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Aos 57 anos, é um dos atores e encenadores mais versáteis e reconhecidos da sua geração
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Aos 57 anos, é um dos atores e encenadores mais versáteis e reconhecidos da sua geração

(Rui Oliveira/Observador)

Aos 57 anos, é um dos atores e encenadores mais versáteis e reconhecidos da sua geração

(Rui Oliveira/Observador)

João Reis: “Já perdi muito trabalho em cinema por confrontar produtores com faltas de pagamento. Sou intransigente em relação a aldrabices”

De passagem pelo Porto, cidade que foi sua durante seis anos, João Reis fala de esperança, desilusões e sobrevivência, do estatuto que alcançou no teatro e na vida e das dúvidas que ainda permanecem.

Chega de casaco ao ombro, como se regressasse a casa — afinal, o Porto foi a sua cidade durante seis anos e isso ainda se nota. “Acho que nunca te vi de bigode”; “Deixa-me dar-te um beijinho”; “Afinal, ficas cá até quando?”: é isto que ouve nos corredores do Teatro Carlos Alberto, no Porto, onde esta quarta-feira, 14 de setembro, estreia “A Praia”, um texto do dinamarquês Peter Asmussen e encenação sua. Por estes dias divide-se também entre “O Diário de Anne Frank”, no Teatro da Trindade, em Lisboa. “Aproveitei as folgas para vir cá montar este espetáculo.”

Senta-se, pede um café sem açúcar e até tem direito a uma garrafa de água personalizada com o seu nome. Toca no bigode, fruto da personagem e pouco habitual no seu visual, mexe-se na cadeira para encontrar a posição mais confortável, ainda que falar de si, do seu trabalho e do que o move lhe pareça muito pouco incómodo.

Recorda o instinto de sobrevivência na escola, a paixão pela escrita, o professor João de Melo, a passagem como radarista na marinha, o programa de autor na rádio, o acidente de percurso no conservatório de dança, os empregos em bares ou livrarias e o anúncio no jornal que lhe mudou a vida. Formou-se como ator em 1989, estreou-se ao lado de Eunice Muñoz, João Grosso e Estrela Novais, em “D. João e a Máscara”, e a partir daí nunca mais parou.

Em 1995 é desafiado pelo encenador Ricardo Pais a mudar-se para o Porto e a fazer parte de uma nova era no Teatro Nacional São João. “Havia qualquer coisa que instintivamente me dizia para vir, sabia que podia ser a escolha certa e foi das melhores decisões que tomei na vida.” Durante seis anos interpretou grandes clássicos, fez escola e fez história contra todas as expectativas, mas de regresso a Lisboa sentiu o peso de um rótulo redutor, o estigma e os anticorpos. “As contrariedades dão-me mais pica e mais força, normalmente são o meu combustível para continuar.”

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João Reis não romantiza a “profissão totalitária” e pouco conciliável com uma vida comum, antes pelo contrário. É entre a confiança e a dúvida, a segurança e o erro, que parece concretizar-se ao longo de 32 anos de carreira. Perfecionista, pessimista, discreto e dono de um sentido de humor pouco evidente à primeira vista, garante que nunca se deixou deslumbrar com o sucesso, que tende a relativizar, ou ambicionou uma carreira internacional e orgulha-se de ter conseguido quase sempre escolher os trabalhos que abraçou. “Já tenho algum poder de escolha, acho que já atingi um estatuto que me permite fazer isso.”

Gostava de fazer mais cinema, de encenar uma grande produção e que o tempo do teatro fosse outro. Atento ao talento das novas gerações e ao mundo “hipócrita e desigual” em que vivemos, João Reis continua inquieto, insatisfeito e a desiludir-se de forma implacável com as pessoas, ao mesmo tempo que mantém a esperança por dias melhores. Já pensou em mudar de profissão, de vida e até de morada, mas talvez só quando a memória lhe falhar é que irá retirar-se dos palcos. Até lá, aproveitemos a sua intensidade na arte e o seu legado de resistência.

"A Praia" estreia esta quarta-feira no Teatro Carlos Alberto, no Porto, e permanece até dia 24 de setembro

(Rui Oliveira/Observador)

Na escola era uma espécie de bobo da corte, fazia facilmente piadas com toda a gente e angariou alguma fama com isso. De onde vem essa aptidão?
Acho que vem do meu instinto de sobrevivência, como na escola havia sempre outros que se destacavam, eu destacava-me pelo sentido de humor, pelo sentido corrosivo, por ser provocador, gostava muito de provocar. Não provocar propriamente o atrito, aquela provocação gratuita, mas quando alguém se metia comigo arranjava imediatamente uma piada ou uma alcunha, era muito imprevisível.

Teve logo consciência disso?
Nenhuma, faz parte da minha natureza, aliás, ainda hoje sou um pouco assim, mas mais moderado. Hoje em dia com as coisas que sei e vejo poderia ser muito mais sarcástico e acutilante, mas não, tornei-me bastante mais moderado.

Essa forma de ser trazia-lhe consequências?
Trazia, claro, boas e más. Havia professores que adoravam esse meu lado mais provocador e outros que detestavam e me castigavam, diria que até justamente porque por vezes era de mais. Era um aluno médio, bom a filosofia e a português, mas não era um aluno muito aplicado, era muito curioso, mas não era propriamente muito aplicado. Depois tive professores que foram enormes referências, como o escritor João de Melo, que foi meu professor de português numa altura muito difícil na minha vida. Com o divórcio dos meus pais e a morte da minha avó materna, que eu adorava, passei uma fase de enorme turbulência com 14 anos e o João foi um grande apoio para mim, a vários níveis. Escrevi uns poemas e mostrava-lhe, era a forma que tinha de me expressar, criámos uma intimidade interessante.

Ainda hoje mantêm o contacto com ele?
Fomos perdendo com o tempo, ele esteve muito tempo a trabalhar em Madrid e nunca trabalhámos juntos. Ele recentemente entrou em contacto comigo porque acompanhou a série “Planeta A”, na RTP, e mandou-me uma mensagem a dizer que aquilo era a minha cara. Foi com ele que comecei a dar importância a algo que não era muito intrínseco em mim. Tinha 9 anos no 25 de Abril e não tinha a noção do que foi a guerra colonial, ele escreveu um livro sobre os horrores da guerra colonial e até desse ponto de vista foi uma referência.

Já têm uma data para estarem juntos?
Já combinámos várias vezes alguns jantares em minha casa, mas depois com a pandemia foram sendo sucessivamente adiados e agora a última coisa que falámos foi que ele me iria ao ver ao Teatro da Trindade, onde estou em cena neste momento. Espero que aconteça, até porque é a única pessoa com quem tenho contacto dessa altura da minha vida.

Nessa época, estava longe de imaginar que iria ser ator?
Sim, muito longe.

Começou a trabalhar com 16 anos, vendeu bíblias ilustradas porta a porta, fez publicidade, rádio, chegou a entrar no conservatório de dança, passou pela marinha. Podia ter sido mil e uma coisas na vida.
Sim, de facto. Já que tinha de fazer o serviço militar obrigatório, interessava-me escolher um ramo das forças armadas que me permitisse viajar. Gostava muito do Corto Maltese, tinha muito aquele fascínio do mar, dos navios, da aventura e a marinha é tudo menos uma aventura. Estive dois anos lá e fartei-me de viajar, conheci a Europa toda, era radarista e fiquei em terceiro lugar no curso, éramos 29. Saí de lá com 23 anos e o plano era ir para a faculdade e estudar filosofia, mas depois não aconteceu porque um anúncio no jornal de um curso de formação de atores.

Essa escolha foi óbvia ou nem por isso?
Sim, acho que teve que ver com a minha expressão artística. Nas aulas tinha a capacidade de me exprimir muito bem, pela escrita, pela leitura e interpretação de um texto, sentia que já tinha algumas ferramentas que me permitiam eventualmente abordar o curso com alguma tranquilidade, depois interessava-me a questão com o outro, a apresentação, o conforto e a criação. Já via espetáculos, já tinha algumas referências, comecei a ir à Cornucópia ainda no tempo da escola secundária, via muito dança, sobretudo o Ballet da Gulbenkian.

Chegou a entrar no conservatório de dança?
Sim, mas foi uma coisa acidental de seis meses. Não era para mim, nem percebi como entrei, fiz uns cursos de dança jazz com o Rui Horta, depois com o José Seabra, e aquilo abriu-me uma porta qualquer em que pensei experimentar. A minha turma era só de rapazes e muitos seguiram a profissão, mas rapidamente percebi que não era por ali, foi um engano.

Quando se expressava através da escrita, o que escrevia?
Muita poesia e pequenos ensaios sobre algumas coisas que lia, desde o Albert Camus até à Marguerite Duras, autora que me influenciou bastante. Sou muito crítico, tenho um sentido crítico muito apurado, mas era muito difícil de avaliar, nunca me consegui distanciar o suficiente para perceber se aquilo que eu escrevia, nunca para efeitos de publicação, era bom ou não. Não partilhava com muita gente, eram coisas muito íntimas.

E na rádio, o que fez?
Na rádio Geste, que depois se transformou na Rádio Clube Português, onde passaram nomes conhecidos como o Henrique Garcia, a Manuela Moura Guedes, o Artur Albarran ou a Margarida Pinto Correia, fiz uma proposta de programa de autor, chamava-se “O Operador de Sonhos”, inspirado numa canção dos Talking Heads, em que lia textos alusivos às músicas que passava, mas às vezes era o texto o ponto de partida. Lembro-me que tinha o apoio do Manuel Hermínio Monteiro, da Assírio & Alvim, que me deixava ir buscar livros para a minha pesquisa e para sortear aos próprios ouvintes. Era um programa muito eclético, era capaz de passar Bach e depois Sonic Youth. Fiz aquilo durante quatro anos, na torre 2 das Amoreiras, das 21h às 00h, e tinha muitos telefonemas de ouvintes e alguns haters também. Foi uma experiência muito intensa e interessante, mas depois convidaram-me a fazer as manhãs, das 7h às 11h e durante três meses tive que reconfigurar tudo na minha cabeça.

Gosta mais de trabalhar de manhã ou à noite?
Sou decididamente um animal noturno, como quase todos os atores, mas gosto de ensaiar de manhã porque há uma frescura e uma disponibilidade diferente.

"Para dizer a verdade, os meus pais nunca me apoiaram, nem nunca me incentivaram, sempre fui eu que criei os meus próprios caminhos e as minhas condições, desde muito cedo que me habituei a ir à luta e a só depender de mim."

A família impulsionava-o a seguir este caminho mais artístico?
Não, a minha mãe nunca se preocupou muito relativamente às minhas escolhas, o meu pai achava que ser ator era uma coisa sem futuro, sinónimo de uma vida muito boémia e libertina, tinha muito medo e muito preconceito em relação à profissão. Como sempre fui muito determinado e independente, fiz as malas e segui o meu caminho. Fui trabalhar mais cedo para ganhar a independência mais cedo. O meu pai só reconheceu verdadeiramente o meu trabalho quando fiz uma peça no Teatro Nacional D. Maria II, em 1994, “Os Jornalistas”, no final disse que tinha algum jeito para isto.

Foi uma validação?
Sim, para um filho é sempre importante que um pai valide e reconheça o nosso trabalho. Foi uma validação tímida, mas super importante. Quando começo depois a fazer televisão com mais regularidade e me torno mais popular, algo que nunca procurei, mas que é uma consequência, ele começou a dar mais importância ao que eu fazia e a entender que eu conseguia, apesar das dificuldades inerentes à profissão que são infinitas e contínuas, ter futuro. O meu pai como trabalhava numa instituição militar tinha o sonho que eu seguisse a marinha, numa determinada altura passou-me pela cabeça continuar ligado a esse mundo, gosto mesmo de mar e navios, talvez me visse engenheiro naval ou algo do género, mas depois da formação de atores no Instituto de Formação Investigação e Criação Teatral comecei logo a trabalhar e nunca mais parei.

Essas oportunidades de trabalho imediatas surpreenderam-no de alguma forma?
Sim, mas a realidade cultural do país era muito difícil. Quando fiz o meu primeiro espetáculo, “D. João e a Máscara”, trabalhava no Frágil, saía do teatro e ia trabalhar para lá, ou seja, os meus colegas apareciam para beber copos e eu servia-os atrás do balcão. Lembro-me de ser muito difícil entrar no Frágil, uma vez estava a Margarida Martins à porta e a primeira vez que tento entrar ela diz-me que só entram clientes habituais. Eu disse: “desculpe lá, como é que posso ser cliente habitual se você não me deixa entrar uma primeira vez?” Ela riu-se, disse-me que tinha razão e deixou-me entrar. Durante muito tempo fui conciliando vários trabalhos, fiz outro espetáculo na Voz do Operário e de manhã trabalhava numa livraria. Conseguia-o não apenas porque tinha muito mais energia, mas porque era muito determinado e disciplinado, tinha um instinto de sobrevivência muito apurado. Para dizer a verdade, os meus pais nunca me apoiaram, nem nunca me incentivaram, sempre fui eu que criei os meus próprios caminhos e as minhas condições, desde muito cedo que me habituei a ir à luta e a só depender de mim. Sempre fiz várias coisas ao mesmo tempo por necessidade, para ganhar independência, para poder sair de casa, poder pagar uma renda…

Para mostrar também aos seus pais que conseguia concretizar o que realmente queria?
Não, nunca tivesse essa necessidade. Era mesmo um desejo pessoal, um objetivo.

"Sou muito sombrio, pessimista, melancólico e contemplativo, mas também consigo ser solar, positivo, leve e ter um sentido de humor que me ajuda a viver a acreditar no futuro."

(Rui Oliveira/Observador)

Quando percebe que é mesmo isto que quer fazer para o resto da vida?
Logo que comecei a trabalhar, foi imediato. Depois de fazer o “D. João e a Máscara”, encenado pelo Mário Feliciano, no Teatro da Politécnica, percebi que a partir dali começaram a abrir-se outras portas e outras oportunidades. Não senti necessidade de ir para uma escola superior porque de facto comecei logo a trabalhar.

Em 1995 muda-se para o Porto, onde trabalhou no Teatro Nacional São João durante seis anos, contra todas as expectativas. O que o faz tomar esta decisão?
Estava na Cornucópia, o Ricardo Pais foi ver um espetáculo meu, fixou-me e depois desafiou-me a vir para cá. Perguntei ao Luís Miguel Cintra o que achava do convite e ele disse-me para vir, que me ia fazer bem mudar de ares e que iria trabalhar com uma pessoa nova, mas depois as pessoas mais próximas de mim e do meio chamavam-me maluco. “Para o Porto? Não se passa nada no Porto, ninguém te conhece. O que vai fazer para lá?” Acho que foi exatamente por este feedback que vim, para contrariar estas ideias. Havia qualquer coisa que instintivamente me dizia para vir, sabia que podia ser a escolha certa e foi das melhores decisões que tomei na vida.

Porquê?
Aprendi imenso, caí numa cidade onde as pessoas no início me olhavam com alguma desconfiança, porque era um mouro que lhes vinha roubar trabalho, mas depois dessa espécie de rejeição, fui completamente adotado. Não tinha nenhuma relação com o Porto, só uns primos afastados da família do meu pai, que era de Guimarães, mas na realidade não conhecia ninguém e hoje sinto-me em casa. Os que achavam uma loucura eu vir para o Porto, passados seis ou sete anos queriam vir para o S. João. Na altura, o Ricardo Pais fez um trabalho absolutamente extraordinário de implementação, partiu pedra, e permitiu-me fazer coisas maravilhosas, conheci gente incrível e aprendi imenso. O São João fez história, criou uma escola, era uma referência para a cidade, para as pessoas que estudavam teatro, e depois começou a ser também uma referência nacional e mesmo lá fora, fizemos muitas digressões internacionais e eu fiz parte desse pacote.

Quando regressa a Lisboa sente uma dificuldade extra?
Sim, durante muito tempo senti que me associavam a uma espécie de linhagem, aos grandes clássicos, apelidavam-me de ator shakespeariano. Quando as pessoas dizem estas coisas, não têm noção do que estão a dizer, nunca fizeram clássicos e quando acontece parecem um burro a olhar para um palácio.

Esse rótulo incomodou-o?
As contrariedades dão-me mais pica e mais força, normalmente são o meu combustível para continuar. Tenho uma enorme confiança nas minhas capacidades e no meu trabalho, sei que consigo sempre ultrapassar as circunstâncias, mesmo quando elas são negativas ou quando há observações depreciativas em relação ao meu percurso. Em Lisboa recebia muitos poucos convites para trabalhar, era o ator do Porto e do São João, era uma espécie de pop star do Ricardo Pais e isso criou-me alguns anticorpos.

Como deu a volta?
Fiz uma coisa no Teatro Aberto com o João Lourenço e mais tarde trabalhei com o Nuno Carinhas, sou um bocado salta pocinhas, nunca fiz parte de uma companhia, basicamente estou onde me querem. O São João no fundo foi a minha companhia, durante muitos anos o Ricardo trabalhava quase sempre com os mesmos atores, alguns dos meus melhores amigos do meio são do Porto por força dessas circunstâncias, essa família e esse amparo que os atores procuram foi aqui que encontrei.

Porque diz que deu mais ao teatro do que o teatro lhe deu a si?
Precisamente pela falta de reconhecimento que senti quando cheguei a Lisboa. Acho que não fui suficientemente valorizado em relação a muitas coisas que fiz e isto não é nenhuma espécie de dor de cotovelo. Tem que ver com a dimensão que nessa altura o Teatro Nacional São João ganhou e por vezes o meio tem alguma dificuldade em lidar com o sucesso dos outros. Quando fui para Lisboa senti-me um bocado ostracizado nesse ponto de vista, mas mais uma vez o meu instinto de sobrevivência falou mais alto. Em comparação com muitos outros sítios onde já trabalhei, senti que aqui as pessoas vestiam mesmo a camisola de uma forma única, das costureiras aos técnicos, havia uma união implacável.

Ainda hoje pensa como teria sido a sua vida se tivesse permanecido no Porto a fazer teatro?
Há pessoas que pensam que sou do Porto, até gente que me conhece há alguns anos, nunca fiz questão de fazer desmentidos, não tenho problema nenhum a que me associem ao Porto, muito pelo contrário. Agora tenho uma relação de toca e foge com a cidade, mas gostei muito de estar cá. Uma boa parte das coisas mais importantes que fiz no teatro, aquilo que me solidificou e estruturou enquanto ator, foram aqui. Fiz imensos clássicos, era quase sempre protagonista, foi uma oportunidade e uma escola.

"Não quero ser um produto televisivo, tento sempre trabalhar com pessoas de quem gosto com quem sinta alguma empatia. Já tenho algum poder de escolha, acho que já atingi um estatuto que me permite fazer isso."

Ao fim de tantos anos, as dúvidas, o medo e os nervos mantêm-se? Essa angústia em relação ao futuro também? Temos a ideia de que faz muitas coisas ao mesmo tempo e nunca lhe falta propriamente trabalho, é verdade?
Sei que tenho trabalho garantido até abril de 2023, a partir daí não faço a mais pequena ideia do que vou fazer. Sou ator há 32 anos e nunca posso fazer projeções a longo prazo. Já me habituei a este registo, acredito sempre que as coisas vão aparecendo, mas nunca faço nada contrariado.

Sempre conseguiu escolher o que vai fazer a seguir?
Quase sempre, diria 90% das vezes. Por exemplo, quando faço novelas, tenho menos margem de manobra, mas consigo negociar horários para fazer teatro, condições e até personagens.

Já perdeu trabalho por ter essas exigências?
Claro. Em cinema já perdi muito trabalho por confrontar produtores com faltas de pagamento, sou intransigente em relação a aldrabices. Sei que há produtores de cinema que nunca mais me vão chamar para coisa nenhuma porque eu sou implacável com faltas de palavra.

Qual é o seu barómetro para escolher um trabalho em detrimento de outro?
Depende muito das circunstâncias. Em televisão tenho menos margem, mas dou muita importância ao realizador, à história e à equipa. É inevitável, nos tempos que correm e por questões financeiras, ter que fazer pelo menos um grande trabalho em televisão por ano, mas não vou a todas. Não quero ser um produto televisivo, tento sempre trabalhar com pessoas de quem gosto com quem sinta alguma empatia. Já tenho algum poder de escolha, acho que já atingi um estatuto que me permite fazer isso.

Começa a fazer televisão nos anos 1990 e as pessoas passam a reconhecerem-no na rua. Que impacto é que isso teve em si?
Houve uma estranheza inicial, mas como sou bastante discreto, tímido e recatado, penso que as pessoas respeitam isso e têm algum pudor em me abordar. Aqui no Porto, e como as pessoas são mais desempoeiradas, quando está a passar alguma novela comigo, são capazes de me chamar pela personagem e metem mais conversa comigo de uma forma generosa e afável. Lido bem com isso, mas não é uma coisa que me preocupe. Faço uma vida normal, vou ao supermercado, passeio o meu cão e nunca deixei de fazer nada por causa do meu trabalho.

Fazer teatro e televisão são processos completamente diferentes, mas no teatro há cada vez menos tempo, tanto nos ensaios como nos tempos em cena. Como se combate isso?
Mudando os programadores ou mudando as condições de trabalho. Agora estou a fazer uma peça no Teatro da Trindade, ensaiamos sete semanas e vamos estar três meses em cena, tenho de aproveitar as minhas folgas para vir cá montar este espetáculo do qual sou encenador. Hoje é muito raro as peças estarem tanto tempo em cena, isso faz com que haja menos público, menos possibilidade de o espetáculo crescer, menos tempo para o comunicar, depois há uma espécie de voracidade das estreias permanentes, essa vertigem é altamente prejudicial para todos.

Espera que isso mude?
Acho que não vai mudar, a não ser que exista um programador que decida mudar. Às vezes somos um bocadinho parolos porque vemos espetáculos extraordinários em festivais internacionais e quando falamos com atores ingleses, alemães ou franceses, eles dizem que ensaiaram seis meses. As coisas não nascem do acaso, nascem do investimento, do erro, da repetição, do distanciamento, da análise e da possibilidade de recomeçar. O que temos hoje limita-nos muito.

Essa ideia de repetição no teatro é suportável? Como se reinventa um texto e um personagem?
Os espetáculos quando são repostos ganham sempre uma nova dimensão e um novo olhar, porque há distanciamento. Já não fazia o “Turismo Infinito” há imensos anos e a última vez que o fiz [março de 2020] entrei numa zona que nunca tinha estado porque o meu olhar e a minha perspetiva sobre Álvaro de Campos eram outros e eu era outro ator também. Em “Opiário”, que é talvez um dos poemas dele de que mais gosto, já gostava daquilo que fazia, mas descobri uma outra porta para entrar no texto que no ensaio o Ricardo Pais disse-me: “nunca tinha feito assim”. Ao que eu respondi: “pois, porque nunca me deixou fazer assim”. Sou muito respeitador em relação às indicações dos encenadores, uns são mais permissivos e outros têm uma direção mais apertada, mas eu não discuto, sou um ator cumpridor e que ouve bastante.

Como é o João como encenador?
Dou imensa liberdade aos atores. A primeira coisa que encenei foi aqui no Porto, “As Três Cartas da Memória das Índias” de Al Berto, estava a ensaiar uma peça com o Nuno Carinhas, na qual era protagonista, e ao mesmo tempo o Ricardo Pais desafiou-me a encenar este texto. Fazer as duas coisas mesmo tempo era arriscado, posso dizer que entrei quase em pânico, mas correu tudo bem.

O que é que encenar lhe dá?
O que mais gosto ao encenar é ajudar os atores o processo de construção, o construir a casa com eles, aliás, escolho os atores em função do texto. Podia dizer que é assim que normalmente se faz, mas não é, muitas vezes as pessoas são escolhidas porque têm o nome X ou Y ou pela visibilidade que ganharam, eu prefiro escolher os atores pelas suas idiossincrasias e imaginando que aquele corpo e aquela voz podem corresponder na perfeição a uma determinada personagem. Claro que às vezes há desencontros e nos enganamos, mas sempre que posso faço audições para dar oportunidade a atores e atrizes mais novos que saem nas escolas e sentem o que senti à porta do Frágil: como é que podem ser clientes habituais se nunca me deram uma oportunidade para eu entrar?

"Não há muitos atores com a minha idade que tenham o meu currículo, mas não valorizo demasiado isso porque normalmente nos levanta do chão."

(Rui Oliveira/Observador)

Como encenador, a seleção dos textos que faz têm que traduzir sempre uma preocupação ou inquietação social ou não necessariamente?
Não, a minha primeira motivação é sempre o trabalho com os atores. Neste caso, em “A Praia”, o texto dinamarquês Peter Asmussen cruzou-se comigo. O Pedro Mexia já esteve para o encenar há algum tempo e quando soube que eu estava à procura de um texto para fazer com um elenco pequeno, deu-mo a conhecer. Nunca posso fazer textos para um elenco grande por questões logísticas e financeiras.

Gostava de o poder fazer?
Sim, mas tinha que reunir condições para fazer uma produção maior, neste momento não tenho uma estrutura, faço tudo sozinho de raiz, claro que tenho uma assistente e uma produtora, mas não tenho uma máquina, uma companhia.

Se um dia tiver essa oportunidade, já tem um texto escolhido?
Gostava de fazer o “Despertar da Primavera”, do Frank Wedekind, que tem um elenco de muitos atores jovens.

Como ator, o que ainda gostava de fazer?
Não sei. Gostava de fazer mais cinema, mas não é uma obsessão, já me deixei de preocupar com isso e já me habituei a aceitar que o cinema tem andado desencontrado da minha pessoa. Criei alguns anticorpos com produtores e não estou nada arrependido. Há colegas meus que anos depois ainda me vêm perguntar: como é que conseguiste receber dinheiro daquele filme? Porque falei.

Ter uma carreira internacional é algo que ambiciona?
Não, nunca me interessou. Há muitos anos tive a possibilidade, através de uma amiga, de ir trabalhar para a Alemanha, sou suficientemente aventureiro e gosto da cultura alemã, mas de alguma forma tive medo que pudesse criar mais uma rutura na minha vida. Havia seguramente o risco de gostar tanto daquilo que ficaria por lá e isso comprometia muita coisa a nível pessoal e familiar. Acho que teria sido interessante no início da minha carreira, mas aconteceu quase aos 50 e já com filhos. Esta profissão é muito totalitária, pouco compatível com a vida comum, familiar, doméstica, no fundo, com a estabilidade. Tenho alturas em que preciso mesmo de estar sozinho e isolado, por isso é que durante muito tempo o facto de fazer teatro no Porto me permitia estar única e exclusivamente concentrado e focado no meu trabalho, um trabalho que exige investigação, investimento e emoção. Em vários momentos da minha vida o teatro foi uma espécie de retiro, é mesmo necessário entrar no túnel e mudar o chip.

Não se imagina a trabalhar em nenhum mercado em particular?
Nunca tive essa obsessão de fazer filmes em França, em Inglaterra ou em Espanha como legitimamente alguns colegas meus têm. Claro que gostava de trabalhado com o Peter Stein e realizadores que já não estão cá. Tenho algum pudor em dizer estas coisas porque me soa sempre a algo pretensioso e a uma espécie de deslumbramento inalcançável, eu sou muito pés no chão e nestes anos nunca me deixei deslumbrar. Isto é uma coisa que digo sem grandes hesitações, mesmo quando uma coisa me corre muito bem e o meu trabalho é elogiado, valorizo, mas relativizo sempre.

"Já pensei em mudar de profissão e ir viver para o campo, ser professor e escrever livros. Mas viver da escrita? Talvez seja tarde de mais."

Sendo perfecionista, como é que lida com o fracasso, a crítica ou o plano que falhou?
Lido bem quando a crítica é honesta e objetiva. Lembro-me que há uns anos encenei uma peça chamada “Transações” no Teatro Maria Matos e na altura saiu uma crítica muito chunga, completamente inusitada e descontextualizada, onde se lia que eu tinha convidado a mulher, a cunhada e a prima da cunhada. 70% da crítica era focada nessas escolhas, como se elas fossem relevantes ou mesmo um problema. Lido bem com os fracassos, aliás, há espetáculos que podem ser muito populares para o exterior e para mim podem ser fracassos no sentido em que sinto que não cumpri exatamente os objetivos que me tinha proposto em relação à personagem.

Só ganha essa consciência no fim?
Às vezes tenha essa perceção durante o processo, mas não posso fazer nada porque mudar as coisas em cena implica também mudar as relações com os outros e não posso colocar em causa o trabalho dos meus colegas, que podem não estar disponíveis ou preparados para essa mudança. O teatro é sempre uma coisa coletiva, feita em conjunto, e a contracena é uma das coisas mais difíceis em palco. Percebemos imediatamente quando é que a pessoa está preocupada com o outro ou consigo, com o seu texto e com a sua personagem. Há atores que são muito pouco generosos porque não se prepararam bem, não têm segurança em relação ao texto, estão tão obcecados a fazer bem que depois se esquecem do outro. Isto acontece muito.

Tem noção que é um dos melhores?
Tenho noção que sou competente, que me entrego de uma forma intensa e que sou honesto em relação ao meu trabalho. Essa coisa de ser um dos melhores é sempre relativa, posso ser um dos melhores e não ser reconhecido por isso, às vezes os melhores não são os mais populares.

Mas sente-se suficientemente reconhecido pelo seu trabalho?
Sim, sinto que os meus pares me reconhecem como um bom ator, com um percurso notável e credível no teatro. Não há muitos atores com a minha idade que tenham o meu currículo, mas não valorizo demasiado isso porque normalmente nos levanta do chão.

Alguma vez pensou em desistir, mudar de vida?
Imensas vezes. Já pensei em mudar de profissão e ir viver para o campo, ser professor e escrever livros. Mas viver da escrita? Talvez seja tarde de mais.

O que o faz continuar?
Não sei responder a essa pergunta, acho que é algo inato, que faz parte da minha própria natureza. Neta altura do campeonato não tenho assim muitas alternativas, com 57 anos é complicado mudar de vida. Sinto-me satisfeito com o meu percurso, claro que às vezes tenho dúvidas e imensas desilusões. Incomoda-me desiludir com um colega ou com um amigo, causa-me moça. Acontece-me mais agora do que há uns anos, talvez porque tenha mais consciência ou seja mais exigente. Não gosto de perder tempo com coisas inúteis, quando as pessoas me falham, não guardo rancores, mas provavelmente não trabalho mais com ela. Claro que sou muito mais tolerante com quem mais gosto e admiro profissionalmente, mas em determinadas circunstâncias posso tornar-me implacável e riscar essas pessoas.

A questão da idade é importante? Um ator tem um prazo de validade? Imagina-se a trabalhar até quando?
Enquanto a memória não me trair. Há sempre adrenalina e inseguranças, mas perder essa faculdade deve ser horrível. Quando eu sentir que isso está a começar a acontecer, naturalmente me retiro. A memória será um dos barómetros, talvez seja um dos mais importantes, mas a idade é uma coisa boa, é sempre sinónimo de sabedoria, benefícios e experiência.

Que imagem é que acha que as pessoas têm de si?
Ui [risos]. Que sou uma pessoa reservada, há quem deva pensar que sou muito convencido, sério e sisudo, mas não posso escapar a esse preconceito que têm em relação à minha pessoa. Nunca expus demasiado a minha vida, concentro-me e tento falar sobretudo do meu trabalho.

Acha que é fácil trabalhar consigo?
Se perguntar acho que 90% das pessoas dirão que sim. Nunca me exalto, sou cumpridor, tenho um sentido de humor apurado, apesar de no primeiro contacto não ser uma coisa muito evidente. Quando estou num grupo de trabalho e se começa a criar muita intimidade entre as pessoas acho que se perde um certo mistério e isso não ajuda. O efeito de contaminação é muito perigoso, sei separar as coisas, mas reconheço que às vezes é difícil. Chego a uma novela e não sou logo dos mais faladores, sou reservado, afasto-me e faço-o para me proteger e proteger o meu processo de trabalho.

"Gostava de fazer mais cinema, mas não é uma obsessão, já me deixei de preocupar com isso e já me habituei a aceitar que o cinema tem andado desencontrado da minha pessoa."

(Rui Oliveira/Observador)

Recentemente estreou-se na apresentação na série “Planeta A”, na RTP, gravada durante dois anos em várias partes do mundo. Já era atento a estes temas relacionados com a pobreza, desigualdade, aquecimento global ou poluição?
Já era sensível e estes assuntos, mas não tinha a noção da dimensão de alguns deles. Passei a ter uma opinião muito mais assertiva, crítica e formada relativamente ao desenvolvimento sustentável, às alterações climáticas e às questões energéticas. Sou muito pessimista por natureza, não acredito nada na humanidade de uma forma geral.

O que lhe causa mais náusea no mundo em que vivemos?
A hipocrisia política e económica, os grandes desfasamentos entre países ricos e pobres. Há uns dias tive uma discussão com um amigo, estávamos a falar sobre as eleições no Brasil e eu disse que entre o Lula e o Bolsonaro venha o diabo e escolha, mas ainda assim preferia o Lula porque o Bolsonaro é uma criatura execrável. Conversámos muito sobre corrupção e a certa altura ele diz que é impossível não haver corrupção num país. Isso fez-me pensar: porque é que se aceita isto como um dado adquirido? É quase uma premissa e isto é para mim é revoltante. Porque é que não se poda governar sem ser corrupto?

Essa não é uma visão otimista?
É verdade, é um pensamento otimista. Tenho de ser justo, ultimamente tenho conhecido muitos jovens com um interesse genuíno e particular por estas questões ambientais e com um discurso estruturado, mas olhando para os sinais sobre o que aí vem, tenho esperança, mas tenho noção de que é um trabalho muito difícil e que exige uma limpeza global em relação às formas de fazer política.

Como ator gosta mais de trabalhar sobre a alegria e o otimismo ou sobre a tristeza e a solidão? Que emoções se tornam melhores ferramentas para si?
Ambas, tento sempre um equilíbrio entre as duas. Sou muito sombrio, pessimista, melancólico e contemplativo, mas também consigo ser solar, positivo, leve e ter um sentido de humor que me ajuda a viver a acreditar no futuro.

O que gosta de fazer quando não está a trabalhar?
Andar a pé, cuidar das minhas plantas e de cozinhar. Tenho uma filha vegetariana, faço vários pratos vegetarianos, não sou especialista em nada, só não faço doces.

A música continua a funcionar como inspiração?
Sempre. Atribuo uma playlist a cada personagem e isso ajuda-me na construção. Os espetáculos que enceno têm uma espécie de canção chave, ou na banda sonora ou na construção, na peça “A Praia” é o “Lady Sings The Blues”, da Billy Holiday, porque tem um certo lado melancólico que combina bem com a história.

O espetáculo estreou em Lisboa há dois meses, o que traz de novo para o Porto?
Aqui há mais proximidade entre os atores e o público, o que é ótimo, isso cria mais intimidade. Temos menos profundidade em palco, há coisas que se perdem do ponto de vista visual e estético, mas ganha em relação à proximidade com o público. Diria que ganha mais do que perde porque é na proximidade e na relação com o espetador que o conquistamos, acredito que aqui a peça terá uma outra dimensão e iremos conseguir descobrir e fazer coisas que não conseguimos fazer em Lisboa.

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