Falta de planeamento, contratos sem fiscalização, recurso primordial ao ajuste direto e a contratação de empreiteiros sem habilitações. O Tribunal de Contas (TdC) analisou os contratos relativos à Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que decorreu em agosto de 2023, em Portugal, e deixa várias críticas à forma como o evento foi planeado. Entre empreitadas, aquisição de serviços e locação de bens, a JMJ de Lisboa custou ao erário público mais de 65 milhões de euros, segundo as contas do TdC.
De acordo com o relatório do tribunal, divulgado esta quarta-feira, não existiu um “planeamento efetivo” da JMJ, mais de metade do valor dos contratos foi adjudicado por ajuste direto (o que prejudicou o interesse público), não foram reportados 17 contratos (no valor total de quase um milhão de euros) e alguns dos empreiteiros subcontratados pela Mota Engil não tinham habilitações para o construir o Altar-Palco do evento.
Maioria dos gastos foram por ajuste direto. TdC critica regime de exceção para a JMJ
O TdC começa por criticar a falta de um planeamento efetivo da JMJ, realçando que 55% do valor adjudicado foi em contratos celebrados em regime de ajuste direto, ou seja, sem concurso público. Se a estes se somarem os contratos feitos por ajuste direto simplificado (para aquisição de bens ou serviços de valor inferior a 5 mil euros) e por consulta prévia (em que são consultadas três entidades no mercado), o valor gasto sobe para cerca de 63% do total.
Jornada da Juventude. Fundação JMJ teve lucros de cerca de 20 milhões de euros
Recorde-se que o governo aprovou, em junho de 2022, uma lei que permitiu que os contratos realizados no âmbito da Jornada Mundial da Juventude pudessem beneficiar de um regime especial, alargando os limites a partir do qual é obrigatória a realização de um concurso público. Assim, a contratação de obras poderia ser feita de forma direta para valores até aos 5 milhões e 350 mil euros, ao passo que os contratos para aquisição de bens e serviços estariam livres dessa obrigação para despesas até aos 139 mil euros — limiares bem acima do normal: segundo o Código de Contratação Pública, os limiares são de 30 e 20 mil euros, respetivamente.
No relatório, intitulado “Ação de Fiscalização concomitante – Contratos celebrados no âmbito da Jornada Mundial da Juventude 2023”, o TdC critica a opção tomada pelo governo e recomenda que em “situações futuras e relacionadas com a realização de eventos que impliquem a celebração de contratos públicos, diligenciem atempadamente pela sua organização, não aprovando regimes especiais que derroguem os procedimentos que salvaguardam a concorrência”.
Lembrando que a realização da JMJ em Lisboa foi anunciada pelo Vaticano em janeiro de 2019, o TdC diz que “não são inteiramente razoáveis as razões invocadas naquele regime especial permissivo para o ajuste direto”. O TdC sublinha que, mesmo admitindo que passou a existir “uma situação de urgência” na celebração dos contratos, o governo “poderia ter optado por um regime menos restritivo da concorrência”, como a “consulta prévia com convite a, pelo menos, 5 entidades”, o que, sublinham os juízes, teria permitido “a obtenção de mais propostas para escolha da melhor e assim também ficaria melhor assegurado o interesse público”.
Altar-Palco foi construído por empresas sem habilitação para tal
Ao TdC foram remetidos 432 contratos relacionados com a JMJ, num valor de 64,1 milhões de euros. Desses apenas oito (ou seja, cerca de 2%) foram sujeitas a fiscalização prévia, o procedimento habitual mas cuja obrigatoriedade foi também dispensada pelo regime especial aprovado pelo governo. A maior parte dos contratos foi enviada para fiscalização dos juízes do TdC já depois de ter sido executada (a chamada fiscalização concomitante), num total de 403. Ainda assim, o tribunal liderado por José Tavares revela que 17 contratos — celebrados pelos municípios de Lisboa e Loures, as autarquias que receberam o evento, e o governo (através da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros) — não foram reportados ao TdC, apesar de o Tribunal ter “solicitado informação sobre todos os contratos celebrados para a JMJ2023”.
Câmara de Lisboa diz que despesa da JMJ ficou um milhão de euros abaixo dos 35 milhões previstos
Numa crítica direta ao governo e às autarquias, o tribunal pede que, daqui em diante, estas entidades, sempre que “interpeladas pelo TdC, remetam a documentação/contratos, respondam com rigor e remetam todos os elementos solicitados”.
Numa conclusão de cariz operacional, o TdC adianta também que a construção do polémico Altar-Palco do Parque Tejo não respeitou as exigências legais. Em causa está o facto de dois empreiteiros, subcontratados pela construtora Mota Engil (a empresa à qual foi adjudicada a construção da estrutura), não possuírem a “habilitação legal necessária para executar os trabalhos”, uma situação que, critica o TdC, “não foi acautelada pelo dono da obra”.
Os juízes do TdC explicam que as duas empresas subcontratadas, a Stagetec e Proyectos Onddi não são detentoras da habilitação legal exigível para construir o altar-palco, isto, é, o alvará emitido pelo Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção. No segundo caso, esse documento nem sequer foi solicitado pela Sociedade de Reabilitação Urbana de Lisboa, a empresa municipal responsável pela JMJ 2023.
De entre os mais de 65,1 milhões de euros gastos na JMJ 2023 (um valor que tem em conta os contratos identificados pelo TdC), a maior parte (34,6 milhões, ou 53%) dizem respeito a empreitadas, enquanto as aquisições de serviços totalizaram outros 19,8 milhões de euros (30% do total). O restante diz respeito a locação e aquisição de bens. Segundo o TdC, o município de Lisboa reportou o maior número de contratos, mas foi o governo (através da Presidência do Conselho de Ministros) a gastar mais. Dos 432 contratos analisados pelo tribunal, cerca de 70 “consubstanciam investimentos, permitindo utilizações futuras para outras finalidades”, refere a juíza Sofia David, relatora do relatório, num valor próximo dos 34 milhões de euros. Ou seja, cerca de metade do valor gasto na JMJ representa um investimento que não se esgota com o fim do evento.
O contrato de valor mais elevado é da adaptação do Parque Norte do complexo logístico da Bobadela, uma obra adjudicada pela Infraestruturas de Portugal, e que custou praticamente 8,2 milhões de euros. Segue-se a reabilitação do aterro sanitário de Beirolas (que custou 7 milhões de euros), o fornecimento de áudio, vídeo e iluminação para o Parque Tejo (6 milhões), a preparação dos terrenos da zona ribeirinha da Bobadela (4,3 milhões), a organização de host broadcasting, ou seja, os serviços de transmissão mundial do evento assegurados pela RTP (3,7 milhões), a construção da ponte pedonal sobre o Rio Trancão (3,2 milhões) e a construção do Altar-Palco (3 milhões).
Equipa de Sá Fernandes em funções até final de 2024 custa 35 mil euros/mês
Quanto ao Altar-Palco, a empreitada mais polémica das JMJ, o TdC confirma que o custo final foi de 2 milhões e 959 mil euros, o que representa uma decréscimo de 30% face aos 4,2 milhões de euros inicialmente adjudicados. Recorde-se que a alteração da estrutura, de modo a diminuir o custo do altar, foi decidida depois de o Observador ter revelado o custo do contrato celebrado entre a SRU e a Mota Engil.
O relatório do TdC revela também quais os custos da erário público com as remunerações dos membros do Grupo de Projeto da Jornada Mundial da Juventude. Em 19 meses, entre julho de 2021 e maio de 2023, foram gastos 679 mil euros em vencimentos com a equipa liderada pelo advogado José Sá Fernandes (ex-vereador do Ambiente da Câmara de Lisboa). No entanto, os juízes do TdC admitem que esse valor possa vir a duplicar, uma vez que o referido grupo de projeto estará em funções de 31 de dezembro de 2024. Sendo assim, a equipa de coordenação da JMJ vai acabar por custar mais de 1,3 milhões de euros (cerca de 35 mil euros por mês).