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Detalhe da "Representação do Presépio", de Josefa de Óbidos, 1669 (Museu Nacional de Arte Antiga)

Detalhe da "Representação do Presépio", de Josefa de Óbidos, 1669 (Museu Nacional de Arte Antiga)

Jesus não nasceu sempre da mesma maneira: uma história da representação da Natividade

A representação do nascimento de Cristo ao longo da História da Arte é um espelho das várias doutrinas teológicas que o Cristianismo foi adotando e que os artistas seguiram ou contradisseram.

Giotto, Fra Angelico, Piero della Francesca, Botticelli, Leonardo da Vinci, Caravaggio, Rubens, Rembrandt, El Greco, o nosso Domingos Sequeira ou a enorme Paula Rego, só para falar de nomes perfeitamente consolidados, foram alguns dos que viram no nascimento de Jesus Cristo matéria de primeira ordem como objeto do seu trabalho. Na verdade, na História da Arte poucos foram os grandes protagonistas que não se debruçaram com aturada atenção sobre a representação da Natividade na sua obra artística. Aquela que é considerada a história fundadora do Cristianismo será talvez a mais reproduzida, interpretada, revelada, mostrada e simbolizada de todos os tempos, atravessando séculos, discursos teológicos, movimentos, oscilações míticas e históricas.

Por base, as descrições sumárias dos Evangelhos Canónicos de Lucas e Mateus, mas também as mais rebuscadas narrações dos Evangelhos Apócrifos, como o Proto-Evangelho de S. Tiago, o Evangelho de Pseudo-Tomé,  ou o Evangelho do Pseudo-Mateus, o Evangelho Árabe da Infância e ainda outros textos fixados na Idade Média, como a célebre “Legenda Dourada”, de Jacques Voragine, ou de Varezzo, na versão italiana, responsável pelo acrescento de inúmeros pormenores picarescos ao quadro inicialmente muito mais simplificado da Virgem Maria, São José e o Menino.

O nascimento de Jesus, que não por acaso marca a contagem do tempo até hoje, foi o acontecimento que mudou a conceção do mundo através do olhar das religiões que definiram o Ocidente, tanto o Cristianismo como o Judaísmo, com toda a carga simbólica que cada figura, objeto, animal, material, cor, ou traço possui. E a forma como foi representado presta ainda hoje a análise interpretativa de cada momento à evolução do Homem perante a espiritualidade. A narrativa foi sendo alterada, atualizada e moldada, surgindo assim diferentes versões da mesma história, tal como ainda hoje cada episódio histórico será olhado entre aquilo que foi o seu presente, passou a ser o seu passado e será o seu futuro.

"A Adoração dos Magos", de Domingos Sequeira, 1828 (Museu Nacional de Arte Antiga)

A primeira representação pictórica da Natividade data de 354 e mostra o Menino envolto em simples roupagens, deitado entre palhas. Está inscrita na pedra nos sarcófagos de Roma. Na mesma altura, a Adoração dos Magos também é reproduzida pelos cristãos primitivos nas catacumbas de Roma. Mas é no mundo bizantino que a temática da Natividade se estabelece como um nascimento tal como os homens o entendem. Ainda sem o seu caráter divino estampado na representação artística, a Virgem assume o papel de uma mãe mais humana que depois do parto se apresenta cansada e dorida, surgindo deitada ou inclinada num leito. A seu lado, aparece então Jesus completamente envolto em faixas de pano branco, deixando a descoberto só o rosto, como, de resto, era prática comum na Palestina. As faixas de pano aludiam ainda a necessidades básicas de uma criança quando nasce, desde o ser limpa do sangue, e o banho do Menino era um dos quadros secundários das cenas da Natividade bizantinas, como da própria existência de um suposto cordão umbilical que só seria real num parto uterino, o que vem a desaparecer completamente da iconografia posterior aos séculos XV e XVI, onde Jesus já aparece sem roupa, limpo, simbolizando o parto divino.

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Na mesma ordem de ideias, as duas parteiras, Salomé e Zelomi, presentes nas representações bizantinas mas também mais tardias, vão progressivamente sendo eliminadas dos quadros alusivos à Natividade. Elas que foram responsáveis por algumas das mais interessantes cenas iconográficas do nascimento de Jesus, demonstrando a incredulidade no milagre. Reza a história nos Evangelhos Apócrifos que uma das parteiras acredita de imediato no mistério de Cristo, mas a outra duvida e pede para examinar Maria a ponto de se certificar se realmente permanece virgem depois de dar à luz. Ao colocar o dedo no corpo da Nossa Senhora, a mão fica imediatamente queimada, e só ao tocar na faixa que envolve o Menino volta a curar-se. É então que acredita. Muitos veem aqui a premonição do episódio de São Tomé, ver para crer, mas também existe a comparação com os dois bandidos que ladeiam Cristo na cruz já no quadro da Paixão, aquele que acredita e se arrepende, e aquele que não o faz.

O cobre de Josefa de Óbidos, “o único exemplar no mundo que conheço a nível plástico em que se ilustram as ciganas egípcias”, como explica Joaquim Caetano, diretor do MNAA, não foi comprado por Portugal em leilão, mas sim pelo Museu de Detroit, por cerca de um milhão de dólares.

Estas representações faziam ainda alusão a um São José bastante distante da figura paternal que veio a assumir no final do século XVI, início do século XVII. Mostrado como um velho, alusão ao ancião do templo a quem cabe proteger a Virgem que vai dar à luz o Salvador, o São José começa por ser menorizado em termos de relevância na história do nascimento de Jesus com o intuito de tornar bem claro que Cristo não é seu filho. Até a própria candeia, lamparina ou vela que carrega para alumiar a gruta onde se encontram no momento do parto quase não dá luz nas representações iconográficas existentes até então por oposição à luz que emana do Menino, essa sim verdadeiramente intensa. É só no século XVII, em que a literatura das carmelitas em geral, e de Santa Teresa d’Ávila em particular, vai pôr a tónica na importância da sua figura enquanto aquele que foi escolhido por Deus para educar Cristo, que ele passa a estar não só mais presente na cena da Natividade, como se torna muito mais novo e viril.

Descendente da ideologia anterior que aqui descrevemos, uma representação do presépio de Josefa de Óbidos, datada de 1669, presente no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), dá bem conta da diferença entre as narrativas dedicadas a São José. A mesma artista portuguesa, num pequeníssimo cobre, exposto há cerca de dois anos na mesma instituição museológica, representava a cena raríssima das ciganas egípcias a lerem a sina ao menino Jesus, no quadro que habitualmente fazia parte da história da Natividade na tradição poética e teatral, quer portuguesa, quer espanhola, a que se chamou vilancicos – pequenas representações cantadas e mesmo bailadas –, que terminava com o repouso da sagrada família na Fuga para o Egito. Lamentavelmente, mas como sempre tem sido prática comum ao Estado português, esse cobre de Josefa de Óbidos, “o único exemplar no mundo que conheço a nível plástico em que se ilustram as ciganas egípcias”, como explica Joaquim Caetano, diretor do MNAA, não foi comprado por Portugal em leilão, mas sim pelo Museu de Detroit, por cerca de um milhão de dólares.

"Adoração dos Magos", de Sandro Botticelli, 1476 (Uffizi)

A criação de inúmeras cenas picarescas, que davam mais interesse à representação, surge em grande escala a partir do século XIII, depois da história do presépio, atribuída a São Francisco de Assis através da construção viva do nascimento de Jesus nos conventos franciscanos, ser uma realidade na idealização de um teatro litúrgico que se fazia à porta das catedrais, e mesmo no seu interior, e que chega aos nossos dias. É nesse contexto teatral, mas também poético e de tradição oral, que a Natividade se vai complexificando e mais se exemplifica na expressão plástica em todos os territórios do Ocidente.

O ciclo mais comum da Natividade assentava então na Anunciação, na Adoração dos Magos, não esqueçamos que essa primeira epifania, ou seja a revelação da divindade de Cristo aos Magos, reconhecendo os poderes da terra o poder universal de Jesus, surge logo no princípio da narrativa religiosa e da sua representação pictórica, e só depois também na Adoração dos Pastores, que só em meados do século XV passa de cena secundária a cena principal do presépio.

É nos retábulos das catedrais nacionais, uma vez que as catedrais portuguesas eram sem exceção dedicadas à Virgem Maria, que a Natividade maior expressão tem entre a arte existente no nosso país. Exemplos importantes dessa liturgia pictórica são o Retábulo da Madre de Deus, o Retábulo do Conventinho de Valverde, o Retábulo de Santos.

O ponto de viragem acontece com a criação do importantíssimo retábulo que Hugo van der Goes faz para Florença, mais especificamente para a capela dos Portinari, em que surge a estrela que sinaliza o nascimento de Jesus e o anjo que o vai anunciar aos pastores e com isso todo o ambiente pastoril associado à posterior Adoração dos Pastores e que inclui cenas tão díspares e profanas como os homens na taberna a jogar às cartas e a beber, a matança do porco, o recolher do leite de vacas ou cabras, que se juntam aos quadros bíblicos já descritos a que podemos ainda acrescentar a Matança dos Inocentes, por exemplo. “Há até uma frase muito engraçada do Erwin Panofsky, o grande historiador da iconografia do século XX, que diz que os primeiros a verem os pastores representados no presépio devem ter tido a mesma sensação de estranheza do que os ouvintes do Beethoven a ouvirem o ‘Hino à Alegria’ no meio de uma sinfonia”, conta Joaquim Caetano.

Já no que diz respeito estritamente à arte portuguesa, e ao contrário do que sucede com a pintura italiana ou mesmo dos Países Baixos, são os presépios escultóricos que mais exploram o que Machado de Castro denomina “escultura de género”, termo que por associação ao que internacionalmente se classificou como “pintura de género”, vai desenvolver a representação das cenas da vida quotidiana, cenas da vida comum, ou cenas da vida do povo, inexistentes na pintura portuguesa até praticamente ao aparecimento do romantismo já no século XIX, e que, esse sim, se compõe de um olhar sobre o povo. “Previamente a isso, o presépio português dá-nos uma imagem de representação, de vestuário, de tipos, de jogos, de adereços, ligados aos tipos populares, os tocadores de flauta com a cabaça à tiracolo, os tocadores de sanfona, etc., etc.”, adianta ainda Joaquim Caetano.

"A Natividade", Giotto, 1306

De resto, é nos retábulos das catedrais nacionais, uma vez que as catedrais portuguesas eram sem exceção dedicadas à Virgem Maria, que a Natividade maior expressão tem entre a arte existente no nosso país. Exemplos importantes dessa liturgia pictórica são o Retábulo da Madre de Deus, o Retábulo do Conventinho de Valverde, o Retábulo de Santos. Todos eles de uma forma geral “chegam muito cedo a uma espécie de codificação tipo das figurações, em que há sempre uma fiada de pinturas dedicadas ao ciclo da Natividade e outra fiada de pinturas dedicada ao ciclo da Paixão. E, a partir da segunda metade do século XVI, a criação dual da Adoração dos Pastores, de um lado, e do outro, a Adoração dos Magos, sempre separadamente. De um lado os populares, do outro os grandes poderes da terra”.

Já a nível internacional, a mesma complexificação da representação da Natividade espelha uma preocupação teológica de juntar elementos à cena inicial que tornem didática toda a explicação do mistério do Cristianismo. Na pintura espanhola, por exemplo, há uma espécie de pré-figuração da Paixão, consubstanciada na presença de anjos que mostram logo ao Menino a sua cruz e tudo o que vai acontecer ao longo da sua vida na terra. De resto, já anteriormente a envolvência de Jesus em panos tinha sido interpretada como uma antevisão da mortalha que o vai envolver depois da descida da cruz. Mais uma vez, os dois ciclos, da Natividade e da Paixão, tornam-se essenciais nas representações plásticas espalhadas pelo mundo e que têm como autores os mais significativos nomes da História da Arte, como os mais anónimos dos autores amadores.

“É uma representação quase etnográfica do povo”, diz Joaquim Caetano. “Um escultor, um presepista ou um pintor pode acrescentar três, quatro, cinco cenas, tem uma liberdade para construir e para tornar mais rica essa representação, ou mesmo torná-la mais pobre a dada altura se quiser. Mas não pode nunca variar naquilo que à representação religiosa diz respeito, onde todas as personagens são codificadas."

É aquilo que podemos descrever como os mistérios da Virgem. Se por um lado a Virgem com o Menino se apresenta cada vez mais terna, passando de uma representação em majestade para uma representação cada vez mais humana, em que o menino pode até surgir a amamentar-se diretamente do seu seio, e a que se designou chamar a Virgem da Humildade, por outro, a Virgem Mãe vai surgir depois do Calvário como a pietà com o filho nos braços, numa imagem dolorosa e cada vez mais sofredora. Em suma, os mistérios gozosos e os mistérios dolorosos.

“É uma iconografia sempre complicada e que fornece este tipo de imagens extremamente amáveis, extremamente piedosas, que no fundo são a representação de uma mãe e de um filho, e que depois tornam ainda mais dramático esse final em que a mãe recebe o filho morto. São as chamadas dores da Virgem”, explica o diretor do MNAA, onde o Retábulo da Madre de Deus, encomendado ao pintor régio de D. Manuel, Jorge Afonso, em 1515, pode bem ser apreciado. E já agora, toma a si o primado da tal aparição do povo e dos pastores como figuras principais do presépio, numa ligação óbvia à escritura do “Auto Pastoril Castelhano”, assinado por Gil Vicente precisamente para a mesma corte, da qual D. Leonor se destacava já como patrona das artes e do próprio Convento da Madre de Deus.

Três momentos do "Ciclo da Vida da Virgem Maria", Paula Rego, 2002 (capela do Palácio de Belém)

Se pensarmos e refletirmos com alguma atenção sobre o caminho que a representação da Natividade percorreu ao longo dos séculos, conseguiremos traçar uma linha muito clara e quase nada turbulenta no que respeita à evolução das figuras aí representadas e das associações a que estão sujeitas, retirando, obviamente tudo o que à liberdade criativa e modelar de cada época diz respeito. É precisamente quando a representação popular entra na equação através dessa presença cada vez mais forte dos pastores, que entram em jogo as grandes diferenças, porque aí cada escola de pintura vai representar os seus próprios tipos populares.

“É uma representação quase etnográfica do povo”, diz Joaquim Caetano. “Um escultor, um presepista ou um pintor pode acrescentar três, quatro, cinco cenas, tem uma liberdade para construir e para tornar mais rica essa representação, ou mesmo torná-la mais pobre a dada altura se quiser. Mas não pode nunca variar naquilo que à representação religiosa diz respeito, onde todas as personagens são codificadas. Não pode meter quantos Reis Magos quiser, São José só pode pôr um, a Virgem só pode estar uma.” A história ensinou-nos, no entanto, que essas figuras codificadas tomaram a forma, muitas vezes, de quem os seus autores quiseram, desde a família Medici representada por Botticelli nos seus Reis Magos, até à substituição de Baltasar, o tradicional rei negro ou rei da Índia, por um rei índio brasileiro na Adoração dos Magos do Retábulo da Sé de Viseu, atualmente no Museu Grão Vasco, que D. Diego Ortiz de Villegas, então bispo de Viseu, tão bem quis ver representado numa homenagem à Descoberta do Brasil. Quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto.

Ouça aqui o podcast “A História do Dia” sobre como nasceu o Natal.

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