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Francisco Hernandez (à esquerda) ao lado de José de Sousa (à direita) no bar Triple 20
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Francisco Hernandez (à esquerda) ao lado de José de Sousa (à direita) no bar Triple 20

Francisco Hernandez (à esquerda) ao lado de José de Sousa (à direita) no bar Triple 20

José de Sousa, o campeão de dardos português que acabou patrocinado por um narcotraficante espanhol

José de Sousa via-o como um bom amigo que o tinha ajudado a lançar no circuito internacional de dardos. Só que Kiko era, afinal, um traficante milionário e dono de um verdadeiro supermercado de droga.

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Não é que tivesse alguma urgência em conversar com Kiko. Queria falar com ele sobre qualquer coisa, provavelmente algum assunto relacionado com dardos — já nem se lembra bem. Ainda assim pareceu-lhe “estranho” que não tivesse atendido o telefone naquela manhã de 5 de outubro. “Quando eu lhe ligo, ele atende-me sempre. Que coisa estranha“, desabafa quase como se estivesse a reviver o momento José de Sousa, campeão de dardos português, mas a viver em Espanha há quase duas décadas. Começou a percorrer a sua lista de contactos e a ligar para algumas pessoas para ver se conseguia perceber o que se passava: “Foi quando soube que tinha sido preso. Foi uma surpresa para mim”, garante.

Podia passar-lhe tudo pela cabeça, menos o que viriam a contar-lhe. Francisco Hernandez, o seu verdadeiro nome, não era só um amigo que patrocinara a sua carreira internacional, nem tão pouco apenas o dono de um bar bem sucedido onde costumava jogar dardos. Kiko era um narcotraficante temido e procurado para polícia, que geria uma rede de tráfico de droga, um negócio que vinha de família. Duas semanas depois de desmantelada a rede de narcotráfico que liderava e de detidas várias pessoas, em conversa com o Observador, José de Sousa é quem escreve o cartão de apresentação de Kiko: “É o maior mafioso daí de Madrid e arredores”.

[O vídeo da operação que desmantelou os Kikos divulgado pela Policía Nacional]

É também assim que a polícia o descreve. Aos 47 anos, Francisco Hernandez liderava há já sete a maior organização criminosa de Madrid: um verdadeiro supermercado de drogas, que funcionava num prédio de tijolos à vista a cerca de 15 quilómetros do seu bar e onde o negócio rendia mais de quatro milhões de euros por ano. Foi no dia seguinte às buscas que José de Sousa ligou ao amigo: espera que lhe responda até hoje. O campeão de dardos não quer saber detalhes sobre o negócio obscuro. Prefere separar o narcotraficante do amigo e até já o tentou ir ver à prisão. “Um dia que ele saia da prisão, se estiver ali, sou o primeiro a ir buscá-lo porque é graças a ele que tenho tudo o que tenho”, admite ao Observador.

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Kiko ofereceu-se para financiar promessa de dardos em troca de publicidade ao bar. “Ele era espetacular. Sempre com boa disposição”

José de Sousa tem de recuar aos tempos em que vivia em Portugal, nos anos 90, para se lembrar quando é que começou a jogar dardos. Foi desafiado por uns amigos que já jogavam, às sextas-feiras, em jeito de convívio. Hesitante, o atual campeão da modalidade lá cedeu e hoje reconhece que “o que custa é começar”. “Uma cerveja levou à outra, uma partida levou à outra. E aqui me encontro hoje em dia a jogar no circuito profissional”, conta ao Observador, recordando que já leva 26 anos a jogar. Mas foi quando, há quatro anos, conheceu Kiko que a sua carreira deu o impulso — impulso esse que lhe permite hoje em dia dedicar-se exclusivamente aos dardos.

Kiko (à esquerda) ao lado do jogador de dardos José de Sousa (FACEBOOK)

Em 2016, José de Sousa já carregava alguns troféus e a proeza de ser o primeiro jogador português a qualificar-se para o Campeonato do Mundo de Dardos. Deu nas vistas e Francisco Hernandez, que acabava de abrir um bar dedicado aos dardos nos arredores de Madrid, o Triple 20, quis conhecê-lo. Mandou recado por um amigo que tinham em comum: “Combinámos um dia, convidou-me para almoçar e perguntou-me se tinha alguém que me ajudasse nas despesas para ir aos campeonatos. Eu disse-lhe que pagava tudo do meu bolso”, conta. Kiko acabaria por oferecer-se para “ajudar em alguma coisa” e, em troca, José de Sousa fazia publicidade ao bar. A resposta foi sim e, ainda hoje, o jogador leva na sua camisola a nome do Triple 20. “Nem olhei para trás. Não tinha nada. Melhor pouco do que nada”, explicou ao Observador.

Kiko pagou-lhe logo parte de um cartão — um género de passe — que lhe permitia entrar no circuito de competições da Professional Darts Corporation, uma organização profissional de dardos no Reino Unido. José de Sousa que só esse cartão custou 1.600 euros, aos quais acrescem os gastos com a deslocação. Ou seja, Kiko deu-lhe logo cerca de mil euros. Depois do cartão, o acordo passou a ser outro, tudo divido ao meio: “Ele pagava-me 50% dos gastos com viagens e hotéis e eu pagava a outra metade. Quanto aos benefícios e prémios, também metade era para ele e a outra metade para mim”.

"Ele pagava-me 50% dos gastos com viagens e hotéis e eu pagava a outra metade. Quanto aos benefícios e prémios, também metade era para ele e a outra metade para mim"
José de Sousa, campeão de dardos

Mais do que parceiros de negócio, José e Kiko tornaram-se amigos. “Fui muitas vezes à casa dele beber um copo ao fim da tarde”, conta. O português acabaria também por frequentar o bar de Kiko, até devido aos torneios que organizava. Aliás, uma das camisolas de José de Sousa dedicadas a Kiko está exposta no Triple 20, relata o El País. O português julgava que era só ao bar e à compra e venda de carros de luxo que o amigo se dedicava. Aliás, chegou a ver pessoas a ir a casa dele “buscar documentos dos carros”. “Tornámo-nos bastante amigos. Ele era espetacular: tratava por igual todas as pessoas à sua volta. Sempre com boa disposição. Isso era o que eu via“, diz ao Observador, admitindo que ele teria um lado escondido.

Mais de 200 clientes por dia e 4 milhões por ano, um espaço físico e empregados. Kiko montou um supermercado de drogas nos arredores de Madrid

Havia de facto um lado que José de Sousa e muitas outras pessoas não viam ou conheciam sequer: aquele em que Francisco Hernandez era também o líder há já sete anos da maior organização criminosa de Madrid — um negócio que funcionava há anos em família. O seu irmão, Juan José, e sua cunhada eram os líderes de Los Gordos, o grupo de traficantes mais famoso e temido que alguma vez existiu na capital espanhola, escreve o El País. Filhos, netos, primos e sobrinhos — juntos construiram um verdadeiro império das drogas que acabaria desmantelado em 2012, pela polícia. Juan e a mulher saíram no início do ano da prisão, determinados a deixar o mundo do crime para trás, segundo revelou ele próprio à TVE.

Kiko viu ali uma oportunidade e, paralelamente ao bar de dardos, passou a gerir outro negócio, com empregados — apelidados no seu conjunto de Kikos — e até um espaço físico: um verdadeiro supermercado de drogas, num prédio de tijolos à vista a cerca de 15 quilómetros do seu bar. Funcionava sem parar — 24 horas por dia, sete dias por semana — e recebia mais de 200 clientes diariamente. Contas feitas ao negócio: mais de quatro milhões por ano. “Eles ganhavam 10 mil euros por dia, cerca de 360 mil por mês. No valor bruto, estimamos que faturavam cerca de 4 milhões por ano”, disse ao El Español um dos elementos do Goiz I, o grupo de operações especiais espanhol dedicado ao tráfico de droga que comandou a operação que desmantelou o grupo.

O edifício onde era vendida a droga (POLICÍA NACIONAL)

Além das portas blindadas, o prédio tinha uma estrutura e regras bem definidas: os traficantes sabiam que a polícia podia entrar a qualquer momento e que, se fosse caso disso, teriam de se desfazer rapidamente da mercadoria — sem ela, seria difícil provar em tribunal que estavam a traficar grandes quantidades. Eram dois andares. No rés-do-chão, havia uma sala com uma pequena janela com grades onde era vendida a droga, segundo a investigação. Nas paredes, estavam até cartazes com os produtos disponíveis para venda e os respetivos preços, detalha o La Razón. No primeiro andar, havia um espaço amplo onde os clientes podiam ficar a consumir os produtos.

Por todo o espaço estavam espalhados funcionários, os Kikos. Cá fora, estavam os vigilantes que observavam atentos quaisquer eventuais aproximações da polícia. Além disso, face ao corrupio de pessoas e carros, também acabavam por servir de arrumadores, dando indicações aos clientes para onde se deveriam dirigir. À porta, havia outro funcionário que controlava quem podia e quem não podia entrar. No interior do prédio, no espaço do primeiro andar dedicado ao consumo, a função era controlar os clientes e pôr ordem na sala, quando necessário — todos eles eram viciados em droga e, no final do mês, recebiam o seu salário, descreve o El País. Já os vendedores eram de uma categoria superior: pessoas de confiança e quase parentes diretos de Kiko e da sua mulher, Yolanda.

"Eles ganhavam 10 mil euros por dia, cerca de 360 mil por mês. No valor bruto, estimamos que faturavam cerca de 4 milhões por ano"
Fonte da investigação

Um dos braços direitos de Kiko era César. Era quem transportava a mercadoria, mas também quem tratava dos problemas de segurança, intimidando os traficantes de droga da concorrência ou repreendendo os Kikos viciados em droga que, por vezes, levavam o que não lhes pertencia. Com uma personalidade mais agressiva, como descreve a polícia no relatório da operação a que o El País teve acesso, César equilibrava de certa forma a personalidade mais dialogante de Kiko.

Kiko estava a dormir no sofá quando foi detido. Ficou em silêncio enquanto estava a ser algemado e, pouco depois, começou a chorar

A operação para chegar até ao grupo foi longa. Há pouco mais de um ano, altura em que a investigação conseguiu localizar o prédio de Kiko, o maior ponto de venda de droga de Madrid, a polícia tentou desmantelar a rede e entrou no edifício: encontraram quase um quilo de cocaína e 350 gramas de heroína, prenderam os Kikos que estavam presentes, mas não conseguiram obter provas suficientes para acusar Kiko e Yolanda, relata o El País. Ainda assim, Kiko recuou, deixou Yolanda e César a liderar o negócio da droga e passou a dedicar-se exclusivamente ao bar e à carreira de José de Sousa — à semelhança do que fez o narcotraficante El Chapo quando patrocinou pugilistas talentosos do estado mexicano de Sinaloa.

Mas já era tarde de mais. Desde fevereiro que a polícia tinha passado a vigiar atentamente todos os passos de Kiko e dos restantes envolvidos no negócio. Terminada a investigação, era altura de ir em força para o terreno e de fazer buscas não só no prédio, mas também, e em simultâneo, em cinco casas relacionadas com o grupo — ou seja, era altura de dar início à Operação Maíz. Era 7h00 da manhã de 5 de outubro, quando a polícia entrou no prédio, onde encontrou dez clientes, escreve o El Español. Quando se aperceberam, dois Kikos atiraram gasolina para dentro de um cofre com drogas e dinheiro e tentaram queimar todas as eventuais provas do crime — a polícia acredita que estes dois funcionários estavam preparados para dar vida pelo patrão já que o local onde se encontravam era uma sala pequena e sem ventilação.

A polícia apreendeu mais de 520 mil euros em dinheiro (POLICÍA NACIONAL)

Não chegaram a conseguir fazê-lo. A polícia conseguiu resgatar a maior parte do dinheiro e dos estupefacientes. No total, os agentes apreenderam 520 mil euros em dinheiro, 19 quilos de cocaína, quase três quilos de haxixe e heroína, além de 18 armas de fogo e quase dois mil cartuchos. Foram também apreendidas joias, relógios de luxo, 11 carros, alguns deles topo de gama, e ainda 250 bilhetes da lotaria. 14 pessoas, incluindo Kiko e Yolanda, foram detidas: têm entre 47 e 23 anos e a maioria é de nacionalidade espanhola, embora haja também uma mulher cubana e outra italiana. Como os suspeitos tinham diferentes graus de participação no negócio, apenas seis ficaram em prisão preventiva.

Kiko e Yolanda estavam na sua casa, onde foram encontrados 230 mil euros, quando a polícia entrou para os deter: Kiko dormia de boxers no sofá e, segundo o El País, ficou em silêncio enquanto lhe colocavam as algemas. Pouco depois, começou a chorar.

José de Sousa nunca se apercebeu dos “negócios obscuros” e prefere separar o amigo do narcotraficante: “É graças a ele que tenho tudo o que tenho”

Em conversa com o Observador, José de Sousa nunca desconfiou deste esquema e garante que se tivesse visto alguma coisa a passar à sua frente, tinha saído porta fora — assume-se completamente contra as drogas. “Se alguma vez falaram de alguma coisa estranha, nunca foi à minha frente“, assegura. Nem tão pouco quer pensar na origem do dinheiro com que foi patrocinado. “Se ele tem negócios obscuros na sua vida privada, não conheço. O que se passa por trás não sei”, acrescenta.

"Se alguma vez falaram de alguma coisa estranha, nunca foi à minha frente. Se ele tem negócios obscuros na sua vida privada, não conheço. O que se passa por trás não sei"
José de Sousa, campeão de dardos

Curiosidade? Nenhuma. “É um assunto tão delicado que perguntar-lhe não é aconselhável. Prefiro falar de coisas de dardos e de coisas de amigos, que na realidade era só a relação que tinha com ele”, explica. O campeão de dardos contou ao Observador que já tentou ir ver Kiko à prisão e que sempre o verá como um amigo. “Um dia que ele saia da prisão, se estiver ali, sou o primeiro a ir buscá-lo porque é graças a ele que tenho tudo o que tenho”, remata.

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