(Entrevista republicada depois da medalha de bronze de Jorge Fonseca nos Jogos Olímpicos de Tóquio)
Chegamos ao piso 2 do Multidesportivo de Alvalade, percorremos o longo corredor com balneários de um lado e salas de treino no outro, paramos a meio. Ao abrir a porta, Jorge Fonseca está sozinho, sentado numa mesa de apoio, de phones nos ouvidos. O tamanho da roupa é grande, mas os músculos dos braços transformam a vestimenta numa versão slim fit. É um gigante, maior ainda do que o judoca que está à nossa frente. Nem 25 anos tem, mas quase pode contar uma história de vida de meio século – nascido em São Tomé e Príncipe, chegou a Portugal aos 11 anos, começou tarde no desporto quando andava na escola da Damaia, foi campeão europeu de sub-23 em 2013 e tem somado vários pódios em Taças do Mundo e da Europa. Este domingo competiu no Grand Prix de Dusseldorf, uma semana depois do bronze no Grand Slam de Paris, tendo perdido na fase preliminar com o japonês Aaron Wolf no ponto dourado (antes tinha vencido o alemão Philipp Galandi por ippon). Pelo meio, foi pai com 17 anos e enfrentou um cancro. Quer acabar o 12.º ano e fazer o curso de polícia. Confessa, com um sorriso nos lábios, que já foi detido duas vezes no Japão, o país onde esperava cumprir um dos maiores sonhos da carreira: sagrar-se campeão olímpico em Tóquio-2020. Não conseguiu.
“Tive tempos muito bons em São Tomé. Vivia com o meu pai e com a minha madrasta. Aproveitei tudo o que de bom uma criança podia ter num país como aquele. Só estudava até vir para Portugal, de desporto nada. Quando vim para cá, aos 11 anos, tive um choque grande, porque tinha de ficar muito mais vezes em casa do que antigamente. Vivia com a minha mãe e o meu padrasto, saía de vez em quando com eles, mas muita coisa mudou. Ainda tinha aqueles jogos da bola entre miúdos mas não tinha jeito nenhum”, recorda a propósito dos primeiros tempos em Portugal, antes de ver no judo uma janela de oportunidade para uma melhor integração na nova realidade.
“O meu treinador, o Pedro Soares, dava aulas na escola da Damaia. Ia olhando pela janela para ver como era, no dia a seguir voltava… Fui começando a gostar. Ainda não era assim nada de especial, mas pedi autorização à minha mãe e fui experimentar. Sabes, eu não era assim, era um bocado gordinho… Comecei a investir no trabalho do meu corpo para ser um grande judoca”.
Mas teve de dar bem ao cabedal para ficar assim…
Fiz muita musculação, mesmo muita. Nem imaginas!
(E imaginamos, claro. Jorge Fonseca não é muito alto mas só aqueles braços falam por si)
Mas os miúdos metiam-se com o Jorge na escola?
Não, nada disso. Mas se não se metiam antes, assim muito menos. As pessoas têm muito medo de mim mas eu não faço mal a ninguém. O corpo não quer dizer nada, a cabeça é muito mais importante. Sabias disso?
Percebemos nesta parte da conversa que o fio da agulha mudou de vez para o mundo do judo. Jorge Fonseca teve um forte handicap – começar tão tarde na modalidade. Mas superou-o.
“Com o judo conheci outro tipo de realidade que não sabia existir. Era um rapaz muito rebelde, agitador. Como estava sempre em casa, começava a ficar stressado, tinha de fazer qualquer coisa…”
Ainda se lembra da última vez em que esteve numa zaragata?
Zaragatas? Nada disso. Como era um miúdo gordinho e forte, tinham receio de se meterem comigo. Ninguém se metia. Eu até gostava que se metessem, assim tinha mais piada e ainda me divertia, mas era um bocado chato porque no máximo diziam ‘olha aquele gordinho’, mais nada.
Diziam ao pé do Jorge?
Não, mandavam a boca ao longe, claro. Depois quando me viam pediam desculpa, diziam ‘sabes como é Jorge’… Coisa de miúdos, nem dava importância.
A aventura no judo começou a ganhar contornos internacionais. Jorge Fonseca ainda mal se tinha habituado à nova realidade de Portugal e da Damaia e já estava a viajar pela Europa em competições contra os melhores da sua idade, quase todos miúdos que começaram no desporto desde cedo. Mais umas viagens de avião, mais um choque de realidades. Mas nada como ter sido pai com apenas 17 anos. Até o tom de voz altera, fica mais firme.
“Mudou a minha vida. Mudou mesmo. Era uma pessoa que não dava grande valor às coisas, não me preocupava com nada, qualquer coisa a minha mãe ou o meu pai resolviam. Tive de pensar assim: ‘Quem é que vai dar de comer ao meu filho?’. A minha mãe tem emprego mas não pode sustentar a família toda. Fui trabalhar para um bar a apanhar copos, para ganhar mais algum e dar de comer ao meu filho, e comecei a ganhar outra responsabilidade porque amadureci. Tinha um filho, tinha de dar de comer, tinha de levar à escola… Ele dependia de mim e a minha mãe não queria que fosse um pai qualquer, queria que fosse um exemplo. Fiz-me homem. Quando entrei no projeto olímpico e como recebia também do Sporting, passei a dedicar-me apenas ao judo. Esse é o meu trabalho. Mas pelo meu filho, faria o que fosse preciso”, atira de um fôlego só, sem interrupções, às vezes atropelando as palavras.
“Começar a viajar pela Europa em competição foi um choque tremendo para mim, porque não tinha noção de nada daquilo. Tudo é diferente, até o próprio judo que se pratica e ao qual não estava habituado. No início funcionava mais à base da força, não tinha muita técnica. Não correu bem. Fui-me habituando, acreditei em mim e percebi que podia ser tão bom como eles. Era um miúdo de São Tomé, que vivia na Damaia, e de repente andava na Rússia, na Bulgária, ainda por cima a falar mal inglês. Com o tempo aprendi a gostar desta vida, a conhecer as cidades onde estava nos tempos livres a aprender outras culturas, outros hábitos”, diz. “A vitória no Campeonato da Europa de Sub-23, na Bulgária, mudou a minha carreira. Tinha ganho medalhas em Taças da Europa e do Mundo mas nada daquela dimensão”, assume, antes de explicar que aquele dia tinha tudo para correr mal e vir mais cedo para casa.
“Não achava que fosse possível porque nas provas anteriores tinha perdido com quase todos aqueles adversários. Mas ao mesmo tempo tinha vontade de surpreender, porque tinha ficado em quinto no Europeu de juniores. Cheguei à meia-final e perdi. Fui disputar o bronze e perdi. O meu treinador ficou passado comigo, a perguntar como era possível. E aquilo ficou-me na cabeça. Prometi a mim mesmo que não podia ser assim e foi tudo à frente. Ainda hoje é um dos meus países preferidos, a Bulgária [a prova disputou-se em Samokov]. O outro é a França, mais especificamente Paris. Adoro aquela cidade, é o sítio onde melhor me receberam, onde me deram mais apoio nas bancadas. Costumo sempre andar por lá, até a seguir à competição. Se notei alguma diferença depois dos ataques terroristas? Nada, tudo na boa. Há sempre polícias e seguranças em tudo o que é sítio mas habituei-me a isso por lá”.
Sei também que quer ser polícia. Como vai isso?
Comecei a pensar nisso quando tinha mais ou menos 18 anos. Parei e pensei o que queria fazer da vida além do judo. Não me via numa secretária, isso não. Quero ajudar as pessoas boas e decidi que seria polícia. Tinha essa curiosidade, ainda hoje tenho.
Já começou o curso?
Ainda não, porque no ano passado foi só Jogos Olímpicos, não consegui fazer o 12.º ano. Só falta isso e inscrevo-me logo no curso. É uma coisa que me vai fazer bem.
E como é que um futuro polícia acaba detido no Japão?
Eh pá, isso… Foi assim: chegámos a um semáforo onde o sinal do peão estava vermelho mas olhámos para os dois lados, não vinha nenhum carro e atravessámos a estrada. Tivemos azar que estavam uns polícias lá, levaram-nos logo para a esquadra. Gosto muito do Japão mas é mesmo uma realidade diferente, cá podia fazer isso sem problemas. Eles são assim, é diretos para a esquadra e não nos livramos da multa.
Quanto foi?
Nem sei, o meu selecionador é que tratou disso, não me tocou a mim.
Ainda por cima eles não falavam bem inglês, não era?
E mais isso ainda. Eu pensei: ‘Ok, o semáforo fechou, não vem ninguém a passar, não há nenhum carro, qual era o problema?’. Na esquadra ainda ligaram a outro polícia que também não falava muito inglês, nós preocupados porque queríamos treinar… Ainda foi um par de horas nisto. Nunca tinha vivido nada assim, só mesmo no Japão. Mas houve outra…
Outra?
Uma vez fomos correr sem t-shirt, a polícia mandou-nos parar e tivemos também de ir para a esquadra por causa disso. É um país cheio de regras mas ao mesmo tempo é o melhor sítio para treinar e estagiar, porque foi onde o judo nasceu e onde temos mais judocas de alto nível para treinarmos. Aprendemos muito com eles, é um lugar que abre muitas portas.
É em Tóquio-2020 que vai ser campeão olímpico?
Vou trabalhar para isso. Tenho de acreditar que vou conseguir.
O que faltou no Rio de Janeiro para chegar às medalhas?
Vendo agora, sei que dei tudo mas faltava dar um bocado mais ainda. Senti que devia ter dado ainda mais na minha preparação. Fui ao limite mas foi um limite onde acho que podia ter ido ainda um pouco mais além. Ganhei de início em nove segundos mas a seguir perdi contra o judoca que foi campeão olímpico. E estava a ganhar a 20 segundos do final… Na minha cabeça ainda está isso, que podia ter ido mais longe. Já estava cansado, se calhar foi o problema. Faltava qualquer coisa, hoje admito isso. Não quero voltar a viver aquele momento de frustração que tive no Rio, não pode ser. Por isso, quero chegar ao top-3 da minha categoria e, quando for a altura dos Jogos, melhorar aquilo que fiz no ano passado.
É esse o seu principal objetivo?
Também. Este ano tenho o Campeonato da Europa e a Liga dos Campeões de Clubes que se vai realizar no novo pavilhão do Sporting – e isso é muito importante para nós, para o clube e para o Pedro Soares. Já ficámos três vezes em terceiro lugar, chega de bronze. Queremos o primeiro, o ouro! Até para o nosso treinador. Nunca vi ninguém viver tanto aquilo como ele, é um espetáculo à parte. Mas o que me está mesmo entalado aqui na garganta é o Campeonato do Mundo. Fiquei em sétimo e não gostei. Não gostei, nada.
Numa semana normal sem provas, quantas horas treina?
Três horas de manhã e outras três à tarde, domingo folgamos, sábado de manhã ainda temos as séries de corrida, mesmo para rebentar. É fazer as contas, mais de 30 horas de trabalho para chegarmos a uma prova onde podemos ganhar ou perder em segundos.
Deixamos para a parte final um tema delicado e que gerou muita polémica, com comunicados da Federação de Judo e do Sporting – o cancro que teve de superar em 2015. “Se sou um exemplo por isso? Eu quero é ser um exemplo para o meu filho!”, antecipa.
“Estava lesionado e apenas preocupado em pôr o joelho bom. Um dia a seguir ao treino, um colega meu olhou para mim e perguntou-me o que era aquilo que tinha na perna. Era uma espécie de bola. Eu sabia que tinha aquilo mas não ligava – como só aparecia a seguir aos treinos de maior intensidade e desaparecia com descanso, passava ao lado. Queria era cuidar do joelho porque tinha o ligamento todo rebentado. Mas ele disse-me que tinha de ir ao médico ver aquilo. Fiz uma ecografia, foi-me detetado um tumor. Foi um momento difícil”, admite.
“Mas o que mais me incomodou foi a forma como fui exposto na doença. Não devia ser assim, escreverem o que tinha sem me dizerem nada. Não me respeitaram. Não queria que se soubesse naquela altura por duas razões: para não preocupar as pessoas e porque sabia que tinha de enfrentar aquele problema, desse por onde desse. Mas com isso comecei a ser tratado como coitado, era o que não queria. Custava-me receber aquelas mensagens, ainda faziam pior… Foi bom sentir as pessoas comigo, mas não queria que fosse assim. Consegui superar tudo, acabou!”.
E como foi esse período com o seu filho?
Foi complicado, porque quando fazia os tratamentos estava sempre mal disposto, de cara trancada, e tinha ali ao meu lado o meu filho que me fazia rir. Olhava e sabia que não podia desistir por ele. Chorei sem que ninguém percebesse, mas a verdade é que foi o sorriso de uma criança, da minha criança, que mais me ajudou a superar isto. Cheguei a ir treinar doente na altura dos tratamentos, ficava arrasado, mas quando estava com ele ganhava força. Eu quero ser um exemplo para o meu filho mas ele também já foi para mim…
E para os outros?
Sabes o que mais me marca? Quando estou nos treinos ou nas provas e vêm ter comigo miúdos a dizer que querem ser como eu. Fico sem jeito mas muito contente. Eu não sei fazer quase nada e perguntam-me o que acho que eles devem fazer… É bom, sinto-me bem.
E tem motivos para isso, acrescentamos nós.