Foi um interrogatório sem grandes novidades na defesa de José Sócrates face aos 31 crimes que lhe são imputados pelo Ministério Público mas acabou por ficar marcado pelas duras palavras dirigidas a José Maria Ricciardi (“uma mente delirante”), à tentativa de ligar António Costa ao Banco Espírito Santo de Ricardo Salgado e, acima de tudo, ao ataque fortíssimo a Passos Coelho e ao seu primeiro Executivo.
Com o juiz Ivo Rosa a determinar que este primeiro dos quatro dias reservados para o interrogatório a José Sócrates serviria para abordar quase exclusivamente o caso da Portugal Telecom (PT) e o alegado favorecimento que José Sócrates terá concedido ao Grupo Espírito Santo (GES) para manter o controlo da operadora nas mãos da família liderada, o ex-líder do PS não se fez rogado e acusou o Governo de Passos Coelho de ter promovido a captura da PT por parte do GES de Ricardo Salgado ao acabar com a golden-share que permitia ao Estado ter direitos especiais nas decisões relevantes para o futuro da operadora.
O interrogatório do ex-primeiro-ministro vai continuar esta terça-feira, sendo expectável que sejam abordados neste segundo dia novos pontos da acusação do MP, nomeadamente o alegado favorecimento a um grupo de investidores liderados por Diogo Gaspar Ferreira e Rui Horta e Costa na aprovação do financiamento da Caixa Geral de Depósitos superior a 256 milhões de euros e o alegado favorecimento no Grupo Lena pela adjudicação da 1.ª fase da linha de alta velocidade entre o Poceirão e Caia ao consórcio Elos — do qual o grupo de Leiria fazia parte.
Operação Marquês. Os cinco pontos essenciais da acusação contra Sócrates
O regresso do rezingão
Chegou 30 minutos antes da hora marcada para o início do diligência na sala atarracada do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC). Sorridente com os jornalistas, prometeu “repôr a verdade” durante o interrogatório que pediu ao juiz Ivo Rosa. E “repôr a verdade” só tem um significado na atua fase de instrução criminal da Operação Marquês: convencer Ivo Rosa a não pronunciá-lo para julgamento e a arquivar os autos contra si.
Se estava sorridente à entrada do edifício da antiga sede da Polícia Judiciária que alberga as instalações do TCIC, cedo perdeu-o quando passou a reforçadíssima barreira de segurança imposta pelo juiz Ivo Rosa no piso térreo para impedir que algum jornalista chegasse ao pequeno elevador que transportou Sócrates e os mais de 20 advogados presentes para o quarto piso onde funciona o tribunal.
Ao fundo do pequeno hall de entrada do TCIC, José Sócrates teve de esperar como todos pela chamada feita pela funcionária que trabalha com o juiz Ivo Rosa. Nitidamente mais velho e ligeiramente mais forte, o ex-primeiro-ministro mantinha, contudo, o seu tradicional semblante carregado — o que levou os seus assessores em São Bento no seu primeiro mandato como primeiro-ministro a oferecerem-lhe um boneco do anão rezingão do conto da “Branca Neve e os Sete Anões”. Com essa expressão dura e austera, ouviu a funcionária chamar todos os advogados e o seu próprio nome, tendo entrado em fila indiana no meio dos advogados liderados por Castanheira Neves, advogado de Joaquim Barroca (o ex-vice-presidente do Grupo Lena). Pelo meio, ainda cumprimentou Rui Patrício, advogado de Hélder Bataglia e de Bárbara Vara.
Já dentro da sala de audiências, conhecendo o seu espaço (o seu púlpito), o ambiente distendeu-se. Enquanto Pedro Delille se sentava na mesa ao lado da funcionário judicial que zela pela boa gravação da diligência, Sócrates fazia um grande sorriso e, de costas para a mesa ligeiramente elevada onde o juiz Ivo Rosa se iria sentar, trocou umas palavras com outros advogados. As portas fecharam-se cerca das 14h20 e Sócrates começou a sua defesa.
O ataque ao Governo de Passos Coelho
O juiz Ivo Rosa começou por determinar que este primeiro dos quatro dias reservados para o interrogatório a José Sócrates serviria para abordar quase exclusivamente o alegado favorecimento concedido pelo ex-primeiro-ministro ao Grupo Espírito Santo (GES) para manter o controlo da operadora PT nas mãos da família liderada por Ricardo Salgado.
E Sócrates rapidamente passou para o contra-ataque, acusando o Governo de Passos Coelho de inércia e de ter promovido a captura da PT por parte do GES ao acabar com a golden-share — uma medida que Sócrates entende que não respeita o interesse público, por muito que tivesse sido tomada por obrigação da Justiça da União Europeia que entendeu que a mesma não respeitava as regras do mercado único europeu.
Sócrates foi mesmo ao pormenor de recordar que, enquanto foi primeiro-ministro (até junho de 2011), a PT teria 80% das suas reservas financeiras aplicadas em depósitos a prazo na Caixa Geral de Depósitos e no Banco Espírito Santo mas que terá sido após a sua saída (derrotado nas legislativas de 2011 por Passos Coelho) que foi feita uma alteração radical dos investimentos das reservas da operadora, apostando-se essencialmente em dívida do GES.
Apesar da insistência de José Sócrates em mostrar documentação sobre esta matéria, ao que o Observador apurou, Ivo Rosa ter-lhe-á recordado que esse ponto específico da acusação “não é imputado a si”, mas sim a Ricardo Salgado — que é suspeito de alegadamente ter corrompido Zeinal Bava e Henrique Granadeiro para conseguir esses investimentos em dívida do GES.
Por outro lado, José Sócrates rejeitou — como sempre disse — qualquer espécie de favorecimento ao GES de Ricardo Salgado quer na questão da OPA da Sonae à PT, quer na compra da venda da Vivo e da compra da operadora Oi/Telemar. Pelo contrário, repetiu o que já tinha dito em público em 2017 e repetiu na Comissão Parlamentar de Inquérito à Caixa Geral de Depósitos em 2019: a única pessoa que o terá pressionado foi Paulo Azevedo, líder da Sonae, que lhe ligou pessoalmente a pedir o apoio do Governo à OPA que a empresa fundada pelo pai Belmiro Azevedo tinha lançado à PT em 2006.
Paulo Azevedo sempre desmentiu as acusações de José Sócrates.
MP sustenta na acusação que captura da PT pelo GES começou muito antes de 2011
É verdade que a equipa de procuradores liderada pelo procurador Rosário Teixeira sustenta na acusação da Operação Marquês que se verificou uma captura da PT, então a maior empresa portuguesa, pelo GES e por outros acionistas portugueses.
O grupo liderado por Ricardo Salgado, contudo, liderou essa alegada canibalização ao depender em parte da receita anual que recebia da PT. Entre pagamentos por serviços prestados, recebimento de dividendos e utilização da tesouraria da PT para uma concentração de investimentos financeiros em títulos de dívida do BES e do GES, o grupo da família Espírito Santo conseguiu uma receita de cerca de 8,4 mil milhões de euros entre 2001 e 2014.
Grupo Espírito Santo predador ganhou 8,4 mil milhões de euros com a PT em 14 anos
Daí que os sete procuradores que assinaram a acusação escrevam que “o arguido Ricardo Salgado capturou” a “estratégia e a gestão do Grupo Portugal Telecom” e submeteu-a “à sua estratégia para o Grupo Espírito Santo”, tendo alegadamente corrompido os ex-líderes da operadora Zeinal Bava e Henrique Granadeiro com alegados pagamentos de 45 milhões de euros entre 2007 e 2011.
Os números, contudo, são diferentes daqueles que José Sócrares terá apresentado esta tarde ao juiz Ivo Rosa, sendo que uma grande parte da captura da PT por parte do GES verificou-se, segundo a acusação, antes de 2011.
Vários exemplos:
- GES recebeu um total de dividendos da PT cerca de 634 milhões de euros entre 2002 e 2014. Só entre 2010 e 2011 (período do Governo Sócrates), a família Espírito Santo recebeu um total de 272,6 milhões de euros.
- Entre 2001 e 2006, mas também no período subsequente até 2014, cerca de 45% total da disponibilidade financeira da PT foi colocada à disposição do Grupo liderado por Ricardo Salgado. “Em clara violação da política da empresa de efetuar aplicações financeiras ‘junto de instituições financeiras diversificadas’” e “após análise cuidada dos riscos”, lê-se na acusação do DCIAP.
- Só em títulos de dívida do GES, a PT chegou a ter um máximo de 1,2 mil milhões de euros em 2005. Nesse ano, e se juntarmos os valores dos depósitos (no valor de 927 milhões de euros), a PT tinha recursos totais de 2,1 mil milhões de euros aplicados no GES. Cerca de 68,2% dos recursos totais disponíveis em 2005.
- A opção por investir em títulos de dívida da PT terá sido tomada pela operadora “a partir de 2001, por decisão do arguido Zeinal Bava, à data CFO da PT, SGPS. Até fevereiro de 2008, o Grupo PT investiu montantes avultados em títulos comercializados pelo Grupo BES”, lê-se na acusação do MP.
A “mente delirante” de José Maria Ricciardi
O ex-inimigo de Ricardo Salgado no GES, o seu primo José Maria Ricciardi, foi o segundo alvo de José Sócrates. Confrontado com o depoimento do antigo presidente executivo do Banco Espírito Santo de Investimento (BESI) nos autos da Operação Marquês, segundo o qual o então primeiro-ministro e Salgado constumavam reunir-se com frequência de forma secreta e com os telefones fora das salas onde se encontravam, Sócrates não se conteve: “é uma mente delirante”, acusou, referindo-se a Ricciardi.
Mas foi mais longe, referindo que se sentia “estarrecido, injuriado e humilhado” com o depoimento do primo de Ricardo Salgado. Além de ter desmentido a realização de quaisquer encontros secretos, Sócrates criticou José Maria Ricciardi por, no entendimento do ex-líder do PS, julgar os outros à luz da sua própria pessoa.
O ex-primeiro-ministro fez questão de chamar à colação notícias que referem alegadas pressões de Ricciardi sobre o Governo de Passos Coelho e o próprio primeiro-ministro do PSD durante a privatização da empresa REN – Redes Energéticas Nacionais. Tais suspeitas foram investigadas pelo Ministério Público no âmbito do chamado caso Monte Branco mas não deram lugar a qualquer acusação até ao momento.
Como Sócrates conheceu Manuel Pinho e António Costa num camarote do BES
Com um juiz Ivo Rosa bem preparado e focado, não dando grande margem a José Sócrates nem para fugir às perguntas nem para fazer grandes comentários sem interesse para os autos, o ex-primeiro-ministro fez questão, contudo, de abordar a sua relação com Manuel Pinho.
Numa espécie de antecipação de uma eventual pergunta do juiz de instrução, até porque José Maria Ricciardi testemunhou nos autos da Operação Marquês que terá sido Ricardo Salgado a indicar Manuel Pinho (ex-administrador do BES entre 1994 e 2005) para ministro da Economia, Sócrates terá feito questão de explicar a sua relação com Pinho.
Em primeiro lugar, negou que tenha sido Salgado a indicar o seu nome, explicando que foi Ferro Rodrigues, sucessor de António Guterres à frente do PS, quem chamou Pinho para a ribalta política socialista. O então administrador do BES começou por fazer parte do conselho de sábios economistas do PS que aconselhava Ferro e foi nesse contexto que Sócrates, segundo explicou o ex-primeiro-ministro ao juiz Ivo Rosa, se lembrou de Manuel Pinho para seu ministro da Economia.
Sócrates fez mesmo questão de explicar como conheceu Manuel Pinho: num jogo do Euro 2004 no Estádio da Luz. O então deputado do PS fez questão de referir que não foi ver o jogo no camarote do BES mas que era aí que Manuel Pinho e António Costa, atual primeiro-ministro, se encontravam. Uma alfinetada que Sócrates fez questão de dar ao antigo ministro da Administração Interna que mais não é do que uma tentativa de ligar o atual líder do PS ao grupo liderado por Ricardo Salgado.