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[Reportagem publicada originalmente a 2 de fevereiro de 2018 e republicada a 13 de novembro de 2019, a propósito do Grammy Latino de excelência musical atribuído esta quarta-feira ao músico português]
É ribatejano da Chamusca, mas o “destino” (e a herança de uma casa tremenda de tamanho como tremenda de histórias) levou-o para Mogofores, Anadia. Partilha a casa com Maria-Gabriela, a mulher, os cozinhados às vezes “pesados” desta, cães e duas éguas — que, apesar do picadeiro que tem, deixou de montar há poucos anos. É também em Mogofores, num estúdio no segundo piso, que José Cid ainda grava. Mas só grava num “gravadorzinho” analógico — avesso que é à tecnologia “desalmada”. O novíssimo disco do cantor e compositor de 75 anos saiu em janeiro: Clube dos Corações Solitários do Capitão Cid. E foi igualmente neste mês que foi anunciado que regressará ao Festival da Canção (que venceu em 1980) com o tema “O Som da Guitarra é a Alma de um Povo”. A tarde inteira e até ser já noite, o Observador esteve à conversa com o músico. Percorreu-lhe a casa e a vida. E nada, ou quase nada, ficou por revolver na memória, dos amores à obra-prima, da família à política, e a música, sempre a música.
Átrio: a ternura (que tardaria mas perdura) por Maria-Gabriela
Conheceu Maria-Gabriela Carrascalão, então jornalista refugiada timorense, na Austrália após um concerto. “Fiz a abertura dos Men at Work em 1983. Ela entrevistou-me e tivemos uma paixão bastante… jovem. Mas não continuou. Só trinta-e-tal anos depois é que casámos”, conta. O relacionamento entre ambos é um relacionamento de “tranquilidade, cumplicidade e ternura”, garante. Mas garante também que nunca foi pinga-amor quando jovem: “A minha única grande paixão foi a minha filha”.
Outra paixão além da música foi a equitação. Em 1991 sagrou-se vice-campeão nacional de saltos de obstáculos. “Saltei 2,10 metros. Não é para qualquer um”, graceja. Hoje não compete mais, apesar de manter duas éguas (a par de um picadeiro com os obstáculos que outrora desafiou) na casa de Mogofores: “Mas ainda fiz parte da equipa portuguesa há três ou quatro anos”.
No átrio da casa guarda impresso (e ampliado) na parede um cartão da Mocidade Portuguesa. Mas garante que nunca foi da “falange salazarista” na infância e adolescência. “O que gostava na Mocidade era do lado desportivo: o atletismo, o ténis de mesa, era o que gostava. Quando tinha que marchar… estava sempre doente. Não tinha pachorra”, lembra agora o músico.
Sala: a “vingança poética” contra os Capitão Fausto
O disco 10.000 anos depois entre Vénus e Marte é ainda hoje, tantos anos depois de ser editado em 1978, um trabalho fundamental do rock progressivo. Não em Portugal: no mundo. “Quando o disco saiu disseram-me logo que não venderia. E a verdade é que na altura não vendeu. Diziam que éramos malucos, drogados. Mas se ouvires o último álbum dos Pink Floyd, eles são uns ‘cães’ ao pé de nós”, atira. Apesar da popularidade do disco na atualidade – o conceituado Sputnikmusic considerou-o um dos melhores de sempre daquele género –, Cid não o vê como a sua obra-prima: “O meu disco só com poesia do [Federico García] Lorca é brutal, por exemplo”.
O avô era guitarrista mas Cid recorda-se igualmente de o escutar ao piano. Acabou por ser uma primeira influência no percurso que escolheu. O pai nunca o foi. “Ele nem se interessava: só se interessava em saber quanto eu ganhava e quanto gastava.”
No álbum de estreia, Gazela, de 2012, os Capitão Fausto compuseram “Zecid”. O “homenageado” gostou tanto da canção que os convidou para almoçar em Mogofores. Mas não se ficou por aí. No álbum que agora apresentou, Clube dos Corações Solitários do Capitão Cid, o músico de 75 anos responde à letra, com uma canção na toada do rock da “miudagem”. “Foi a minha ‘vingança’ poética. Na canção eu digo que as ninfas fogem para a lagoa, tomam banho todas nuas, e eles ficam à toa”, graceja.
Cozinha: há passarinhos que chilreiam pelos corredores em Mogofores
Na casa de Mogofores é Maria-Gabriela quem cozinha. “Ela é fantástica a cozinhar. E faz coisas um bocadinho ‘pesadas’ para a minha idade. Guloso? Sou guloso, muito guloso. E também sou pré-diabético – mas controlo-me nos açucares”, garante.
Na cozinha de José Cid há “passarinhos” e o chilrear destes escuta-se ao longo dos (longos) corredores da casa. “Os canários cantam que se fartam! Os piriquitos – na verdade são uma espécie de ‘papagaios’ pequeninos – imitam-nos.”
Escadaria: os prémios (até o de Cutileiro) de vão de escada
Na escadaria de madeira rangedora guarda, esquecido, um prémio esculpido por João Cutileiro. Nunca deu importância a prémios, diz. “O meu prémio é não ter prémios; é passarmos por eles [na escadaria] e nem ligar nenhuma. Estão no sítio deles. E aqui passam noites sozinhos. Este prémio de Excelência Musical foi-me entregue pela Valentim de Carvalho quando gravei [com o Quarteto 1111] A Lenda D’El-Rei D. Sebastião. No ano a seguir, em 1971, ganhou o Zeca [Afonso] com as Cantigas do Maio.”
Percorrendo a casa centenária, encontram-se sobre as paredes várias plantas desta. “Foi o meu avô – que era Barão do Cruzeiro mas isso não lhe importava nada — que construiu esta casa. Depois foi do meu pai e agora é minha. Este casa podia ser Monumento Concelhio. E para uma casa construída há 110 anos… só preciso de ter cuidado com o telhado”, explica.
A avó e o avô eram vizinhos na infância, ambos de Mogofores. “Eles casaram-se por interesse. Mas deram-se sempre bem. As pessoas antes tinham mais equilíbrio nos relacionamentos, hoje é tudo mais complicado.”
Estúdio: cantor de intervenção (mas político não) contra Almaraz
Um estúdio no segundo piso (com um “gravadorzinho” analógico porque os computadores “não têm alma, são uma seca”) que é um exercício de resistência: “Quando deixar de subir as escadas, deixo de gravar.”
Escreveu uma canção politizada sobre a central nuclear de Almaraz quando regressava de Castelo Branco. Mas garante não ter ambição política. “Interesso-me pelo país. Não sou anti-republicano mas defendo a monarquia. Há menos corrupção, mais cultura, mais apoio à educação e à saúde. São sistemas políticos mais perfeitos”, garante.
Ainda compõe e grava. E diverte-se. Quando grava, grava no estúdio analógico do segundo piso. Mas assume-se: “O que sou é um cantor ao vivo, sempre fui”.
Fez-se músico de “ouvido”, a copiar e replicar, replicar e copiar, tantas vezes destruindo vinis (João Gilberto era “vítima” predileta) para retirar deles harmonias.
Exterior: a história triste de um salto quase mortal
Se o interior da casa é amplo o exterior é a perder de vista. O músico trocou definitivamente a Chamusca natal, no Ribatejo, pela “hidrográfica” Mogofores. “Herdei a casa, ‘caiu-me’ em cima. Vim para onde o destino quis.”
Nem todas as memórias dos saltos de obstáculos são memórias que recorde com saudade. “Em 1991 fui disputar um campeonato nacional e o cavalo morreu em prova com uma síncope cardíaca. Safei-me porque me atirei”, recorda.
Reportagem: Tiago Palma
Realização: Nuno Neves
Vídeo: Nuno Neves e Tomás Quitério
Edição: Nuno Neves com Tiago Palma
[Veja aqui o mini-documentário realizado em casa de José Cid]