A Alambique criou uma distribuidora irmã, a Bold, que nos últimos meses tem colocado nos cinemas UCI alguns dos filmes mais aliciantes que podemos ver em sala. Este ano já houve “Climax”, de Gaspar Noé, “Na Fronteira”, de Ali Abbasi, a excelente estreia de Michael Pearce com “Besta” (vencedor de um BAFTA para Melhor Primeiro Filme) ou a fantástica animação/aula de arte que é “Ruben Brandt: Coleccionador”. Este mês o tom muda. “Árctico” é a primeira longa-metragem de Joe Penna, um brasileiro que começou a carreira no YouTube.
Penna convenceu Mads Mikkelsen a entrar numa aventura quase solitária. Mads é um homem que teve um acidente de avião e ficou abandonado no “Árctico”. O seu dia-a-dia é feito de rotinas que combatem as condições adversas. São rotinas de sobrevivência que exigem uma disciplina e que o preparam para o próximo dia. Um dia que poderá nunca vir, porque as chances de salvação são diminutas. A dado momento o protagonista percebe que tem duas escolhas, ou permanece no mesmo local, como fez até então, à espera de nada; ou ruma ao desconhecimento à procura de uma chance que pode nem sequer existir.
“Árctico” estreia esta semana nos cinemas UCI em Lisboa e Porto e ficará em sala até ao final do mês. Na semana seguinte, no dia 13, chega às plataformas de Video On Demand e DVD. Para perceber melhor as escolhas do protagonistas de “Árctico”, estivemos à conversa com o português que sabe melhor sobre o assunto: João Garcia. O montanhista português que já subiu por dezanove vezes montanhas com mais de oito mil metros. E, claro, já enfrentou muitas situações adversas. A conversa começou em “Árctico” e terminou com Sociologia.
[o trailer de “Árctico”:]
Já viu o filme?
Já. Coincidiu com uma viagem para o Nepal e estava disponível no avião. Vi sem saber ao que ia, mas pela sugestão do Árctico, acabei por ver o filme.
E o que achou?
Estes filmes são sempre impressionantes. Principalmente quando são realizados por alguém que não é de Hollywood, com uma sensibilidade mais realista, porque Hollywood tem sempre aquele defeito de necessitar de uma perseguição de carros, uma cena de pancadaria de punhos e pirotécnicos. Isto não, tem outra sensibilidade, que torna tudo mais realista. Achei uma história fantástica.
Naquelas condições extremas foram tomadas as decisões certas?
Acho que sim. Há ali um drama em cima de outro drama, mas isso são as vicissitudes destes terrenos verdadeiramente de aventura. E pressupõe-se que nestes terrenos de aventura não controlemos tudo. Acima de tudo acho que todos os procedimentos, disciplina, rotina, a própria tentação humana do “abandono esta pessoa e salvo-me a mim”, tudo isso é tão estupidamente real que torna o filme mais verídico, genuíno. Isto para mim, que sou uma pessoa gosta de andar no terreno, que gosta de fazer esta gestão do risco. Tenho a noção que alguns erros podem acarretar consequências muito severas, graves. Acho que sim, tudo o que o protagonista faz no filme, era o possível.
Mencionou a disciplina, o rigor. Tenho curiosidade em perceber como isso se reflete no seu trabalho. Não sei se viu aquele documentário, o “Free Solo” [vencedor do Óscar de Melhor Documentário na última edição].
Sim, sim.
[o trailer de “Free Solo”:]
Para quem desconhece aquele mundo, talvez ele pareça muito irresponsável, mas há um momento em que ele percebe que não pode escalar naquele dia e não o faz. E há a questão do estudo, sobre todos os detalhes. E a quantidade de trabalho, de estudo, que a escalada exige é imensa.
Sim, há muito trabalho. Os ignorantes… devido ao desconhecimento acabam por atribuir tudo à sorte: “Grande sorte que aquele fulano tem”. Sorte? Eu andei anos e anos a preparar-me para ter sorte. Para mim, a verdadeira definição de sorte é quando a preparação e a oportunidade se encontram. E no caso do Alex Honnold, ele andou ali nesta ideia de fazer o El Capitan [uma formação rochosa na Califórnia com mais de dois mil metros de altitude] em free solo, ele andou a preparar e a reconhecer, treinar, três anos. Três anos para encontrar uma oportunidade. Quando ele recuou, porque estava ali a namorada, uma série de coisas que não estavam… os astros não estavam alinhados, como se diz na gíria, ele recuou, quer dizer, teve aquela noção de que ainda não estavam reunidas as condições ideais. Só assim uma pessoa consegue encontrar paz de espírito e concentração para poder enfrentar o desafio. E naquele caso ele sabe que está a arriscar a vida dele.
E em relação ao filme?
Não sabemos o que causou aquele acidente de avião. Mas há uma perseverança, dedicação, rotina e disciplina. É aquilo que ao fim de muitos anos de treinar, seja um escalador, alpinista, seja um corredor, um piloto, tudo isto se treina pela repetição. Portanto não se consegue descurar facilmente. Mas isto tem a ver com a personalidade das pessoas, e todos nós somos humanos. E sabemos que esta personagem, desta história real, acaba por roçar o limite da capacidade dele. Não vou dizer que é da capacidade humana, mas na parte final do filme, ele roça os limites dos limites. Há uma altura em que está pronto a abandonar a senhora, depois cai em si e volta atrás.
Escalou o Evereste pela primeira vez há vinte anos. Já que falámos no “Free Solo” e falou de rigor, disciplina, paz de espírito, como é que se prepara para uma aventura dessas? Imagino que a janela de tempo para escalar o Evereste seja curta, como é que se alcança essa paz de espírito para escalar naquele preciso momento?
Não vou falar sobre o Evereste. Mais do que o Evereste, eu escalei cumes… escalei 14 montanhas com mais de oito mil metros, todas elas diferentes, mas todas elas altíssimas e muito exigentes. Mas já estive 19 vezes acima dos oito mil metros. Da mesma forma que o Alex Honnold, isto requer que nós tenhamos connosco uma série de peças e que elas se encaixem todas. A primeira é a preparação física, a necessidade de nos prepararmos fisicamente até à exaustão. Há desportos e desportos, há desportos que por mais violentos que sejam, temos a consciência que podemos desistir quando quisermos, o râguebi, a maratona, se a dada altura o fulano não se sente bem, senta-se no passeio e o carro-vassoura vai buscá-lo. E depois há os verdadeiros desportos aventura.
Qual é a grande diferença?
Quando não controlamos todos os elementos, temos de estar mentalizados que a dada altura estamos entregues a nós próprios. Deixa de ser um desporto coletivo, passa a ser individual: nomeadamente o dia de cume. A primeira peça a encaixar é sentirmos na consciência que fizemos tudo o que podíamos, treinámos até à exaustão e estamos o melhor preparados possível. A outra coisa é perceber que a logística, o plano, está mais ou menos realista, ao nosso alcance. E perceber que aquela janela de oportunidade é generosa e vai-nos dar tempo suficiente, e não só para chegar lá acima. Ao contrário do que as pessoas pensam, o chegar lá acima não é a meta, é metade da maratona. Falta a outra metade. As pessoas associam muito a vitória à fotografia do cume, com aqueles braços no ar, em forma de V de vitória. Chegar ao cume não é nenhuma vitória.
Qual é a vitória?
A vitória é chegar são e salvo a casa. Portanto, se perguntarem a qualquer maratonista o que ele sente no quilometro 21, ele vai mandar o pessoal à fava, dizer que ainda faltam outros vinte e tal quilómetros, falta ultrapassar a meta. É ter esta noção, de que fizemos o trabalho de casa, que não sobrestimamos as nossas capacidades, que temos o material e a preparação para a altitude adequada, que vem uma janela de oportunidades, ou seja, bom tempo. E quando isto tudo se conjuga, aí conseguimos encontrar a tal paz de espírito, em que aceitamos os riscos que vamos correr. De tudo o que não esteja em sintonia, acaba por ser o nervoso miudinho que vamos acumulando que faz com que não… isso não ajuda. É mais peso em cima dos ombros. E as coisas com certeza não vão correr tão bem.
Imagino que conheça alguns troços do que vai escalar. Mas imagino que quando está a escalar pela primeira vez um cume, vai lidar muito com o desconhecido. As últimas dezenas de metros que vai escalar. Como lida com esse desconhecido? Como se sente?
A minha prática continuada destes 35 anos foi evoluindo, amadurecendo e foi inclusive mudando, no sentido em que eu antes estudava… ainda não havia internet, ia para Chamonix, para a biblioteca da E.N.S.A, que é uma escola nacional de ski e alpinismo, em França. E rapinava as revistas todas e pagava balúrdios em francos franceses, por cada fotocópia de cada artigo. E vinha para casa e lia… gostava de ir o mais bem preparado possível. Na altura havia ali alguma insegurança, alguma coisa que me dizia que tinha de levar a informação. Mas nas últimas expedições fiz exatamente o contrário, não queria saber nada. Queria mais surpresa, desconhecimento, mais dificuldade, queria conhecer um pouco o que os pioneiros sentiram. Ao ponto que neste momento já não ando a escalar em quantidade, mas ando a escalar em qualidade.
O que é que isso quer dizer?
Ando a tentar subir até onde nunca ninguém subiu. Uma coisa é escalar montanhas como o Kangchenjunga, Annapurna, tudo isso, mas é preciso ter a noção que há duzentos gajos que já fizeram isto, ou quatrocentos gajos já subiram isto. E eu sou só mais um. E outra coisa é abraçar projetos em que não sabemos sequer se é possível. Portanto, existe a dificuldade própria da altitude, a dificuldade técnica, de ser mais empinado, difícil, vertical. E há a barreira psicológica de nem sequer saber se vamos conseguir. E é isso que tenho vindo a fazer. Portanto, ao longo da minha vida tenho vindo a procurar mais dificuldade. E isto é a forma de nós nos superarmos a nós próprios, deste cenário fantástico. Mas neste caso já não com tanta altitude, expedições muito caras, expedições que precisam de ser mediatizadas para ter patrocínios e isso. Agora não. Dá algum conforto isto de não ter necessidade de dar cavaco a ninguém, mas com mais dificuldade técnica e a barreira psicológica um bocadinho superior.
E ainda encontra muitos sítios desses?
Ui, isso é o que não falta. Toda a gente quer fazer o mesmo. O pessoal vai todo ao mesmo, sempre as mesmas montanhas, as filas nas montanhas mais populares. E depois ao lado, não é preciso ir muitos quilómetros ao lado destas montanhas muito populares… Posso até adiantar que 99% das montanhas deste planeta não são frequentadas. Só 1% é que são sobrefrequentadas. Parece uma patetice, mas é a verdade, somos uma sociedade “Maria-vai-com-as-outras”, se vai um, vão todos, não vai ninguém, não vai ninguém.
Aplica-se a tudo, não é? Até nas montanhas…
Eu gosto de fugir à norma [risos]. Eu e felizmente alguns companheiros, infelizmente não portugueses. Há escaladores cá em Portugal com nível, mas não com a disponibilidade, não apostaram nisto a tempo inteiro. E para ir para estas expedições é preciso um pouco mais de tempo. Aqueles vinte dias de férias por ano não chegam. E esse é outro elemento de que nunca abdiquei, o da sensação que o alpinismo dá, a liberdade, poder escolher para onde vou, ter mais tempo. Aliás, os sociólogos estudam este equilíbrio entre duas coisas que não podemos ter ao mesmo tempo: para termos liberdade, temos de abdicar da segurança. Para termos mais segurança, dinheirinho na vida, temos de abdicar dessa liberdade. É aqui que os sociólogos mencionam os alpinistas como os mestres deste equilíbrio, aparentemente possível, mas igualmente precário.