Foi um misto de mea culpa por não ter acompanhado devidamente o processo e uma promessa de fazer melhor no futuro. Após três dias com parte do país mergulhado na polémica em torno do custo avultado do palco de 4,2 milhões de euros que vai ser construído no Parque Tejo-Trancão para o Papa Francisco presidir às celebrações finais da Jornada Mundial da Juventude (que se realiza em agosto deste ano em Lisboa), o representante da Igreja Católica responsável pela organização do evento, o bispo auxiliar de Lisboa quebrou esta quinta-feira o silêncio sobre a controvérsia.
D. Américo Aguiar reconheceu que a Igreja não acompanhou com proximidade o processo de consulta ao mercado e de adjudicação da obra pela Câmara de Lisboa, prometeu fazê-lo com mais empenho nas próximas obras (como o palco do Parque Eduardo VII), revelou que só soube do valor do palco através da notícia do Observador da última segunda-feira e admitiu que o preço da estrutura o “magoou”.
Numa conferência de imprensa marcada com duas horas e meia de antecedência, e pouco depois de aterrar em Lisboa após uma viagem de vários dias ao Panamá que o impediu de reagir antes, D. Américo Aguiar garantiu que a Igreja conhece as “dificuldades” que as famílias portuguesas atravessam neste momento e assumiu que os 4,2 milhões que o palco vai custar podem ser difíceis de compreender. Por esse motivo, revelou também, o bispo já se desdobrou em contactos com o Presidente da República, o presidente da Câmara de Lisboa e a ministra Ana Catarina Mendes (que representa o Governo na organização) para que seja marcada, para os próximos dias, uma reunião com todos os envolvidos na obra. O objetivo desse encontro será o de procurar formas de reduzir o custo do palco — e D. Américo Aguiar garantiu que todos os aspetos que a Igreja considerar não essenciais deverão sair da obra.
Ainda assim, D. Américo Aguiar disse que não viu nas palavras recentes de Carlos Moedas — que disse que a autarquia estava apenas a dar resposta, com aquele palco de 4,2 milhões de euros, a um conjunto de requisitos apresentados pela Igreja — uma tentativa de “passa culpas” para a Igreja. Contudo, admitiu que os famosos requisitos de que tanto se tem falado (e que incluem a exigência de um palco com capacidade para sentar mais de 2 mil pessoas, incluindo mil bispos, celebrantes, coro, orquestra e elementos da equipa técnica) são, na verdade, uma herança de outras edições da JMJ — e garantiu que esta é uma oportunidade de olhar para esses requisitos com mais atenção, para perceber quais as exigências indispensáveis e quais aquelas de que se pode prescindir.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a polémica em torno da JMJ.
Um valor que “magoou” e uma promessa de acompanhar melhor os processos
D. Américo Aguiar entrou na sala de imprensa da sede da Fundação JMJ, no bairro do Beato, em Lisboa, poucos minutos depois das 19h. Para o bispo organizador da Jornada Mundial da Juventude, esta quinta-feira já era um dia longo: ao início da tarde, tinha aterrado no aeroporto de Lisboa após um voo transatlântico, de regresso do Panamá, onde tinha estado para uma celebração dos quatro anos da última edição da JMJ. Do aeroporto, seguira para a Assembleia Municipal de Lisboa, para uma reunião com os presidentes de junta da cidade de Lisboa sobre aspetos logísticos do evento. Por essa altura, já as solicitações dos jornalistas, que pediam explicações, eram muitas. O bispo chegou a ter uma conferência de imprensa apalavrada para sexta-feira, mas a urgência ditou uma antecipação: seria às 19h na sede da fundação.
Assim que se sentou em frente ao microfone, perante uma sala recheada de jornalistas, D. Américo Aguiar começou por se desculpar pelo “interregno” dos últimos dias e por garantir que a Igreja quer ser escrutinada no que faz. “Não desistam do escrutínio”, pediu aos jornalistas. “A nossa primeira reação a estes dias, daquilo que nos foi comunicado que aconteceu, é de agradecer. Agradecer o escrutínio, agradecer as opiniões que nos fizeram chegar”, disse ainda o bispo, sublinhando a sua vontade de que “todos os cidadãos se sintam sempre livres de se manifestar, de se pronunciar, sobre aquilo que acontece no espaço público”.
D. Américo Aguiar deixava claro que, apesar dos muitos quilómetros de distância, a polémica do palco tinha chegado ao Panamá. Mais tarde na conferência de imprensa, o bispo viria a insistir no problema da ausência física durante esta semana: “Lamentamos que isto tenha acontecido na nossa ausência no Panamá. Se calhar, se no primeiro dia, se imediatamente tivéssemos tido oportunidade de esclarecer, se calhar as coisas não tinham tomado a proporção que tomaram. Também nos obriga a tratar de forma mais profissional ainda a nossa comunicação.”
O bispo demorou vários minutos a chegar ao tópico mais quente do momento — o palco-altar —, mas na longa introdução deixou antever um tom de assunção de culpa. “Desde meados de 2019, já dissemos que temos feito o caminho de preparação da JMJ, que teve muitos percalços”, afirmou. “Este caminho vai sendo feito com todos, sempre. Somos uma estrutura não profissional, que vai recolhendo as colaborações mais diversas das mais diversas áreas. O nosso objetivo é fazer bem. Neste objetivo de fazer bem, temos tido a graça de contar sempre com uma colaboração muito estreita com a organização da JMJ do Panamá”, acrescentou, sublinhando a importância de “não repetir erros”.
Concretamente sobre a polémica do palco, e numa intervenção em que puxou o tapete ao presidente da Câmara de Lisboa, D. Américo Aguiar começou por lembrar o desafio que, em 2019, foi encontrar um espaço para colocar “um milhão de jovens” em Lisboa. O Parque Tejo, cuja requalificação era um “sonho antigo” das câmaras de Lisboa e Loures, foi a solução encontrada. “Quando se colocou a possibilidade de estes terrenos voltarem a fruição pública por parte dos cidadãos de Loures, foi uma alegria”, lembrou, sublinhando que houve várias conversas com Bernardino Soares e Fernando Medina sobre o assunto.
Contudo, D. Américo Aguiar admitiu: a ideia de requalificar um terreno de raiz com o “pretexto da JMJ”, em vez de optar por uma solução provisória (como a instalação de um palco desmontável num recinto já existente, como aconteceu em Madrid, num aeródromo), acarretava “ónus suplementares” — e a Igreja sabia-o desde o início. No entanto, a organização da JMJ ficou desde o início “conquistada” por essa escolha, porque nunca antes uma JMJ tinha deixado como legado um parque verde para uma cidade. Nas primeiras conversas, o parque verde seria o grande legado da JMJ — não o palco.
Porém, durante as negociações, as ideias evoluíram. De início, havia uma ideia “de uma estrutura que correspondesse de imediato às necessidades que são da JMJ” — os “famosos requisitos” de que Carlos Moedas falou esta semana e que eram “mais ou menos chapa-21 de Jornadas anteriores”, disse D. Américo Aguiar. “Se forem ver os palcos de Jornadas anteriores, são idênticos.”
“Entretanto, a situação evolui, e a Câmara Municipal, a meu ver bem, pensa que a estrutura pode ficar para utilização futura”, recordou o bispo, sublinhando: “Toda aquela estrutura, vai ficar, não é uma coisa provisória para desmontar na semana a seguir.” No entender do bispo, foi aí que surgiu um aumento de custos, não exigido pela Igreja, mas por opção da autarquia, uma vez que os materiais e o tipo de construção são mais complexos e caros no caso de uma estrutura permanente, por oposição a um palco provisório. D. Américo Aguiar lembrou que as três entidades responsáveis pela organização da JMJ — o Governo, as câmaras e a Fundação JMJ (a entidade jurídica criada pela Igreja para este efeito) — chegaram a um memorando de entendimento que determinou que seria a Câmara de Lisboa a ficar com a responsabilidade sobre a obra no Parque Tejo.
“A nós, cabe-nos pedir que as autoridades possam corresponder ao que nós precisamos”, sublinhou D. Américo Aguiar, lembrando que “quando o cardeal patriarca de Lisboa falou com o Presidente da República, com o primeiro-ministro, com o presidente da Câmara Municipal de Lisboa e com o presidente da Assembleia da República, todos os representantes do Estado manifestaram todo o apoio, toda a disponibilidade” para ajudar nos investimentos associados à candidatura. “O nosso papel é pedir às autoridades que nos correspondam a requisitos, àquilo que temos de providenciar.”
“O palco pode ser retangular, curvo, mais alto ou mais baixo. Isso não nos preocupa. A nossa preocupação é que corresponda aos requisitos daquilo que vai acontecer lá”, sublinhou. “Neste processo, foi-se chegando a um desenho. Essa proposta foi entretanto trabalhada junto das autoridades da Santa Sé, que não validou 100% ainda. Genericamente, a estrutura corresponde àquilo que são os requisitos para que aconteçam as coisas em segurança.”
Mas, segundo D. Américo Aguiar, todo este processo foi feito sem que a Igreja estivesse ao corrente dos detalhes financeiros do projeto: apenas validou com a Santa Sé o cumprimento dos requisitos, mas não sabia o custo da obra. O bispo diz até que só soube do valor do palco quando o Observador noticiou que o contrato público já tinha sido divulgado no Portal Base e que o custo se cifrava nos 4,2 milhões de euros.
“Aquilo que significou o anúncio há dias do ajuste direto da obra do palco do Parque Tejo, confesso também, que o número me magoou. Magoou-me a mim, magoou o Duarte [Ricciardi, secretário executivo da organização da JMJ], magoou-nos a todos. Vivemos um tempo em que todos vivemos as dificuldades. A Igreja vive o dia-a-dia das dificuldades das famílias”, disse o bispo, que anunciou que já tinha contactado todas as autoridades públicas, incluindo o Governo e a Câmara de Lisboa, mas também o Presidente da República, para uma reunião nos próximos dias. Será, disse, “para nos sentarmos todos e vermos, com um microscópio, qual a razão deste valor”.
“Se nas parcelas estiverem coisas que são do nosso pedido que possam ser eliminadas por não serem essenciais, da nossa parte pediremos para tirar”, disse ainda o bispo, sublinhando que o Papa Francisco tem feito um pedido concreto para que se faça uma reflexão aprofundada sobre a realidade económica das sociedades contemporâneas. Perante as perguntas dos jornalistas sobre quais os aspetos que podem ser retirados do palco para baixar o custo, D. Américo Aguiar afirmou: “Não sou empreiteiro e também não sou o dono da obra. O que conversei com o presidente da câmara é que no mínimo é nossa obrigação sentarmo-nos com o autor do projeto, com a SRU, e vermos porque é que custa 4,2 milhões. E, de tudo o que ali está, o que é que, da nossa responsabilidade, possa ser eliminado.”
Na conferência de imprensa, D. Américo Aguiar identificou aquele que foi o maior problema da ação da Igreja neste caso: a falta de acompanhamento do processo. “Não soube [o valor], não tinha que saber, mas gostava de saber”, disse, sublinhando o respeito pela autonomia dos processos de contratação pública. Mas garantiu que aprendeu a lição e que, hoje, a Igreja faria diferente e acompanharia o processo de consulta ao mercado e contratação pública. “Hoje não teríamos feito como fizemos. Não acompanhámos esse processo. Hoje entendemos que devemos acompanhar os processos”, disse, sugerindo que a Câmara de Lisboa chegou a um palco tão caro, em parte, porque a Igreja não forçou uma moderação dos gastos durante a fase de projeto.
E a Igreja terá, dentro de pouco tempo, oportunidade para emendar a mão: o palco-altar do Parque Eduardo VII, que será o segundo recinto mais importante do evento (acolhendo os momentos de abertura e a Via-Sacra), será construído na sequência de um concurso público que ainda não foi lançado. Questionado sobre esse assunto, D. Américo Aguiar foi taxativo: “Cometer erros novos é humano, repetir erros é burrice.”
Os requisitos, afinal, não são assim tão indispensáveis
No centro do debate na conferência de imprensa estiveram os célebres requisitos do palco, que a Câmara de Lisboa usou esta semana como grande argumento para a conceção de um palco tão caro. Entre esses requisitos, encontra-se uma capacidade mínima do palco para 2 mil pessoas (mil bispos, 300 concelebrantes, 200 elementos do coro, 30 elementos da língua gestual, 90 elementos da orquestra, convidados, staff e equipa técnica), a visibilidade do palco para a maioria dos peregrinos (que motivou a elevação do palco a nove metros), dois elevadores, uma escadaria central e uma área de 5 mil metros quadrados.
Questionado sobre se tinha visto as declarações de Carlos Moedas como um passa culpa para a Igreja, D. Américo Aguiar salientou que não: “Não tenho lido negativamente aquilo que foram os pronunciamentos do engenheiro Carlos Moedas.” Mas o bispo foi mais longe e sublinhou que os requisitos não são propriamente imposições, mas hábitos herdados de outras edições da JMJ.
“Os requisitos têm várias fontes: o Manel passou para mim e eu passei para o José [uma referência aos documentos que têm passado entre as organizações de diferentes edições da JMJ]. Têm o memorando, que foi assinado entre o dicastério e o patriarcado de Lisboa, que é mais genérico. E têm aquilo que é a prática das Jornadas, que temos tido a colaboração permanente do Panamá”, explicou, reiterando que não se trata de imposições, mas de elementos a que é preciso dar resposta num quadro de condições de segurança avaliado pelas autoridades civis.
No entanto, D. Américo Aguiar reconheceu que este debate é uma “oportunidade muito boa de irmos à raiz” e de compreender o que é e o que não é indispensável. Por esse motivo, a lista de requisitos será um dos documentos em cima da mesa na reunião em que será debatida a possibilidade de reduzir os custos do palco.
Igreja com investimento acima dos 80 milhões — e “esmagada” pelos grandes números
O bispo auxiliar de Lisboa foi também questionado sobre qual a parte que a Igreja Católica vai investir na organização do evento e admitiu que, ao contrário das entidades públicas, a parte da Igreja ainda não revelou a totalidade das suas contas. No entanto, disse que nos próximos dias a Fundação JMJ estará em condições de o fazer e até deu um exemplo concreto: só a alimentação dos peregrinos custará cerca de 30 milhões de euros.
D. Américo Aguiar também revelou, por alto, que o orçamento da Igreja Católica no evento — que será suportado pelo pagamento dos peregrinos e pelos donativos de muitas empresas e mecenas privados — deverá ultrapassar os 80 milhões de euros.
Ainda assim, o bispo garantiu que a JMJ não vai “desbaratar um cêntimo”, assegurou que o investimento na JMJ não coloca em causa o trabalho da Igreja na ação social e até revelou que a fundação firmou uma parceria com o ISEG para “um estudo do que é o retorno da JMJ para a economia portuguesa”.
O bispo auxiliar de Lisboa, que é o rosto da Igreja Católica na organização da JMJ, assumiu que uma das grandes dificuldades da Igreja em todo o processo tem sido a comunicação do evento — especialmente visível na dificuldade em transmitir à população portuguesa a dimensão da Jornada Mundial da Juventude, que explica parte dos números milionários no financiamento.
Destacando que a organização tem a missão de, “durante essa semana, proporcionar aos jovens uma experiência que seja pastoralmente importante”, o bispo sublinhou que cabe à organização preparar “50 ou 100 palcos, espalhados pela cidade de Lisboa e pelos municípios aqui à volta”, para que os jovens de todo o mundo possam apresentar concertos, espetáculos e partilhar a sua cultura. “Toda essa responsabilidade é nossa, da organização”, disse.
“É esta grandeza de números que nos tem esmagado. Sempre que pensamos em organizar alguma coisa, temos a dimensão da nossa paróquia, diocese, cidade, o Santuário de Fátima”, acrescentou ainda. “Até à data não fomos capazes de traduzir, de conquistar, de positivamente partilhar com todos esta grandeza, esta dimensão.”
Marcelo sugere que altar-palco deve ser mais comedido. “Papa é contrário ao que é espaventoso”
“Nenhum de nós se sentiu preparado para organizar uma JMJ. Penso que aí está uma das nossas falhas na nossa relação com os portugueses em geral”, salientou D. Américo Aguiar. “Nunca no nosso país tivemos um acontecimento como vai ser a JMJ. Nem juntando Web Summits, nem festivais de verão. Nada disso tem comparação com aquilo que é a JMJ, na sua dimensão, na sua escala e nas suas exigências logísticas.”
Depois de o Observador ter avançado, no início da semana, que a Câmara de Lisboa adjudicou a construção do palco, no Parque Tejo-Trancão, por 4,2 milhões de euros, têm-se multiplicado as reações a esta empreitada. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse que queria saber mais sobre a “intervenção das entidades públicas” na Jornada Mundial da Juventude. Marcelo também salientou que pretende perceber a “razão de ser” dos 4,2 milhões que custa altar-palco. Já Carlos Moedas, o presidente da Câmara de Lisboa, garantiu que foi a Igreja Católica a responsável pelos requisitos técnicos do palco — e afirmou ainda que o palco, no futuro, será usado para vários eventos.