Está novamente em cima da mesa a possibilidade de as taxas de juro subirem na zona euro ainda este ano, depois de o BCE ter voltado a surpreender tudo e todos com o anúncio, feito esta quinta-feira, de que vai chegar mais cedo do que o previsto o momento em que a autoridade monetária deixa de fazer novas compras de dívida pública nos mercados financeiros – compras essas que têm sido decisivas nos últimos anos para manter em mínimos históricos os custos de financiamento de países como Portugal. Terão sido manifestamente exagerados os rumores de que, por causa da guerra, o BCE iria adiar os planos de retirar esses estímulos monetários. E tudo porque a guerra de Putin assusta, sim, mas o receio de um descontrolo da inflação é ainda maior.

Numa conferência de imprensa em que ostentou na lapela um pin de apoio à Ucrânia, a presidente do Banco Central Europeu (BCE) surgiu com um semblante invulgarmente pesaroso. Porquê? Para alguns, no chamado “Twitter financeiro”, era apenas uma forma de mostrar solidariedade para com as vítimas da guerra mas, para outros, era mais do que isso: Christine Lagarde tinha a difícil tarefa de comunicar a milhões de pessoas decisões de política monetária com as quais, possivelmente, não concorda na totalidade.

Como presidente do Conselho do BCE, que reúne as sensibilidades de todos os países da zona euro, Lagarde admitiu que tinha sido “intenso” o debate esta quinta-feira na cúpula da autoridade monetária. Nesse debate, que foi “contaminado” (expressão de Lagarde) pelo tema da guerra na Ucrânia, alguns governadores alertaram para o perigo trazido pelo conflito e para a eventual inutilidade (ou, até, contraprodutividade) de tomar agora medidas para acelerar a normalização da política monetária. Outros forçaram o BCE a tomar medidas, numa altura em que a taxa de inflação está muito perto dos 6%, isto é, o triplo dos 2% que o BCE deve garantir – esse é o seu único mandato.

Governador do banco central alemão (também) admite fim das compras de dívida pelo BCE e subida de juros já este ano

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No final, confirmou-se que o programa de compras de dívida pública lançado quando surgiu a pandemia (conhecido pela sigla PEPP) vai terminar no fim deste mês de março. Mas, depois, veio a surpresa: também o outro programa de intervenção no mercado de obrigações, o APP, vai terminar mais cedo do que tinha sido indicado. Quanto ao tema das taxas de juro, o BCE deixou de prometer que isso aconteceria “pouco tempo depois” do fim das compras de dívida e passou, agora, a dizer que entre uma coisa e outra – ou seja, o fim das compras e a subida dos juros – irá decorrer “algum tempo”.

Sobre a intervenção nos mercados de dívida, a garantia dada no comunicado do BCE é que serão comprados 40 mil milhões em abril, 30 mil milhões em maio e 20 mil milhões em junho ao abrigo deste programa APP. Depois disso, o banco central não exclui que o programa se possa prolongar (no máximo, até ao terceiro trimestre) mas não se compromete com datas nem valores – na altura se decidirá, conforme aquilo que forem os dados recolhidos sobre a evolução da economia e da inflação.

Qual é a diferença? Anteriormente, previa-se que o programa poderia durar até ao final deste ano de 2022, agora durará até junho e talvez mais alguns meses – talvez. Alguns analistas tinham, mesmo, admitido nas últimas semanas que devido à guerra na Ucrânia a intervenção nos mercados de dívida poderia estender-se até para 2023. Na verdade, foi decidido exatamente o oposto.

Essa surpresa fez disparar imediatamente as taxas de juro da dívida pública de países como Itália (mais 23 pontos-base para 1,9% a 10 anos) e Portugal (cujas taxas saltaram 15 pontos-base para 1,13%, no mesmo prazo que, no final de 2021, tinha juros inferiores a 0,5%). No fundo, o que o BCE anunciou foi que irá chegar mais cedo do que se previa o momento em que o banco central deixa de ter a presença crucial que teve nos últimos anos nos mercados de dívida europeia – e esse momento “assusta um bocadinho”, como confessou a presidente da agência que gere a dívida pública portuguesa, em entrevista recente ao Observador.

“Assusta um bocadinho” o fim das compras de dívida pelo BCE, diz a presidente do IGCP no dia em que os juros a 10 anos superam 1%

Mercados e analistas voltam a antecipar subida de juros em 2022 (mas nem todos concordam)

Foi a surpresa do ano, na política monetária“, comentou Steen Jakobsen, chief investment officer do Saxo Bank, em nota rápida de reação às decisões do BCE. Depois de vários responsáveis do banco central terem, nas últimas semanas, dado a entender que a guerra na Ucrânia iria fazer o BCE pensar duas vezes antes de avançar com os planos de normalização da política monetária nos próximos tempos, a autoridade decidiu, afinal, acelerar o fim da intervenção nos mercados.

“É uma decisão super hawkish“, acrescentou o especialista, referindo-se à expressão normalmente utilizada na gíria dos bancos centrais, em termos simples, para significar um aperto mais rápido das condições monetárias.

Mesmo com todos os esforços feitos por Lagarde na conferência de imprensa, no sentido de desdramatizar algumas das decisões que constavam no comunicado divulgado pouco tempo antes, a visão prevalecente entre os analistas é que a força dos hawks (“falcões”) na cúpula do banco central parece ser maior do que alguns previam. E isso volta a colocar em cima da mesa a possibilidade de um aumento das taxas de juro nos próximos meses, o que se irá refletir nas taxas Euribor.

Juros ameaçam bolso dos portugueses. Euribor pode subir acima de zero já em junho

A consultora londrina Capital Economics fez uma análise semelhante: “O BCE sinaliza que está muito mais preocupado com uma continuação da subida rápida da inflação do que com qualquer choque negativo no crescimento económico que poderá resultar da guerra na Ucrânia”. E o Berenberg Bank levou o mesmo argumento ainda mais longe: “Perante um aumento recorde na inflação e um elevado nível de incerteza, fruto da guerra de Putin, o BCE abriu a porta, pelo menos um pouco, para a possibilidade de a primeira subida das taxas de juro acontecer ainda em 2022“.

Foi exatamente isso que passou a ser previsto nos mercados de derivados de taxas de juro: poucos segundos após a divulgação das decisões do BCE, esses mercados voltaram a antecipar uma primeira mexida nas taxas de juro em setembro de 2022. Essa já era a expectativa dos investidores após a última reunião da autoridade monetária, no início de fevereiro, mas a guerra na Ucrânia (que começou posteriormente) tinha vindo a mudar esse cenário.

Mas nem todos os especialistas estão convencidos. Anna Stupnytska, economista global na gestora Fidelity International, defendeu em nota de análise que ainda muita água vai correr debaixo da ponte. “Acreditamos que à medida que o choque económico [causado pela guerra] se tornar cada vez mais evidente nos dados económicos, ao longo das próximas semanas, o BCE deverá voltar a secundarizar os riscos de inflação e privilegiar novamente a importância de limitar a turbulência nas economias e nos mercados”, afirma a economista.

Nesta ordem de raciocínio, a Fidelity mantém a convicção de que “não haverá quaisquer subidas das taxas de juro pelo BCE neste ano“, por muito que os indicadores de mercado já referidos tenham rapidamente refletido que isso mesmo irá acontecer, assim que saíram as decisões desta quinta-feira. Aliás, salienta Anna Stupnytska, “acreditamos que até existe o risco de que haja ainda mais intervenção do BCE nos mercados de dívida, sobretudo se houver perturbações no fornecimento energético na Europa nos próximos tempos”.

BCE corta previsões de crescimento económico na zona euro (e sobe as da inflação)

Para já, embora as novas previsões macroeconómicas elaboradas pelo staff do BCE não tragam boas notícias, o banco central continua a não antecipar que a guerra na Ucrânia seja capaz de fazer descarrilar a retoma.

Os economistas do BCE passaram a prever um crescimento de 3,7% do produto interno bruto (PIB) em 2022, significativamente abaixo dos 4,2% previstos em dezembro. Mas os indicadores existentes continuam a apontar para uma retoma “robusta” da economia, afirmou Lagarde, que lembrou que a pandemia tem tido um impacto (negativo) cada vez menor.

Para 2023, a previsão também foi reduzida: 2,8% (versus 2,9% previstos em dezembro). Relativamente a 2024, mantêm-se os mesmos 1,6%. Mas os “riscos” na economia “pendem para o lado negativo”, ou seja, têm maior probabilidade de surpreender pela negativa do que pela positiva, reconheceu o BCE.

Sobre a inflação, como já se esperava, as previsões foram revistas em alta – e não foi pouco. Em 2022, a inflação será em média de 5,1%, antecipa o BCE, duas vezes e meia o objetivo de médio prazo do banco central. A anterior previsão era de 3,2%.

“A guerra representa um risco substancial de aumento da inflação”, admitiu a presidente do banco central, reconhecendo que já não é apenas a energia que está na base da subida dos preços já que os fatores são agora “mais generalizados”. Ainda assim, o BCE mantém a confiança de que já em 2023 a inflação já irá baixar para uns mais aceitáveis 2,1% – ainda assim mais do que os 1,8% anteriormente previstos.

E se estas previsões falharem, como têm falhado até agora? Numa frase que foi reminiscente daquilo que prometeu Mario Draghi, para preservar a união monetária, Christine Lagarde garantiu que o “BCE vai fazer aquilo que for necessário para salvaguardar os preços“.