valores estipulados pelas comissões. Numa das cartas que a Tous Ensemble recebeu, lê-se que uma das vítimas — “cujos abusadores eram conhecidos” —, que sofreu um “impacto devastador” pelos abusos a que esteve sujeita, recebeu 37 mil euros. “Para receber 60 mil euros é necessário estar acamado? Não é normal”, comentou Nancy Couturier.

O representante legal da Tous Ensemble, Maître Sannier, também contesta o teto máximo de 60 mil euros. Em declarações à Euronews, Sannier sublinhou os custos que os abusos sexuais podem ter significado para s vítimas durante décadas. O advogado deu mesmo um exemplo: “Quando se gasta mais de 60 mil euros em terapia e [a indemnização] estiver limitada a 60 mil euros, não haverá compensação.”

O trabalho da Igreja não se tem centrado apenas nas indemnizações. Jean-Marc Sauvé, rosto que não só contribuiu para elaborar o relatório como também tem sido uma voz ativa para que o assunto não caia no esquecimento, tem dado várias entrevistas sobre esta questão, tendo divulgado recentemente que existem nove grupos de trabalho na Conferência Episcopal dedicada ao estudo dos abusos sexuais em França. Esses nove grupos deverão reunir-se em março de 2023 para discutirem uma reforma legal na Igreja — e perceber que passos terão de ser tomados no futuro.

Ainda assim, persiste um tema tabu: o segredo de confissão, nomeadamente quando estão em causa crimes de abuso sexual de menores. A Comissão Independente francesa pediu que a Igreja clarifique e repense que temáticas é que devem continuar protegidas pelo segredo, mas até agora não têm sido tomado medidas para contrariar essa tendência.

A posição da Igreja ficou, de resto, logo expressa pelo presidente da Conferência Episcopal Francesa, Éric de Moulins-Beaufort, que, dias após a divulgação do relatório, disse, durante uma entrevista, que o “segredo da Igreja era mais forte do que as leis da República”. O caso causou polémica — e levou a um pedido de esclarecimento por parte do governo francês.

epa08784657 (From L) Archbishop of Paris Michel Aupetit, President of Bishops' Conference of France Eric de Moulins-Beaufort and French Prime Minister Jean Castex talk to the press after their meeting at the Matignon Hotel in Paris, France on 29 October 2020, after a man wielding a knife killed three people in the Basilica of Notre-Dame in the heart of the Mediterranean city of Nice. Three people have died in what officials are treating as a terror attack. The attack comes less than a month after the beheading of a French middle school teacher in Paris on 16 October.  EPA/MARTIN BUREAU / POOL  MAXPPP OUT

Declarações de Éric de Moulins-Beaufort (à esquerda) causaram polémica

MARTIN BUREAU / POOL/EPA

O Presidente francês, Emmanuel Macron, pediu mesmo que o ministro do Interior, Gérald Darmanin, tivesse um encontro com o presidente da Conferência Episcopal, para que este esclarecesse o seu posicionamento, que poderia levar a um inevitável embate entre o Direito canónico e o Direito civil.

Poucos dias mais tarde, e já depois de ter estado reunido com o ministro do Interior, Éric de Moulins-Beaufort retratou-se e admitiu que o teor das suas declarações tinha sido “desajeitado”. Pediu também desculpa às “vítimas e a todos aqueles que puderam ter sofrido angústia ou choque” pelo debate que os seus comentários acabaram por suscitar.

A resposta alemã: mais estudos e uma possível abertura a novas realidades

Tal como aconteceu em França e em Portugal, na Alemanha, a iniciativa de estudar o fenómeno dos abusos sexuais partiu da representação da Igreja Católica nacional. Há, contudo, uma diferença. Em vez de reunir certas personalidades da sociedade civil, a Conferência Episcopal da Alemanha preferiu encomendar um estudo universitário, mais centrado nos arquivos históricos de todo o país desde o final da Segunda Guerra Mundial do que propriamente na recolha de testemunhos.

O contacto com as vítimas foi, por isso, inexistente — e a questão das indemnizações não foi tão premente como em França. Ainda assim, acabou por funcionar como um tiro de partida para que outros setores eclesiásticos também abrissem as suas próprias investigações. Por exemplo, as dioceses de Colónia e de Münster encomendaram um estudo para tentar entender a dimensão da temática dos abusos sexuais circunscrita àquelas dioceses. 

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Igreja de Münster e Colónia abriram investigações às suas dioceses

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Não foi, no entanto, a única consequência. A divulgação do estudo abriu um espaço para que a Igreja Católica alemã começasse a discutir reformas no seio da instituição, tais como a possibilidade de celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo e o fim do celibato. Este último tópico tem sido alvo de uma forte atenção pelas estruturas da Igreja alemãs — e, caso vá por diante, pode mesmo representar um cisma dentro do catolicismo.

A resposta australiana: o pedido de desculpas e as compensações financeiras

Em 2012, a Austrália abriu um inquérito para apurar os impactos dos abusos sexuais em todas as esferas da sociedade. E a situação dentro da Igreja serviu como um gatilho para este estudo. É que, desde a década de 90, os casos de abusos sexuais vinham-se avolumando. Em 1993, o padre católico Gerard Ridsdale chegou a ser condenado por abusos de menores, naquele que foi entendido como um primeiro sinal de um problema que viria a ganhar grandes proporções no país.

Contrariamente à comissão alemã e francesa, no caso australiano a iniciativa partiu do governo federal, que abriu um inquérito parlamentar realizado pela Royal Commission, com a possibilidade de os seus resultados serem remetidos diretamente para o sistema judicial.

Anos depois da recolha de testemunhos e audiências públicas, a Austrália contabilizou 7.981 vítimas de abusos no país, sendo que o local mais comum em que ocorreram foram as instituições religiosas (58,1%), principalmente a Igreja Católica.

A principal resposta a estes números foi um pedido de desculpas perante o Parlamento, por parte do ex-primeiro-ministro, Scott Morrison, a todas as vítimas de abuso sexual. “A Austrália confronta-se com um trauma — uma abominação. Confrontamos uma questão que é terrível perguntar sobre, quanto mais responder.”

“Os crimes do abuso sexual aconteceram em escolas, igrejas, grupos de jovens, escoteiros, orfanatos, clubes desportivos e em casa”, elencava Scott Morrison, prometendo que, após “muitos anos e décadas de negações e ocultações”, as instituições “responsáveis por arruinar as vidas” iriam ter de admitir a sua “conduta errada” pelos “terríveis danos que causaram”.

epa09780183 Australian Prime Minister Scott Morrison speaks to the media during a press conference following the beginning of the Russian military operation in Ukraine, in Sydney, Australia, 24 February 2022. Morrison condemned Russia’s military operation, calling it 'a brutal, unprovoked invasion of Ukraine'.  EPA/BIANCA DE MARCHI AUSTRALIA AND NEW ZEALAND OUT
"Os crimes do abuso sexual aconteceram em escolas, igrejas, grupos de jovens, escoteiros, orfanatos, clubes desportivos e em casa"
Scott Morrison, ex-primeiro-ministro australiano

Por isso, o primeiro-ministro da Austrália garantiu, perante os deputados, que iria cumprir as recomendações que saíram do estudo, tal como a criação de um gabinete nacional para a segurança das crianças.

Por sua vez, a Igreja Católica aceitou instituir um esquema de compensações financeiras às vítimas que tinham sido abusados pelos clérigos. Em 2017, já tinham sido pagos 213 milhões de dólares australianos (cerca de 139 milhões de euros), sendo que cada pessoa pode receber no máximo 150 mil dólares australianos (aproximadamente 98 mil euros).

Tal como em França, a questão do segredo de confissão para os casos de abusos foi alvo de um acesso debate. Em termos globais, a Igreja Católica da Austrália recusou essa sugestão que tinha sido dada pela Royal Commission. No entanto, alguns estados decidiram avançar já com uma flexibilização da medida, ainda que os principais rostos da instituição continuem a opôr-se a quaisquer alterações a esse nível.

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