João Torres é um dos deputados do PS que coloca dúvidas sobre a viabilização do Orçamento do Estado. O vice presidente do grupo parlamentar e antigo secretário geral adjunto diz que é preciso encontrar uma forma do PS se distinguir “da extrema direita mas também, a nível mais macro, da direita no seu conjunto” e avisa que o partido tem tempo para tomar uma decisão.
Para o dirigente socialista o Governo não levou o esforço de aproximação até ao fim e os socialistas foram tão longe quanto Luís Montenegro, defendendo que há margem para o PS decidir o que entender e salvaguardando que “o secretário-geral não se deixa condicionar”, nem por criticas internas.
Para o deputado socialista, o PS está a fazer um processo de reflexão “saudável” e afasta a perceção de um partido dividido, embora defenda que os deputados devem “acompanhar as diligências que são feitas pela direção nacional do partido e em particular pelo secretário-geral” no processo de decisão sobre o sentido de voto.
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João Torres: “PS não tem pressa em anunciar decisão sobre o OE”
Porque é que é mais favorável a um chumbo do Orçamento do Estado? O Governo não se aproximou o suficiente?
Como é público, o secretário-geral do PS está a fazer um conjunto muito vasto de consultas. Esta terça-feira teve a oportunidade de reunir com os presidentes das federações e depois com o grupo parlamentar, numa reunião que foi longa mas, do meu ponto de vista, muito produtiva. O PS fala a uma só voz. No momento próprio, o secretário-geral do PS vai apresentar à Comissão Política Nacional, que é quem tem competências próprias para o efeito, uma proposta com uma indicação de voto. A sua questão prende-se a uma intervenção que fiz numa reunião à porta fechada, em que as pessoas tiveram a oportunidade de expressar os seus pontos de vista, sem atender a que pudessem ser tornados públicos. Mais do que ser a favor ou pela abstenção do PS no Orçamento do Estado, o que acho que é importante é que fique claro, independentemente da decisão que o PS vier a tomar, e que eu apoiarei, que o Governo fez um esforço de aproximação não completo, aliás, muito longe disso, em relação às propostas que do PS, muito em particular as duas alternativas em relação ao IRC.
Na reunião do grupo parlamentar viu-se um partido dividido sobre o que quer para o futuro?
De todo. Não é verdade. O PS não está mesmo dividido. Acredito que algumas pessoas, da leitura que fazem dos órgãos de comunicação social, que foram obtendo fontes e que, aliás, muitas vezes deturpam um bocadinho o sentido ou o tom de quem faz declarações dentro de uma sala onde decorre uma reunião privada, acredito que as pessoas possam ficar um pouco com essa ideia mas isso não é absolutamente verdade. Acho que houve pessoas que foram mais taxativas na defesa de uma ou de outra posição, mas no essencial, toda a gente, ou a maioria das pessoas que interveio, naturalmente tem dúvidas. A dúvida em abstrato é muito plausível sobretudo quando discutimos questões desta complexidade e desta natureza.
O secretário-geral não está encostado à parede para tomar uma decisão face à outra?
Não, mas eu insisto, mais do que me pronunciar sobre a reunião em concreto, o que aliás procurarei mesmo não fazer, o secretário-geral do PS é um homem livre, como são todos os militantes, mas é livre também pela sua própria natureza, que todos nós conhecemos, que os portugueses reconhecem, e por isso parece-me que nunca o secretário-geral do PS se sentirá condicionado a expressar a sua decisão final sobre esta matéria.
E o país entenderá essa posição, caso o PS opte por rejeitar o Orçamento de Estado, depois de Pedro Nuno Santos já ter reconhecido que existiu uma aproximação nas duas medidas?
O Partido Socialista decidiu focar duas áreas do Orçamento do Estado entre dezenas ou centenas que poderia ter escolhido. Uma proposta de Orçamento é, antes de mais, uma lei que tem um conjunto muito vasto de artigos e reflete nos mapas financeiros e orçamentais um vasto conjunto de políticas públicas e de medidas de política que manifestamente são hoje de direita no nosso país. A natureza do atual PSD não é diferente da natureza do de Pedro Passos Coelho. O PSD não é o que foi na década de 90, ou o que foi na década de 80, ou mesmo na década de 70 quando foi criado. É hoje um partido muito mais liberal, é um partido verdadeiramente neoliberal. Com certeza que se distingue da Iniciativa Liberal, mas é um partido que tem claramente uma tendência mais à direita, sobretudo no campo económico, mas também no campo social, face há uns anos.
Mais “Passista” do que “Cavaquista”, como quer Luís Montenegro?
Tenho essa impressão, não querendo bipolarizar em torno dessas duas personalidades, até porque, paradoxalmente, uma delas tenha sido mais vocal na defesa do primeiro-ministro e não tenha sido Pedro Passos Coelho. Agora, o PS podia ter optado por apresentar 5, 10 ou 15 áreas onde pretenderia chegar a um acordo com o Governo. Escolheu apenas estas duas e a contrapartida para que o Governo fosse ao encontro das medidas do PS na fiscalidade, no IRS Jovem e no IRC, é a viabilização de todo um orçamento de direita.
IRS Jovem. “O PS, aparentemente, já livrou o país de uma péssima medida”
Mas só agora entrou no discurso a questão de terem que ver o documento porque há centenas de medidas. Isto é uma tentativa de ganhar tempo para perceber a postura do PSD durante os próximos dias ou semanas?
Não foi só agora que o PS disse que precisava de ver o Orçamento do Estado. Mas, em todo caso, nós só procuramos como contrapartida para viabilizar um Orçamento que é de direita, duas áreas onde, do meu ponto de vista, o Governo não teria outra opção que não a de fazer um esforço muito maior do que o que foi feito para ir ao encontro do PS. Já para não dizer que, em relação ao IRS Jovem, o PS, aparentemente, já livrou o país de uma péssima medida de política pública, que era regressiva e flagrantemente violadora, segundo muitos constitucionalistas, dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
E o próprio primeiro-ministro já deu esse mérito ao PS ao dizer que esta proposta do IRS Jovem está melhor? Não há aqui capital político que permita ao PS viabilizar este Orçamento sem fantasmas?
É uma matéria que terá de ser devidamente ponderada. Não se fique com a ideia de que o Governo fez um esforço de aproximação maior do que o PS fez. Quem lançou o IRS Jovem em Portugal foi, e bem, o PS, mas a proposta que inicialmente foi apresentada por Luís Montenegro, e apoiada nessa altura por vários membros do Governo de forma absolutamente acrítica, era um escândalo para o nosso país. No que diz respeito ao IRC, também não é uma discussão propriamente nova. O PS, desde há muito tempo, isso aconteceu na campanha das eleições legislativas de 2022, que defende uma descida seletiva do IRC. Essa discussão já foi travada, por exemplo, entre António Costa e Rui Rio.
Foi um dos temas principais dessa campanha
As posições do PS sobre essa matéria são conhecidas, e refletem também, neste campo em específico, uma visão e um modelo de sociedade e de fiscalidade para as nossas empresas. Ora, se Luís Montenegro não é capaz de se aproximar nestas duas medidas, sendo que fizeram uma boa aproximação no IRS Jovem mas não uma aproximação total e uma muito pálida ou quase inexistente no caso do IRC, se não são capazes de o fazer, com toda a sinceridade, o caminho fica aberto para o PS em consciência, ouvindo as pessoas que entender dever ouvir, tomar uma qualquer de duas decisões: ou viabilizar o Orçamento do Estado, abstendo-se, ou votar contra. Porque também é muito importante que sobretudo num momento em que a extrema-direita tem, infelizmente, mais força na Assembleia da República, é muito importante que o PS se distinga da extrema-direita, mas, numa perspetiva mais macro, da direita no seu conjunto.
Decisão sobre o Orçamento. “O Partido Socialista não tem pressas em dar uma nota pública” sobre a decisão
E é isso que fica em causa caso viabilize o Orçamento do Estado, é que essa distinção seja mais difícil de fazer? Ou vou até mais longe, que uma viabilização possa entregar a liderança da oposição ao Chega?
Isso é a sua interpretação, que eu compreendo. É deste equilíbrio fino de diferentes variações, ou de diferentes interpretações, posturas e atitudes, face a uma ou outra matéria, que o PS terá de se pronunciar mas não faço um caso disto. As democracias mais maduras da União Europeia levam, por vezes, semanas e meses a discutir orçamentos do Estado. Imagino como deverá ser em contínuo a negociação no Governo alemão, que é chefiado por um social democrata mas que integra liberais e verdes. Imagino, como é relativamente público, como será a formar um Governo na Bélgica.
Vai me dizer que vamos ter de esperar por 31 de outubro para conhecer a posição do PS?
Não sei. Acho que o Partido Socialista não tem pressas em relação a dar uma nota pública sobre esta matéria e que isto tem de ser encarado como uma dimensão da própria democracia, da vitalidade do nosso sistema e do nosso regime democrático.
Já falou do processo de auscultação e de reflexão que está a ser feito dentro do PS. Ao dia de hoje, tendo ouvido já as pessoas que foram ouvidas, o PS estará mais perto ou mais longe de viabilizar este Orçamento?
Não lhe vou responder a essa questão. Cada um teve oportunidade, ou tem tido oportunidade, junto do secretário-geral, em diferentes instâncias, de transmitir a sua sensibilidade. Às vezes as sensibilidades que são transmitidas não são definitivas, na perspectiva de que são apenas contributos para uma boa discussão, e desse ponto de vista o ambiente da reunião do grupo parlamentar foi extraordinariamente saudável, como acredito que estará a ser em outras reuniões que o secretário-geral do PS tem promovido e que têm sido também públicas.
Mas há posições públicas, por exemplo de Francisco Assis, que tem pressionado nos últimos dias para uma viabilização. Esta pressão de figuras do PS não retira margem a Pedro Nuno de Santos para recusar o Orçamento?
Acho é que todos devemos acompanhar as diligências que são feitas pela direção nacional do partido e em particular pelo secretário-geral. E aquilo que me foca, a mim, enquanto dirigente do PS, mas também enquanto militante e como cidadão, é em dar conta da estratégia que o PS tem vindo a seguir, porque parece-me ser acertada. A mim, por exemplo, parece-me muito correto que o PS, pela voz do secretário-geral, tenha aberto um processo negocial com o Governo. A forma como foi encerrado o processo, como foi ontem anunciado pelo primeiro-ministro, é que pode merecer interpretações distintas consoante o nosso ponto de vista. Não censuro ninguém por exprimir a sua opinião pública, confesso-lhe que faço parte daqueles que considera mais importante dar nota e esclarecimento da posição do PS enquanto direção do que propriamente influenciar publicamente as decisões do secretário-geral por intermédio da minha palavra pública. Mas, lá está, essa também é uma obrigação minha enquanto dirigente do PS embora pense que todos os militantes devem contribuir para isso, evidentemente não colocando em causa a liberdade de expressão, como é boa e velha tradição do Partido Socialista.
Não discorda do processo negocial que Pedro Nuno iniciou, ou seja, não era mais benéfico para o PS ter assumido uma posição de princípio de viabilizar sem querer discutir medidas ou rejeitar desde logo? Valeu a pena entrar neste diálogo e nesta negociação?
Não há uma chave certa para liderar um processo desta natureza mas isso faz parte da normalidade da democracia. Insisto muito nisto: faz parte da normalidade democrática. Pode-se ter questionado o mesmo em relação ao primeiro-ministro e o que eu denoto é que desde o dia em que o PS reconheceu a derrota nas eleições legislativas, tem havido um ónus muito forte sobre o PS para aprovar um Orçamento do Estado que é de direita, como bem podemos testemunhar. Não digo isto meramente por preconceito político. Olho para as políticas públicas, por exemplo algumas das que foram incluídas no acordo de concertação social, que são manifestamente de direita, como por exemplo a facilitação do acesso a seguros de saúde, quando o PS sempre disse que era a intenção deste Governo fazer um caminho de privatização do SNS e ele tem sido feito. E portanto o PS também não pode desonrar os valores e as convicções dos cidadãos que confiaram o seu voto ao PS nas últimas eleições legislativas.
E como é que se desbloqueia a situação?
Encontraremos seguramente uma forma, quer por via da abstenção quer do voto contra, de fazer o melhor equilíbrio possível e por isso o secretário-geral do PS dispõe de todas as condições para tomar uma decisão nesse sentido, para apresentá-la à comissão política nacional e não tenho nada a ideia, testemunhando na primeira fila o que tem sido este processo dentro do PS, parece-me que há muito menos tensões do que muitas vezes se quer fazer parecer. Cada um quer dar o seu contributo, sublinhar um ponto de vista ou uma sensibilidade e isso é positivo. O Partido Socialista é mesmo um partido democrático nestas matérias.
Desfecho: viabilização ou eleições? “Se alguém mostrou querer eleições foi Montenegro”
O PS acredita que Luís Montenegro está empenhado nestas negociações sem estar à procura de pistas alternativas? Depois da entrevista do primeiro-ministro em que afasta mais uma vez negociações com o Chega. Há um empenho de Montenegro em negociar só com o PS?
Em relação ao IRS Jovem e ao IRC, há várias bancadas, sobretudo no que diz respeito ao IRC, presumo, que concordam com a visão de Luís Montenegro. Sabe que bancadas são essas? É a do CDS-PP, da Iniciativa Liberal e do partido Chega. Se Luís Montenegro considera que a primeira missão que tem, e que não pode de forma alguma burilar, enquanto primeiro-ministro, é o compromisso de descer os impostos para as empresas, e em particular para as empresas que têm uma maior dimensão, então, se não quer fazer um acordo à direita com os partidos que partilham e comungam dessa visão, tem que fazer um enorme esforço de aproximação em relação ao PS. E, é preciso dizer isto, não foi totalmente ao encontro, manifestamente, pelo contrário, das políticas que o PS decidiu trazer a debate para a discussão do Orçamento do Estado.
Caso o Orçamento seja chumbado, o país deve ir a eleições antecipadas?
Não vou fazer esse tipo de julgamento. O PS, e muito menos o seu secretário-geral, jamais disse que queria eleições antecipadas. Muito pelo contrário, se durante um longo período de tempo, destes quase seis meses de governação, houve alguma sensibilidade ou alguma formação político-partidária ou algum dirigente político-partidário que pareceu mostrar uma vontade de ir a eleições, pelo menos numa primeira fase, foi mesmo o PSD e Luís Montenegro.
Porque é que para o PS não compensa mais ir a eleições já. Não seria mais benéfico para Pedro Nuno Santos poder ir às urnas já? Acha que daqui a dois anos ou quatro terá a oportunidade ainda de ser esse secretário-geral ir às urnas?
Se há coisa que nós devemos apontar, do meu ponto de vista, como muito positiva em todo este processo é que esses cálculos eleitorais, essas táticas, não estão a presidir à reflexão do Partido Socialista e à reflexão do secretário-geral. E por isso, nós não estamos nem vamos tomar nenhuma decisão com base nos cálculos e nas táticas eleitorais que também são legítimas em política. Vamos tomar uma decisão tendo em conta a votação e a representação que foi investida ao Partido Socialista nas últimas eleições legislativas e considerando também e sempre, em primeiro lugar, o interesse nacional.