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"Há uma questão fundamental para o humor judaico desde os tempos do Livro de Ester que é o facto de os judeus serem uma minoria e isso permear tudo", diz Jeremy Dauber

"Há uma questão fundamental para o humor judaico desde os tempos do Livro de Ester que é o facto de os judeus serem uma minoria e isso permear tudo", diz Jeremy Dauber

Jeremy Dauber, os judeus e a comédia: "Com o Holocausto, a fronteira entre humor poderoso e aproveitamento é ténue"

No livro "Os Judeus e a Comédia", o autor americano conta o que diz ser "uma história muito séria": a de um povo que se diz eleito mas cuja perseguição pode ter algo de cómico. Entrevistámo-lo.

Para quem cresceu num ambiente cultural em que nomes como os de Woody Allen, Mel Brooks ou Jerry Seinfeld são referências do humor, pode parecer estranho que os judeus nem sempre tenham sido vistos como um povo particularmente engraçado ou com inclinação para a comédia. Mas o humor distintivamente judaico tem uma história tão longa quanto a história do povo judaico e é essa tradição que o professor de literatura judaica na Universidade de Columbia, Jeremy Dauber, nos dá a conhecer no exaustivo livro Os Judeus e a Comédia — Uma História Muito Séria (Zigurate).

Será até mais correto falar de tradições do humor judaico pois a forma e o conteúdo assumidos pela comédia feita por judeus variam consoante as épocas e as geografias em que os judeus viveram, acompanham as oscilações da sua fortuna e as certezas das perseguições e das matanças, sinalizam mudanças fundamentais na sua identidade coletiva, vão desde o humor mais refinado, erudito e filosófico às referências mais escatológicas, refletem preocupações muito particulares de uma determinada comunidade e abordam temas tão universais que, a dada altura, a pergunta se impõe: existirá mesmo um humor especificamente judaico? No livro, Dauber também procura uma resposta para esta pergunta.

O que nos mostra certamente é que há muito humor judaico para lá de Woody Allen, Mel Brooks ou Seinfeld, há um humor que remonta aos tempos bíblicos e ao Livro de Ester, amplamente mencionado neste livro, há um humor feito a pensar nos judeus e outro a pensar no público gentio – os tais que nunca acharam muito piada aos judeus, com consequências nada cómicas na maior parte das vezes –, que o humor serve de consolo nos tempos mais sombrios e de confronto com o absurdo da existência, que lida com essa contradição fundamental de o povo eleito ser o mais perseguido e que pode ser também uma forma modesta, entranhada no quotidiano, de transmitir uma herança, uma linguagem e um modo de sentir de geração em geração. Ou pode não ser nada disto e ser apenas a vontade de repetir uma anedota a que se achou graça e de rir do que todos nós, judeus e gentios, nos rimos.

A capa de "Os Judeus e a Comédia — Uma História Muito Séria", de Jeremy Dauber, publicado em Portugal pela Zigurate

Deixe-me começar por lhe perguntar se acha que há algo intrinsecamente cómico na questão judaica, no facto de o povo judeu se considerar o povo escolhido e ao mesmo tempo ser historicamente perseguido em épocas e países diferentes?
Acho que a pergunta foi formulada da maneira certa. Para ser claro: como é óbvio, não há nada de engraçado na perseguição de qualquer grupo, sejam os judeus ou quaisquer outros. Mas acho que houve alturas em que os judeus viram a sobreposição de serem o povo escolhido — Deus ama-nos, temos um pacto com Deus — e tudo o resto que aconteceu ao longo da História. Alguns judeus – porque os judeus como qualquer outro povo são muito diferentes entre si – viram aí um pretexto para o choro e o ranger de dentes; outros viram aí qualquer coisa de estranho, ridículo ou cómico. E foi esse grupo de pessoas que acabou por escrever esse tipo de humor judaico. Portanto, essa foi uma das premissas fundamentais de um certo tipo de humor judaico.

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No início do livro diz que até certa altura os judeus não eram considerados particularmente engraçados, mas isso mudou. A ideia que os outros têm acerca dos judeus e o seu humor mudou. Na sua opinião, qual foi o momento de viragem para que isso acontecesse?
Há aqui dois aspetos: o primeiro tem a ver com a sua primeira questão e uma mundivisão essencialmente religiosa. No século XX e no século XXI, muitos de nós vivemos num mundo pós-religioso. Uma das razões para que as pessoas, cristãs, obviamente, achassem que os judeus não tinham graça é porque os judeus eram tidos como metafisicamente ou teologicamente tristes. Tinham tido a oportunidade de aceitar Jesus Cristo como o seu salvador e não a aproveitaram. E por isso eram tristes. Num mundo pós-religioso, isso já não interessa, as pessoas já não pensam nisso. O segundo aspeto é que o mundo, em parte devido à plataforma cultural norte-americana, teve oportunidade de ver judeus com piada de uma forma como nunca tinha visto até aí. O mundo inteiro teve oportunidade de ver um filme de Woody Allen, um filme de Mel Brooks ou de Seinfeld e terá pensado que há por aí uns judeus engraçados.

Mencionou alguns dos nomes importantes e a cultura norte-americana através dos filmes e da televisão contribuiu enormemente para essa ideia de humor judaico e dos humoristas judeus. Que outros nomes acha que foram os mais influentes na disseminação dessa ideia?
Julgo que, por exemplo, um dos humoristas judeus mais influentes na televisão norte-americana, não sei se será assim no resto do mundo, foi Sid Caesar, que tinha um programa intitulado Your Show of Shows, um dos primeiros programas na história da televisão. Teve uma importância enorme para a televisão americana e de alguma forma no resto do mundo, mas julgo – e corrija-me se estiver enganado – que este programa e o seu humor não tiveram grande sucesso internacionalmente.

"Todos nós fazemos coisas nas nossas vidas que levámos muito a sério, mas em certos momentos vemo-las de uma perspetiva cómica. Eu tenho filhos e levo essa tarefa muito a sério, mas há momentos em que penso nos aspetos ridículos nisto de ser pai."

Não é um nome muito conhecido do grande público, embora possa ter influenciado pessoas que na altura faziam televisão.
Mas quer o Mel Brooks, quer o Woody Allen trabalharam como guionistas neste programa de Sid Caesar e dessa forma ela pode ter sido uma influência a nível global. Mas ele próprio, mesmo na América, e o programa já tem quase 75 anos, já foi quase esquecido. Esse é um dos exemplos. Outro é Jack Benny, que também refiro no livro, um dos humoristas mais famosos da história da rádio americana, uma das vozes mais reconhecidas da América e que, para as pessoas que o conheceram, era claramente um humorista judeu.

E quanto a S. J. Perelman? Ele influenciou bastante escritores como Woody Allen.
A editora Library of America, muito prestigiada, acabou de lançar uma coletânea de contos de Perelman e eu estava a reler alguns e a pensar: “caramba, o Woody Allen veio aqui buscar tanta coisa”. Mas existem muitas figuras assim, que foram influentes mas que simplesmente não alcançaram a imortalidade, isso está reservado apenas para alguns. Alguns deles eram judeus e ajudaram a criar uma paisagem na América e depois também no mundo e ajudaram a mudar a forma como as pessoas viam os judeus e a comédia.

Graças à influência de nomes como Woody Allen, Larry David, Seinfeld, temos esta ideia do humor judaico, se não erudito, pelo menos intelectual. Isto na realidade é mesmo assim?
É uma ótima pergunta. Uma das coisas que tento fazer no livro é mostrar que os judeus produziram muitos tipos diferentes de humor, remontando mesmo ao início.

Com o Livro de Ester, que refere bastante.
Julgo que é a fonte de muito do humor judaico ao longo dos séculos. E existem muitos tipos diferentes de humor. Alguns são mais importantes para o imaginário global do que outros, mas se olharmos para Mel Brooks ou para os Irmãos Marx ou para Os Três Estarolas, eles têm um humor bastante físico porque os judeus são como as outras pessoas, se acham piada a alguma coisa vão tentar ter graça de maneiras muito diferentes. Mas concordo consigo, as pessoas costumam olhar para o humor judaico de um certo modo. Se pensarmos no humor britânico ou italiano, as pessoas também podem achar que conhecem e dizer “Eu sei o que é o humor britânico porque vi os Monty Python”. “Então e o Benny Hill?” O mesmo acontece com o humor judaico: “Eu conheço o humor judaico porque vi o Larry David”. E podemos perguntar: “Então e Os Três Estarolas?”.

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"Lenny Bruce mostrava coisas que eram claramente judaicas e coisas que eram gentias. Por exemplo, a mostarda era judaica e a maionese era gentia"

Bettmann Archive

Mas acha que existem traços que unem todas estas variantes e tradições do humor judaico?
Foi algo em que pensei bastante enquanto estava a escrever o livro. A conclusão a que cheguei, e que parece um pouco circular, é que o humor judaico é o humor feito por judeus, é algo relacionado com história, a cultura ou as comunidades judaicas. E aí podemos mesmo dizer que é humor judaico. Depois há coisas produzidas por judeus e que não são humor judaico. Por exemplo, se um judeu escrever uma excelente anedota daquelas do género “truz, truz”, não acho que isso seja propriamente humor judaico no sentido que lhe estamos aqui a dar em comparação com algo do Larry David, em que há muito no seu humor acerca da sua experiência enquanto judeu num determinado contexto americano. Mas também não seria apelativo para o resto do mundo se não tivesse nada de universal. O que nos leva a outra questão que é fundamental para o humor judaico desde os tempos do Livro de Ester que é o facto de os judeus serem uma minoria e isso permear tudo.

Então vê o humor judaico em qualquer altura ou lugar como uma forma de compreender a história judaica e as perseguições e o facto de serem uma minoria e tentarem integrar-se numa realidade diferente?
Vou dar o tipo de resposta que desespera a minha mulher que é: “às vezes”. Depende sempre do tipo de humor de que estamos a falar. Há um tipo de humor acerca dos peculiaridades do comentário talmúdico…

Ia precisamente perguntar-lhe acerca do comentário talmúdico e se o hábito de haver tantas interpretações favorece um certo tipo de humor?
Uma vez mais: às vezes. Houve pessoas que dedicaram a vida inteira ao estudo religioso e que o viam como um projeto sagrado e que o levavam bastante a sério e que provavelmente em certas alturas da vida devem ter pensado: “Isto não é um bocadinho ridículo, não tem uma certa piada?” E uma das coisas que mostro no livro é que mesmo nos próprios comentários encontramos indícios de ter sido assim. O que não significa que não fosse, em primeiro lugar e acima de tudo, um assunto muito sério e religioso. Mas a vida é assim. Todos nós fazemos coisas nas nossas vidas que levámos muito a sério, mas em certos momentos vemo-las de uma perspetiva cómica. Eu tenho filhos e levo essa tarefa muito a sério, mas há momentos em que penso nos aspetos ridículos nisto de ser pai.

"Mel Brooks, que esteve no Exército norte-americano e combateu mesmo os nazis, adorava gozar com Hitler, mas disse que separava o fazer pouco dos nazis e fazer pouco do Holocausto. Ele disse que nunca faria piadas sobre os campos de concentração."

Até que ponto acha que o Holocausto mudou o humor judaico? E pergunto-lhe se há muito humor e humoristas que se concentrem no tema do Holocausto em particular ou ainda é um tema tabu?
Há aqui vários aspetos de que vou tentar falar. O primeiro leva-nos à primeira questão e àquela ideia do pacto com Deus. Para muitos judeus do século XX e do século XXI o Holocausto é o teste por excelência dessa alegação. Há uma célebre piada que, como tudo o que se relaciona com este assunto, é perigosa, mas vou contá-la porque não está no livro: uma pessoa morre no Holocausto e vai para o céu. Começa então a contar a Deus sobre todo o sofrimento que havia nos campos de concentração e Deus diz: “Mas isso é terrível, é pavoroso”. E o tipo diz-lhe: “Havias de ter lá estado” [“you had to be there”]. Pois. De certa maneira, esta é uma anedota sobre o Holocausto muito poderosa e que funciona porque aborda aquele tema de saber se Deus esteve presente enquanto aquilo acontecia. E chegamos ao segundo aspeto. Em geral, os humoristas são atraídos para temas que tenham uma importância pessoal para eles e que não sejam fáceis. Sobre o Holocausto, pode haver humor poderoso e significativo, com substância, mas pode apenas aproveitar-se o tema ou ter uma abordagem indecorosa. A fronteira é ténue e os humoristas correm o risco de cair para o lado errado. Depois há a questão de saber se ainda é cedo para esse tipo de humor. Por exemplo, o Mel Brooks, que esteve no Exército norte-americano e combateu mesmo os nazis, adorava gozar com Hitler, mas disse que separava o fazer pouco dos nazis e fazer pouco do Holocausto. Ele disse que nunca faria piadas sobre os campos de concentração.

É uma linha que ele traça, um limite.
Exatamente. Larry David não traçou a mesma linha e fez humor brilhante sobre campos de concentração. Há um episódio magnífico da série Calma, Larry! em que ele faz contracenar um concorrente do Survivor com o um sobrevivente dos campos de concentração. E ele usa-o de uma forma que expõe a superficialidade moderna de tantos americanos. E depois tenta fazer uma piada sobre como era namorar num campo de concentração que eu acho que cai para o outro lado daquela fronteira. Mas a arte é essa. A de ir tentando. E falar de fora, dizer que não funciona, é fácil.

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"Há uma célebre frase do Mel Brooks em que ele diz 'se eles estiverem a rir como é que te vão matar à pancada?'”

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Acha que o humor judaico é, na sua essência, auto depreciativo e, em caso afirmativo, se é uma espécie de defesa preventiva, do género “é melhor ser eu a rir de mim antes que outros o façam”, ou que vem de sentido mais agudo de autoanálise? [pausa] Já percebi que a resposta é “às vezes”.
[risos] Isso, em parte, é mesmo assim. Há uma célebre frase do Mel Brooks em que ele diz “se eles estiverem a rir como é que te vão matar à pancada?” Mas também há um outro tipo de humor, muito baseado na língua judaica, e que na verdade dizia “nós somos mesmo o povo escolhido, somos melhores”. Portanto, na história do humor judaico há um humor auto depreciativo, mas há também este outro tipo de humor. Se disser que uma grande parte do humor judaico-americano é identificado no resto do mundo com esta variante auto depreciativa, sim, é verdade, com Mel Brooks, com Seinfeld, mas mesmo Seinfeld é um caso complexo, porque há algumas coisas auto depreciativas mas também se vê que o Jerry, a Elaine e o George num certo sentido se julgam superiores.

É uma mistura de complexo de superioridade com complexo de inferioridade.
Completamente. É o que eu penso. Isso fazia também parte da extraordinária química entre Larry David e Jerry Seinfeld na série. Ambos tinham perspetivas ligeiramente diferentes sobre como equilibrar isso. O Jerry era o Jerry e o Larry era mais o George.

Um dos tópicos recorrentes na comédia é a do peixe fora de água e se alguém conhece bem essa sensação é o povo judeu, que está sempre como que fora de água, sempre disfarçado, e refere esse aspeto do disfarce no livro. Pode ser essa uma das bases do humor judaico, essa necessidade de tentar sempre encaixar e de se tentar ser algo que não se é ao mesmo tempo que se mantém uma identidade própria?
Esse é um fator importante para muito do humor judaico feito a pensar num público maioritário e para uma linguagem cultural maioritária. Uma das coisas que analiso no livro é o humor judaico escrito em línguas judaicas, como o iídiche, e a pensar num público exclusivamente judaico. E este humor tem bases diferentes. Também é auto depreciativo, também fala de perseguição e tem outros elementos de que já falámos mas tem um tom diferente porque é como se dissesse “isto é só para nós”. Não estavam preocupados em como é que isso iria ser traduzido, era mesmo “isto é nosso”.

"Um dos grupos interessantes que nasceu na América neste século é aquele grupo que anda mais ou menos ali à volta de Judd Apatow. Gente como Seth Rogen, Adam Sandler, e por aí fora. E uma das coisas que acho interessante acerca deste círculo é que são pessoas que na sua maior parte não passam muito tempo – e acho que é correto dizê-lo – na comunidade judaica. Não têm aquele tipo de devoção tradicional que os judeus de há uns séculos tinham."

Então na sua opinião há um humor judaico feito a pensar num público judaico e um humor judaico feito a pensar nos gentios?
Gosto de estudar o humor, e já agora também o terror, sobre o qual também escrevo, por isto: é que, ao contrário, digamos, da poesia, o humor e o terror são escritos a pensar no público. Se for um poeta e escrever um poema e alguém disser que não percebe o seu poema, pode dizer “sou um génio!”. Mas se tiver um especial de comédia de uma hora na Netflix e ninguém se rir, alguma coisa não está bem. Portanto, quando alguém está a trabalhar no humor, está sempre a pensar num determinado público. Quando Mel Brooks ou Woody Allen estão a fazer os filmes deles sabem que vão ser vistos por uma grande variedade de pessoas. Quando Sholem Aleichem escreveu os contos que deram origem ao filme Um Violino no Telhado nunca imaginou que aquelas histórias se iriam converter num fenómeno mundial. Mas isso aconteceu porque essas histórias tinham, como todas as grandes obras, uma centelha do universal.

E o que é que se passa com as mães judias no humor? É um desses fenómenos ao mesmo tempo muito específico, muito judaico, e completamente universal porque temos mães em todas as culturas?
É incrível a quantidade de vezes em que conto estas anedotas, não sou um grande contador de anedotas, e em que as pessoas dizem “essa é a descrição do meu grupo étnico”. Muitas destas coisas são universais, a não ser quando se vira a anedota e se põe no centro uma figura ou um acontecimento da história dos judeus. Há uma anedota que adoro contar neste contexto. É um tipo que está a contar uma anedota e que diz: “Dois rabinos entram num bar”. E o outro diz: “Porque é que metes sempre rabinos nas anedotas? Podiam ser sobre outra pessoa qualquer. Sempre com essa mania.” E o outro diz: “Tudo bem. Eu mudo. Então, dois canalizadores entram num bar. E o primeiro canalizador diz ao outro canalizador: ‘Ouve, estou a preparar o meu sermão das Grandes Festas’.” [risos] Nestes casos, é uma anedota completamente judaica, mas se é sobre uma mãe que ama excessivamente o filho, isso pode ser partilhado com o resto do mundo.

Lembro-me de algo que George Steiner escreveu sobre o peso da responsabilidade dos pais judeus quando trazem um filho ao mundo. Acha que isso contribui para o desenvolvimento daquele tipo de humor neurótico que Woody Allen ou mesmo Philip Roth escreveram?
Desconfio que o tipo de coisas que eles escreveram tenha mais a ver com o tipo de parentalidade a que foram expostos. Mas é claro que também tinha que ver com uma espécie de fenómeno cultural. Quando Philip Roth começou a escrever O Complexo de Portnoy, o seu grande livro da mãe judia, ele insere-se num contexto cultural repleto de piadas sobre mães judias. E ele então decide explorar isso e elevá-lo à potência máxima. E depois teve de passar o resto da vida a explicar que a mãe dele não era bem assim. Mas ele está como que a brincar com este contexto. E muito mais tarde, quando escreveu A Conspiração Contra a América, fez um belíssimo retrato da mãe e completamente diferente. Mas Philip Roth era um escritor cómico brilhante e o que ele disse foi: “Eu sei que as pessoas gostam de piadas sobre mães judias e vou escrever a melhor de sempre.”

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"Philip Roth era um escritor cómico brilhante e o que ele disse foi: 'Eu sei que as pessoas gostam de piadas sobre mães judias e vou escrever a melhor de sempre'”

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E é a prova de que o humor judaico não se esgota nos humoristas. O próprio Philip Roth disse, e o Jeremy menciona-o no livro, que o humorista de stand-up que mais o inspirava era Franz Kafka, que também é um escritor cómico.
É verdade e isso leva-nos à questão de saber onde é que a literatura judaica e a literatura global se cruzam. Quando se lê os diários de Kafka e o que foi publicado por Max Brod após a morte de Kafka, pensa-se que está ali alguém que se dedicou muito a pensar sobre a identidade judaica. Mas quando se lê aquilo que foi publicado em vida, se calhar não dá para perceber que era judeu. E eu, sobretudo no último capítulo do livro, também tentei perceber isso, o que há de judaico no humor que à partida e na superfície não parece muito judaico ou pelo menos não tem um identificador muito explícito como aquele do sermão das Grandes Festas.

E quando vemos uma série como Seinfeld, é normal questionarmo-nos se ele é demasiado judeu ou se é muito pouco judeu?
É exatamente isso. Há muitos estudos sobre isso, que não são meus, mas se falasse com um americano normal na altura em que a série estava a ser transmitida e lhe perguntasse se aquela era uma série judaica, ele diria: “Nem por isso.” Era uma série de Nova Iorque, acerca de uns nova-iorquinos malucos.

Mas isso quer dizer que a identidade judaica se diluiu, se tornou mais parecida com o que a rodeia, ou foi o mundo que a rodeia que se tornou um bocadinho mais judaico?
Vou-me repetir: depende. É verdade que houve uma certa aculturação dos judeus americanos, mas depois há o sentido daquele número muito famoso, pelo menos na América, do humorista Lenny Bruce, em que ele mostrava coisas que eram claramente judaicas e coisas que eram gentias. Por exemplo, a mostarda era judaica e a maionese era gentia. Por um lado, é isto, por outro, sim, percebo o que quero dizer, há toda uma identidade judaica que não se baseia na observância religiosa, em passar muito tempo com a comunidade judaica ou em garantir que se usa mostarda em vez de maionese. Pode-se argumentar que houve uma diluição, mas o que houve sem dúvida foi uma mudança.

"Quando Philip Roth começou a escrever O Complexo de Portnoy, o seu grande livro da mãe judia, ele insere-se num contexto cultural repleto de piadas sobre mães judias. E ele então decide explorar isso e elevá-lo à potência máxima. E depois teve de passar o resto da vida a explicar que a mãe dele não era bem assim."

Uma dessas mudanças é a natureza cada vez menos religiosa não só do humor judaico mas da sociedade. Essa foi uma das maiores mudanças até para a identidade judaica?
Isso certamente aconteceu com muitos judeus por todo o mundo. E também no humor feito por judeus e que teve um impacto global. Mas ainda há muitos judeus devotos por todo o mundo e há muitas coisas engraçadas e que às vezes só têm piada no seio da própria comunidade. Mas se falarmos daquele tipo de humor a que os nossos leitores, deste livro e desta entrevista, estão habituados, é um tipo de humor que quase de certeza não se centra nessas questões religiosas.

Para onde vai o humor judaico a partir daqui? Quem é que atualmente são os porta-estandartes do humor judaico?
É uma boa pergunta. Um dos grupos interessantes que nasceu na América neste século é aquele grupo que anda mais ou menos ali à volta de Judd Apatow. Gente como Seth Rogen, Adam Sandler, e por aí fora. E uma das coisas que acho interessante acerca deste círculo é que são pessoas que na sua maior parte não passam muito tempo – e acho que é correto dizê-lo – na comunidade judaica. Não têm aquele tipo de devoção tradicional que os judeus de há uns séculos tinham. E também não me parece, embora não os conheça, que sejam conhecedores profundos da cultura e da literatura judaicas. Porém, há algo essencial na identidade judaica de um Adam Sandler que ainda no ano passado lançou um filme intitulado Nem Penses que te Vou Convidar para o Meu Bat Mitzvah, um filme que achei adorável, achei fantástico. Não é um filme que esteja completamente imerso na cultura judaica, mas que leva muito a sério o tema do que é ser um judeu na América. Tenho alguma curiosidade para ver como é que eles vão lidar com estas questões daqui para a frente, mas as previsões, sobretudo as do futuro, são complicadas.

Para terminar esta entrevista pedia-lhe que contasse a anedota judaica perfeita. Conhece alguma?
Então tenho aqui uma que é daquelas que nos deixa a pensar se isto é ou não uma anedota judaica. Está um velho casal de judeus a dormir no quarto e a mulher diz ao marido: “Não te importas de fechar a janela que está frio lá fora?” E o marido responde: “Se eu fechar a janela, vai ficar mais quente lá fora?”.

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