O Bloco de Esquerda foi um dos partidos que levou as manifestações dos professores até ao debate com o primeiro-ministro na Assembleia da República. Para a deputada Joana Mortágua, “o PS tem atacado os professores” e começou a fazê-lo apenas “depois de ter tido um Governo de maioria absoluta”.
Com elogios aos “passos que foram dados” durante o acordo entre as esquerdas, Joana Mortágua também diz que António Costa “não fez mais do que cumprir a lei” no descongelamento das carreiras e critica a direita por ter recuado na recuperação do tempo de serviço.
Sobre o Bloco de Esquerda, entende que “o eleitorado não está zangado” com o partido que até “atravessa uma fase boa” e reforça a confiança na liderança de Catarina Martins.
[Ouça aqui o Sofá do Parlamento com a deputada Joana Mortágua]
Vamos já ao assunto da educação, queria primeiro “fechar” o debate com o primeiro ministro que decorreu esta quarta-feira. Com a promessa de que vão reavaliar o beneficio dado pela ex-secretária de estado do Turismo à World Of Wine, estão encerrados os casos que envolvem o governo?
Não crei. O Bloco de Esquerda propôs uma comissão de inquérito sobre a TAP e esse é um dos casos que não está encerrado. O objetivo é perceber não só a parte mais visível do escândalo, que é a indemnização a Alexandra Reis, mas que espero que ajude a eliminar a prática dos paraquedas dourados que são as administrações, que oferecem acordos milionários sem ligar à condição económica das empresas e que com isso criam um regime de desigualdade para com os trabalhadores. Ainda há casos por esclarecer, que têm uma dimensão e um impacto político, ao contrário do que o primeiro-ministro diz. Estes acontecimentos têm impacto na vida dos portugueses. Na visão que os portugueses têm da democracia, do Governo e são um sintoma de uma maioria absoluta desgastada e incapaz de oferecer a tão prometida estabilidade. Quanto ao despacho, apesar da recusa do primeiro-ministro em revogá-lo, entendemos que tem que ser todo revisto.
Vamos ao caso da educação. O ministério pediu um parecer sobre a greve do STOP e do SIPE. São greves parciais por tempo indeterminado. O Bloco reconhece esta forma de luta dos professores? O novo sindicalismo
Não é a primeira vez que o Governo e os sindicatos se desentendem quanto à forma jurídica das greves. O que tem discussão jurídica deve seguir o seu rumo, sempre tendo em conta o direito à greve. A nós interessa-nos mais discutir porque razão é que todos os sindicatos estão em pé de guerra com o Governo e como é que isso está a reanimar uma luta dos professores que não víamos desde a grande manifestação contra a ministra Maria de Lurdes Rodrigues. A juntar-se à luta de todos os sindicatos existem cada vez mais professores que não têm uma relação orgânica com o movimento sindical, mas que estão indignados. Esse é um caminho importante para a unidade da luta que é essencial para a defesa da escola pública.
E não existe o risco de aproveitamento por parte do Chega, por exemplo?
O que tenho visto, e participei em todas as manifestações de professores de vários sindicatos, é que há um movimento de professores que está a fazer um caminho pela unidade da luta e esse será um desfecho inevitável. Nas manifestações em que estive, vi uma defesa muito grande da dignificação da profissão, que nunca foi tão ameaçada como agora pela falta de professores desde que se fechou a porta a outras formas de privatização. Agora, tanto o Chega como outros partidos de direita têm problemas sobre o diálogo com este setor. No caso do Chega porque tem defendido o fim da escola pública e esse lastro persiste. No caso da restante direita, há dois presidentes de câmara, Carlos Moedas e Rui Moreira, que defendem em larga escala o que os professores mais rejeitam que é a municipalização na contratação de professores.
Essa mudança no modelo de contratação é o que está a gerar maior indignação. O que é que gerou este erro de perceção, como classificou António Costa? Os professores perceberam mal o novo modelo de contratação ?
Não creio que tenha sido um erro de perceção. As negociações que o Governo entendeu encetar agora, tarde e a más horas, começaram com propostas inaceitáveis para os professores. Todos os que estão minimamente atentos sabem isso. A contratação de professores por um conselho intermunicipal de diretores que misturava duas dimensões inaceitáveis passa pela municipalização via diretores e pela relevância dos diretores na contratação de professores. Isso já existiu no passado, correu mal e foi uma experiência traumática da qual os professores não se esquecem. Outra matéria era a existência de um perfil de competências, ou seja, os professores serem escolhidos com base nesse perfil e isso é utilizado para introduzir critérios muito pouco transparentes na contratação. Um professor entra contratado e ao fim de poucos anos, se tiver horário completo fica vinculado. Isso é totalmente oposto a um concurso público que é por graduação. Estas propostas existiram, mas o Governo recuou rapidamente e disse que já não estavam em cima da mesa. Em vez disso o Governo propôs, apesar de ainda não ter visto por escrito, a possibilidade de existir uma mobilidade com base no perfil de competências.
Este modelo de contratação não responde à maior critica do Bloco que é a falta de professores? Não permite responder a isso no curto prazo?
Não. As escolas têm neste momento a possibilidade de contratar por concurso ou por reservas de recrutamento nacional e depois disso a possibilidade de contratarem de forma individual. Para entrar neste último mecanismo não é preciso ser professor, basta ter um determinado número de créditos. Qualquer medida que retire a necessidade de ter formação para ser professor é um recuo para os anos 80, quando isso aconteceu porque não existiam professores. Ser professor é uma profissão muito qualificada. Sem desprimor, uma pessoa só com conhecimento científico não está preparada para enfrentar uma sala com 30 adolescentes, isso não existe. A questão da autonomia não faz aparecer professores por milagre e as alterações aos concursos também não. Muitos milhares saíram durante o Governo de Nuno Crato, que dispensou 30 mil contratados e para além disso muitos saíram por estarem cansados e mal pagos. A par disso, os professores têm que pagar para trabalhar. Há muitos professores no norte e muita falta a sul. O Governo dizer que os vai vincular a sul não resolve o problema da falta de professores em Portugal. Não é justo pedir, e isso vai ser necessário, a professores que venham de Famalicão dar aulas a Lisboa, Almada ou Montijo e pagar uma renda insuportável e a ganhar 1300 euros brutos por mês.
No debate de ontem, o Bloco acusou António Costa de atacar os professores. Esse ataque só começou a partir de 2019, quando o PS perdeu o apoio do Bloco?
Estou certa. Quando o Governo minoritário de António Costa tomou posse, existiu um conjunto de acordos que foram feitos com os partidos sobre professores. Enquanto esses acordos vigoraram para sobrevivência do Governo, eles conseguiram levar-nos a algum lado. O Bloco de Esquerda negociou com o ministro da Educação Tiago Brandão Rodrigues duas vinculações extraordinárias de professores e uma norma travão que vinculou milhares de professores à escola pública. Tivemos também no Parlamento muitas iniciativas sobre contratos de associação e de fim de iniciativas para encostar professores com horário zero e a tal Bolsa de Contratação de Escolas. Quando se descongelou a carreira dos professores…
E que António Costa usou como trunfo no debate sobre política geral.
António Costa apresenta isso como uma grande vitória, mas não fez mais do que cumprir a lei. Vínhamos de um Governo de austeridade criminosa, que foi várias vezes contra a Constituição e a única coisa que o Governo de António Csota fez foi retomar a lei. Não sei como é que o PS se arroga de tanta vitória por ter feito uma coisa tão simples. Mas quando essa carreira foi retomada não foi reconhecido aos professores a grande parte do tempo que tinha sido congelado. Muitos professores foram apanhados em congelamentos e transições de carreira e ficaram presos no mesmo escalão durante vários anos. Já encontrei professores com 15 anos de serviço que estavam no 3º escalão. Isto significa que estes professores são ultrapassados por outros mais jovens só porque conseguiram entrar num momento diferente. Quando o Parlamento estava pronto para fazer essa alteração de recuperar todo o tempo de serviço perdido.
Surgiu a questão da ameaça de demissão de António Costa.
E o PSD que estava de acordo em votar essa proposta do Bloco de Esquerda. Já tínhamos um acordo para uma proposta confortável para todos os partidos, mas o PS por várias vozes, de Carlos César e outros, ameaçou uma crise política.
Mas a questão financeira não tem um peso que tem que ser considerado?
Na altura desmentimos os números do Governo. António Costa e Tiago Brandão Rodrigues foram mandando para a mesa números absurdos. A tática era choque e pavor. Depois fomos desfazendo aquelas contas e fomos chegando à conclusão de que não valia o que o Governo disse. Mas ainda que valesse alguns milhões, porque estas coisas têm custos, o que pergunto é se não estaríamos neste momento numa situação muito melhor. Sempre dissemos ao Governo que se existisse o objetivo de reformar as carreiras dos professores para resolver este problema da falta de docentes, a recuperação do tempo de serviço era essencial. Tínhamos que encontrar formas de mitigar o impacto orçamental encontrando formas de dar as professores condições de trabalho que eles exigiam. O Governo adotou uma postura completamente diferente: tudo o que é feito para prejudicar os docentes é feito sem negociação.
João Costa é um problema? Ter sido secretário de Estado durante os últimos anos e ter um lastro como governante está a dificultar as negociações?
João Costa teve no primeiro mandato de Tiago Brandão Rodrigues algumas medidas do ponto de vista curricular que fizeram sentido e que tinham a ver com uma reversão das medidas de Nuno Crato que nos atiravam para uma escola do século XIX. No que toca à dignificação das carreiras, entendo que não depende de ministros e talvez nem do ministério. O ministério tem sido inábil na negociação com os professores. Até agora esteve paralisado, começou as negociações com uma falta de transparência grande, mas o problema grande é o Governo. Existe uma incapacidade ou falta de vontade para reconhecer que com as folgas orçamentais que estão a ser utilizadas para show off não se estão a resolver os problemas estruturais no País e este é um problema sério. A falta de professores liga-se sempre à falta de uma carreira atraente que mobilize profissionais de outras áreas.
Estamos a chegar ao fim. As eleições legislativas foram há um ano e em 2022 o Bloco teve uma média de 5% nas sondagens. Sem crescerem, esta não é a prova de que é preciso mudar alguma coisa? A liderança, por exemplo?
A história da queda do Governo, como vemos agora, tem muito que se lhe diga. António Costa há muito que andava a tentar mandar-se ao chão pedindo uma maioria absoluta em nome da estabilidade — que está à vista de todos que não existe. Não só não existe do ponto de vista governativo como este Governo tem sido incapaz de lidar com o problema da inflação. As sondagens valem o valem e eu vejo uma tendência de subida e ainda falta muito tempo, achamos nós, para as eleições. Não sinto que o eleitorado tenha ficado zangado com o Bloco. O eleitorado fez uma outra escolha no momento das eleições. O Bloco tem capacidade para recuperar muito desse eleitorado, estamos numa fase boa.
Com Catarina Martins ainda? Não estará demasiado desgastada?
A Convenção Nacional está marcada e debaterá todos os aspetos da direção política do Bloco, que não é individualizada. A Catarina Martins tem apoio interno sólido para continuar.