Uma das maiores surpresas durante “Vingadores: A Era de Ultron” surge através de um insuspeito Clint Barton/Hawkeye, o Vingador menos Vingador deles todos: é o tipo do arco e flecha, aquele que parece ali meio banalizado por um gigante verde, um homem de ferro, um deus, uma astuta Viúva Negra e um tipo que se chama Capitão América. É, por definição, o tipo engraçado, o saco de pancada que ninguém quer assumir, o homem com um talento que, afinal, só quer estar lá para a sua família. Essa é a surpresa, e o grande segredo de Hawkeye, em “A Era de Ultron”: tem uma família.
Um pormenor que interessa menos na banda desenhada, mais no universo cinematográfico, ainda por cima quando interpretado por alguém como Jeremy Renner. Renner tem um daqueles rostos de “um tipo como nós”. Isto é, não parece ator, tem o rosto de um tipo que está mais preocupado em se libertar dos afazeres da casa para ir para o cantinho entusiasmar-se no seu hobby muito pessoal. É uma característica que lhe tem sido muito útil enquanto Hawkeye e que também tem estado presente em diferentes momentos na sua carreira.
Deu nas vistas, para alguns, com uma personagem que voltou a ser assunto no ano passado, o assassino em série Jeffrey Dahmer. “Dahmer” (2002), de David Jacobson, teve um circuito de filme independente algo interessante e, apesar de ter caído no esquecimento, tirou Renner de uma série de papéis menores na televisão e deu-lhe oportunidade para entrar noutra liga. O período pré-Vingadores é o momento mais respeitado e respeitável da sua carreira. Tem bons papéis em “North Country – Terra Fria” (2005), de Niki Caro, e “O Assassínio de Jesse James Pelo Cobarde Robert Ford” (2007), de Andrew Dominik. É o protagonista de “28 Semanas Depois” (2007), de Juan Carlos Fresnadillo, sequela generosa e, por vezes, esquecida de “28 Dias Depois”.
Até que Kathryn Bigelow o chama para protagonizar “Estado de Guerra” (2008), vencedor de Oscar de Melhor Filme em 2010. Renner, que foi nomeado para Melhor Ator (perdeu para Jeff Bridges), interpreta um sargento que lidera uma equipa de minas e armadilhas. Uma personagem selvagem naquele contexto, um homem tomado pelo instinto e por práticas menos usuais – e seguras – no seu trabalho. Seria fácil antipatizar com ele senão fosse interpretado por Jeremy Renner, que com um jeito terreno coloca o espectador do seu lado e a participar no peso das decisões. Em “Estado de Guerra” contracena com um futuro companheiro Vingador, Anthony Mackie, o Falcon e o próximo Capitão América.
“A Cidade” (2010), de Ben Affleck, valeu-lhe a segunda nomeação para um Oscar (Melhor Ator Secundário) e, a partir daqui, entrou na liga dos grandes blockbusters. Juntou-se à equipa de Ethan Hunt (Tom Cruise) nos “Missão Impossível: Operação Fantasma” (2011) e “Nação Secreta” (2015). Deu uso ao que aprendeu aqui para reanimar Jason Bourne, com uma nova personagem em “O Legado de Bourne” (2012), de Tony Gilroy. Não pegou, era difícil de apagar a imagem de Matt Damon no papel (que regressou a ele, com “Jason Bourne”, em 2016).
A década é muito dominada pelos filmes do Universo Cinematográfico da Marvel [UCM] (o primeiro “Vingadores” é de 2012), mas nem por isso Renner deixou de tentar outras coisas. Há os muito recomendáveis “Matem o Mensageiro” (2014), de Michael Cuesta, e “O Primeiro Encontro” (2016), de Denis Villeneuve, bem como a comédia “Jogo da Apanhada” (2018), de Jeff Tomsic, que vale a pena ver só pelo absurdo que é.
Nos filmes do UCM nunca saltou para o papel principal, ou seja, nunca teve direito a um filme só seu. Hawkeye é uma personagem terrena naquele contexto, de certa forma é o contacto mais humano que existe com o espectador no meio daqueles super-heróis. Estar em segundo plano, contudo, não lhe tira presença: por alguma razão aquele momento de “A Era de Ultron” é tão marcante.
No outono de 2021 surgiu finalmente algo no contexto do UCM com o seu nome. Os seis episódios de “Hawkeye” são a história de Natal possível para Clint Barton. Ele, um homem de família, que só quer passar o Natal com a família, vê-se desviado de uma forma muito clássica para ir ajudar uma nova arqueira, Kate Bishop (Hailee Steinfeld), uma jovem fascinada com Hawkeye que decide seguir as suas pisadas e se vê em maus lençóis. Clint tem de voltar a ser Hawkeye para salvar Kate, o Natal e, em simultâneo, passar o testemunho para uma nova Hawkeye. Apesar de não ser das melhores séries da Marvel no contexto Disney+, é uma história que serve o cansado-de-ser-super-herói Clint Barton.
Fala-se que será um dos Vingadores a voltar para o próximo filme, “The Kang Dynasty”, com estreia prevista para 2025. Mas até lá ainda vai algum tempo. Resta esperar que recupere e que em breve esteja pronto para regressar aos seus hobbies. Hobbies? Claro que tem hobbies. Quando não está a ser um de nós num papel que nunca seria para um de nós, Jeremy Renner entretém-se com a música: toca guitarra, teclas e bateria. Tem dado uso a esse talento em algumas das bandas-sonoras de filmes em que encontrou, como “Terra Fria” ou “O Assassínio de Jesse James Pelo Cobarde Robert Ford”. Em plena pandemia editou dois mini-álbuns, “The Medicine” e “Live For Now”.