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Todos os anos a história se repete: não há vagas nas creches e jardins de infância públicos. Mas este ano o problema adensou-se. A Segurança Social terá recebido indicações “superiores” para adiar as inscrições nas creches privadas no âmbito do programa Creche Feliz, o que levou também a um atraso na atualização dos dados na Segurança Social Direta. Agora, há crianças que ainda não foram aceites nas creches e outras que, apesar de aceites, não têm ainda os seus dados na respetiva plataforma — o que significa que o apoio do Estado a estas crianças não está garantido.
Mas os problemas não ficam por aqui: às crianças mais velhas, em idade de pré-escolar, o Governo prometeu um alargamento da Creche Feliz, mas não definiu as regras desta medida. Agora, há instituições sem saber o que fazer e crianças em casa porque os pais não têm condições financeiras para pagar as mensalidades exigidas pelas instituições.
Mas vamos por partes: as instituições de ensino que o Observador contactou, para perceber exatamente o que se estava a passar com o programa Creche Feliz — depois de receber relatos da existência de muitos pais com dificuldades em encontrar um creche ou jardim de infância para os filhos — referem pelo menos três problemas no funcionamento do programa (dois que dizem respeito à creche e um ao pré-escolar). Criado pelo anterior governo, este programa era, inicialmente, dirigido às crianças nascidas antes de 1 de setembro de 2021 abrangidas pelo 1.º e 2.º escalão. Atualmente, todas as crianças nascidas após esta data têm acesso gratuito à rede de creches — mas este ano, desabafam diretores escolares ao Observador, o processo não está a correr bem.
Creche Feliz. Quanto paga o Estado por criança?
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No final de agosto o Ministério do Trabalho e da Segurança Social enviou aos deputados dados recentes sobre o programa Creche Feliz.
Segundo a pasta, o Estado paga atualmente, por mês, 473,80€ por criança às instituições abrangidas por este programa. Isto representa mais 13,80€ do que nos dois anos letivos imediatamente anteriores.
Atualmente são abrangidas 1.998 instituições e 100.124 crianças (das quais cerca de 41.000 têm 2 anos e cerca de 15.400 têm 3).
É no concelho de Lisboa que está o maior número de creches aderentes (110), seguindo-se Sintra (60) e Vila Nova de Gaia (50). O concelho com maior número de crianças abrangidas é, uma vez mais, Lisboa (7.074). Em segundo lugar surge Braga (2.333). E atrás Oeiras (2.313), Loures (2.295) e Cascais (2.089).
Não é possível saber, ao certo, quantas crianças estão a ser afetadas por estes atrasos na gestão do programa Creche Feliz por parte da Segurança Social. Mas, entre a dezena de instituições com as quais o Observador manteve contacto a propósito deste tema, somam-se mais de uma centena de casos de crianças cujas famílias em suspenso, sem saber, já em setembro, como ficará a situação escolar das crianças no resto do ano escolar.
Houve “ordens superiores para não aprovarem” inscrições
Se fosse um ano como qualquer outro, as creches privadas teriam começado a receber um código emitido pela Segurança Social ainda durante o mês de julho ou agosto, muito antes do início do ano letivo. Esse código permitia ao pais pedirem a gratuitidade na aplicação Creche Feliz, sendo esta inscrição depois avaliada e aprovada pela Segurança Social. Depois desta aprovação, a creche iria colocar os dados da criança na Segurança Social Direta, assegurando assim o pagamento por parte do Estado.
Aqui surge o primeiro problema: em 2024, o prazo para este processo terminava a 5 de setembro, mas “este ano, pela primeira vez, não foi possível” cumpri-lo, começa por dizer ao Observador Susana Batista, diretora da ACPEEP (Associação de Creches e Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular). “A Segurança Social não aprovou os pedidos das famílias, [por isso] muitas não têm garantia da gratuitidade.”
“Falam em ordens superiores para não aprovarem, mas não percebemos porque é que estão a atrasar os processos”, acrescenta a diretora da associação. O Observador confrontou a Segurança Social com esta questão duas vezes, mas não obteve esclarecimentos claros sobre a situação até à publicação deste artigo. Na resposta, limitou-se a dizer que “se trata de um processo que envolve vários parceiros e etapas (…) e a geração de códigos pode não ser imediata”. Mas não é explicada a razão para o atraso deste ano na emissão dos códigos, face a anos anteriores.
Entre as ‘vítimas’ deste atraso estão os alunos do Externato Passos Manuel e da Creche e Jardim de Infância Quintarola, ambos em Lisboa. No total, estes dois privados esperam ainda que a Segurança Social valide 16 inscrições de menores. “Fiquei com sete crianças por validar na Quintarola e no Passos Manuel foram nove”, conta Vera Sousa, responsável pela aplicação do programa Creche Feliz neste grupo de ensino, acrescentando que são frequentes as chamadas que recebe de pais preocupados com a situação escolar dos seus filhos.
No caso destas duas instituições de ensino, não será exigido aos encarregados de educação que assegurem o pagamento da mensalidade referente ao mês de setembro. “Estou à espera [da Segurança Social]. Tenho liquidez no infantário de forma que possa substituir a Segurança Social até darem o ok”, diz Vera Sousa. O mesmo não acontece noutras instituições privadas.
Colégio com 11.500€ em falta. “Pedimos mensalidade aos pais”
Os problemas da Creche Feliz complicam-se. Isto porque, apesar de em algumas creches a Segurança Social ter validado as inscrições das crianças, os dados não foram atualizados na Segurança Social Direta, plataforma através da qual são feitos os pagamentos. Por outras palavras: se não há dados nesta plataforma, o Estado não vai pagar a mensalidade destas crianças.
“Em muitos casos, as famílias tiveram de pagar este mês de setembro para garantir que a criança tem lugar [até a Segurança Social atualizar os dados]. Em média são 400 euros”, diz. É o caso do Colégio do Forte, em Vila do Conde, no distrito do Porto. A Segurança Social atrasou-se a “atualizar os dados na aplicação”, denuncia Susana Batista. Em causa estão 40 crianças, ou seja, 40 mensalidades que ficam por pagar, o que se traduz em cerca de 16 mil euros.
Situação semelhante vive atualmente o Colégio B-A-Baby, em Oeiras. O problema iniciou-se, uma vez mais, no atraso com a validação das inscrições das crianças, mas “notou-se um esforço da Segurança Social para deferir os casos”, que até chegou a enviar “emails às 23h de domingo”, conta a diretora Ana Campos. Depois de todas as inscrições estarem aprovadas, era necessário uma “atualização dos dados na Segurança Social Direta”, o que ainda não aconteceu.
“A comunicação de frequências só pode acontecer entre dia 1 e 5 de cada mês. Só pude comunicar 40 alunos e tenho 23 fora desta comunicação. Já têm deferimento, a Segurança Social disse que podiam frequentar a creche, mas agora eu só recebo o pagamento no final de outubro”, detalha Ana Campos. E acrescenta que na sua instituição de ensino estão “14 colaboradoras, pelo que 20 mensalidades fazem falta”.
Neste colégio, a propina “normal anda na ordem de 500€”, o que se traduz num valor em falta de cerca de 11.500€. “Optámos por pedir as mensalidades aos pais e quando houver um pagamento da Segurança Social iremos devolver as mensalidades, mas até lá precisamos de recebimento”, diz a diretora. A responsável do Colégio B-A-Baby sente que caiu “numa armadilha”. “Pedi mais vagas este ano, acho que o programa é fantástico, somos parceiros e este é um caminho para aumentar a natalidade”, mas a Segurança Social falhou. “Não houve planeamento, as coisas não estão a correr muito bem este ano”, remata.
Pré-escolar: criança com necessidades especiais “em casa” porque Governo não define regras
No início de agosto, o Governo de Luís Montenegro anunciou que haveria um alargamento da gratuitidade ao pré-escolar, que se inicia aos 3 anos. “Caso não haja resposta na rede pública ou no setor social e solidário da freguesia onde se situa o estabelecimento de ensino, a transição para a educação pré-escolar no setor privado será considerada como uma solução subsidiária”, adiantou à época o Executivo.
No entanto, até agora não definiu os termos em que esta medida iria funcionar. Em maio e junho, entidades como a ACPEEP reuniram-se com o Ministério da Educação (sendo este ciclo de estudo sua responsabilidade) e, apesar de terem sido apresentadas propostas, nada foi feito. “Não entendemos o que está a acontecer, não há informações da parte do Ministério da Educação até à data; se isto vai mesmo acontecer e como. O Governo tem de definir algumas regras e o valor que quer pagar [por criança]”, diz a líder da associação Susana Batista.
Há cerca de um ano, um casal bateu à porta do Colégio Pequenos Índios, na capital, à procura de vaga para a sua filha, uma criança com necessidades educativas especiais (NEE). A criança faz 3 anos em novembro, sendo altura de progredir para o pré-escolar. Mas, devido à falta de regras do Estado quanto ao alargamento do programa, “a menina neste momento está em casa”. “Os pais não têm forma de pagar o ensino privado. Tinham uma ama de salvaguarda mas, com esta situação, a ama ficou preenchida”, conta a diretora do colégio, Sofia Felicíssimo.
De acordo com a responsável, na sua instituição “a menina teve uma evolução muito grande”: “Ela é não verbal e, em termos de afetos, rapidamente desenvolveu laços afetivos. Não é fácil, a vida destes pais. Ambos trabalham e não conseguem pagar a escola privada”. Nesta instituição a mensalidade é de 535€, valor que inclui 60€ de alargamento do horário. Este valor era integralmente coberto pela Creche Feliz.
Segundo Sofia Felicíssimo, quando esta criança chegou ao Colégio Pequenos Índios, com 2 anos, “nem andava”. “Os pais disseram que houve escolas que não a aceitaram. Ela dá mais trabalho que 15 [crianças], mas não a posso discriminar, é uma criança. Ainda tenho aqui uma vaga ‘meio-guardada’ para esta menina“, caso o Governo entretanto defina o funcionamento deste alargamento, afirma a diretora do colégio.
Crianças do Creche Feliz sem vaga no pré-escolar vão poder continuar na creche
Na passada quinta-feira, a ACPEEP enviou ao Ministério liderado por Fernando Alexandre um documento com uma “proposta de solução imediata gratuita na Educação Pré-Escolar do Setor Privado”. A associação liderada por Susana Batista diz que pretende “agilizar o processo negocial e encontrar soluções imediatas” para as famílias, fazendo por isso propostas muito semelhantes ao que “já acontece no programa da Creche Feliz”, lê-se no documento enviado às redações.
Os privados propõem que “sejam aplicadas aos estabelecimentos de educação pré-escolar da rede privada que queiram aderir [ao Creche Feliz] as mesmas condições que foram definidas pelo Governo” para os jardins de infância das IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social) no que toca à frequência gratuita de alunos.
E ainda que “sejam garantidos os mesmos direitos às crianças no acesso e na frequência dos estabelecimentos, independentemente da natureza jurídica dos mesmos, seguindo o princípio da igualdade de oportunidades”. A associação diz, contudo, que até ao momento o Ministério da Educação permanece em silêncio.