Passageiros, apertem os cintos, endireitem as costas da cadeira e preparem-se para a descolagem. O avião tirou as rodas do chão em Milão e lá foi, estável e tranquilo, com destino apontado a Lisboa. A bordo seguiam duas pessoas que não iam nada à bola uma com a outra. Era um quase ódio, criado em cima de desavenças acumuladas. Mas, apesar de ambos irem sentados em classe executiva, não se pegam. Diz-se que nem chegam a reparar que o outro está por ali. Quando o monstro com asas aterra e o aeroporto da Portela direciona os passageiros para o ponto de encontro com as bagagens é que Jorge repara que José está por ali, a falar ao telemóvel enquanto caminha. E começa a disparar.
Atira-lhe bocas, coisas feias com a voz, desenterra a alto e bom som batalhas antigas. José não se fica e responde, sem desviar o tema da discussão. Nenhum gosta das palavras que ouve do outro e o desgosto aumenta como se fosse uma corda que os aproxima. Começam os empurrões e José cai por terra. Quando se levanta, ergue com ele uma cena de pancadaria. Agarrões, murros e ameaças armam a confusão e, pelo meio, ambos perdem o bem mais precioso — os telemóveis caem ao chão. Quando o desacato acalma, procuram o que é seu e acabam por levar o que é do outro. Por engano, José leva o telemóvel de Jorge e a troca obriga-os a voltarem atrás para devolverem o que lhes é alheio.
É em 2002, à chegada de um voo que liga Milão a Lisboa, que Jorge Mendes provoca José Veiga e ambos se envolvem em confrontos verbais e agressões físicas no aeroporto da Portela.
Nesse dia chega “abananado, todo arranhado e com a camisa rota” ao escritório. “O Jorge Mendes atestou-o bem”, conta quem, na altura, trabalhava com ele. Com José Veiga. E escrever sobre o homem que, esta quarta-feira, foi detido por suspeitas de crime de corrupção, branqueamento de capitais e tráfico de influências é ir buscar histórias como esta, em que o outrora senhor empresário de jogadores chocou (aconteceu em 2002) com o hoje mais poderoso agente do mundo. Porque é assim que José Veiga regressa a Portugal depois de, aos seis anos, sair da recôndita Carrazeda de Ansiães a reboque da família, que emigra para o Luxemburgo. São tempos árduos, em que o dinheiro a menos o obriga a mexer-se. Passa os últimos anos do secundário a trabalhar mais do que estuda, trocando os livros pela pintura de automóveis numa oficina.
É o que faz até o coração portista lhe dar uma ideia. Mexe-se e fala com as pessoas certas para abrir a Casa do FC Porto no Luxemburgo, o que o faz entrar no radar de Pinto da Costa. Em 1988, um ano depois de os dragões se agarrarem à Taça dos Clubes Campeões Europeus, o clube distingue-o com o Dragão de Ouro. O tempo passa e a federação de futebol do Luxemburgo coloca-o a mandar no futebol do Sport, maior clube do país. Os anos passam até conhecer outro homem, que também se esforça por subir na vida — Joaquim Oliveira. É o negociante nato que o puxa para Portugal e o coloca a gerir a Futinveste, em 1992. José passa a agenciar jogadores, a intermediar transferências e a colher os proveitos de ser dos primeiros a servir de intermediário, no meio de conversas em que os clubes eram o emissor e o recetor.
Um ano depois de Oliveira lhe dar o cimento e o alcatrão, Veiga constrói a própria estrada. Alexandre Pinto da Costa, filho do presidente portista, vai na conversa e funda com José a Superfute. Aquece o verão de 1993 com Paulo Sousa e Pacheco, que ajuda a tirar do Benfica e a por no Sporting. Anos depois coloca o primeiro na Juventus, em Itália, o mesmo país onde abre a porta do Parma a Fernando Couto, até então central dos dragões. Jorge Nuno Pinto da Costa não gosta e vira-lhe as costas e os ouvidos de qualquer jogador portista.
À segunda consegue dar boleia a João Vieira Pinto até aos leões, semanas antes de fazer lá chegar Mário Jardel e juntar um pai e um filho que dão o campeonato ao Sporting. No verão de 2000, congemina a maior transferência do planeta (62 milhões de euros), multiplicando reuniões com Florentino Pérez para colocar no Real Madrid o capitão do Barcelona. Luís Figo tornava-se pesetero para os catalães e herói para os merengues. Na época seguinte, intromete-se entre Juventus e Real Madrid para mediar os 75 milhões que o espanhóis pagam aos italianos pelo francês Zinedine Zidane.
Em 365 dias, José Veiga participa nos dois negócios que mais dinheiro movimentam na história do futebol. Em 2001 está no topo, de peito feito, no ombro dos melhores jogadores e ao ouvido de grande parte dos dirigentes do futebol português. Lá fora não se distrai e mantém sempre um olhar atento às objetivas das câmaras. Faz por ladear as grandes figuras, os presidentes, treinadores e dirigentes que interessam, para estar na sua companhia quando os flashes disparam e as fotografias e as imagens chegam aos jornais e televisões.
Mas é aí, diz ao Observador uma fonte que foi próxima de Veiga, que se vai pondo a jeito dos problemas. “Começa a meter-se em muita coisa. Tem uma tendência muito grande para se ligar a pessoas que não prestam”, conta quem trabalha durante anos com Veiga até perceber o que, mais tarde ou mais cedo, todos os que lhe são próximos detetam. É por isso que as pessoas próximas de Veiga se começam a afastar. Ou mesmo a cortar relações.
Os problemas começam e acabam quase sempre no dinheiro. Não se porta bem com muita gente, Luís Figo afasta-se de Veiga antes de Joaquim Oliveira ou Alexandre Pinto da Costa fazerem o mesmo. O empresário vai ficando sem jogadores, muitos deles desconfiados por alegadamente terem contas bancárias no estrangeiro às quais raramente chegavam todos os números do salário que o clube lhes pagava. Um rumor nunca confirmado, mas muito contado. Muitos fogem de Veiga, mas ele pensa que é Jorge Mendes a roubá-los. “O Mendes nem teve muito mérito nisso. Limitava-se a esperar que eles saíssem da empresa do Veiga para ir trabalhar com os jogadores”, refere uma fonte contactada pelo Observador. Até um imberbe Cristiano Ronaldo chega a sprintar para longe do empresário.
A história contam-na assim quem dela sabe: em adolescente, o Sporting falha algumas vezes ao pequeno craque e paga-lhe com atraso. Ronaldo ainda ganhava uma ninharia em comparação à fortuna à qual hoje perde a conta e, quando os leões, alegadamente, se atrasavam no pagamento desses trocos, Cristiano pediria ajuda à carteira do seu agente. Dinheiro adiantado de José Veiga, mas com um senão. “Por cada 500 euros que lhe pedia, só recebia 150”, diz quem conheceu o processo. Quem estava no clube na altura sabia que o empresário dava o dinheiro “sempre com desdém”, até ao dia em que Ronaldo “precisou mesmo” dos “mil e tal euros” que ganhava e Veiga apenas lhe adiantou cerca de 200. Cristiano terá levado a mal e foi trabalhar com Jorge Mendes, o amigo que hoje lhe é como família e o levou a fazer escala em Manchester no caminho até Madrid.
Os grandes nomes que jogam bem à bola vão-se afastando, mas, em Portugal, o empresário faz-se valer das amizades para, por exemplo, chegar a ter 24 jogadores do plantel do Benfica. Essa amizade é com Luís Filipe Vieira, que o convida em 2004 para ser diretor-geral da SAD encarnada. É campeão logo na primeira época, mas as candeias de ambos vão ficando às avessas até 2007, ano em que o presidente se chateia com o empresário e Veiga abandona o clube. Na altura já com um processo em cima, devido a um caso no Luxemburgo, com arresto de bens pelo meio. “As pessoas que se davam bem com ele foram-se afastando. Todas as amizades tornaram-se, com o tempo, inimigos dele”, resume uma dessas pessoas, ao Observador.
José Veiga zangou-se com muita gente, ou muitos se zangaram com ele: Pinto da Costa, Joaquim Oliveira, Luís Figo, Simão Sabrosa e Luís Filipe Vieira são exemplos.
É quando sai do Benfica que entra em vários negócios com Paulo Santana Lopes, irmão do ex-primeiro-ministro, que também foi detido, esta quarta-feira, pela Polícia Judiciária. A bola do futebol rola para longe e José Veiga começa a lidar mais no ramo do petróleo e dos diamantes, mas também do imobiliário. Sai do radar, mas a essência do negociador não terá mudado muito. A apetência para lidar com as pessoas erradas ter-se-á mantido, tal e qual manteve, há anos, a intenção de entrar na bolsa do Euronext de Paris com a Superfute, contra avisos e conselhos de quem ainda seu amigo era. A empresa chegou a estar cotada, mas os prejuízos foram de milhões — “O melhor mercado teria sido o de Londres, mas como não falava inglês, ligou-se a uns tipos em Paris para meter a empresa lá na bolsa. Depois foi tudo um flop”.
Falam sobre José Veiga e ligam-lhe o nome a esquemas e negócios estranhos. Descrevem o empresário como uma pessoa “que se julgava acima da lei” e agora foi detida por suspeitas de a violar. Há duas semanas já se ouvira falar dele, por representar um grupo luso-africano candidato a adquirir o Banco Internacional de Cabo Verde — ativo não-estratégico do Novo Banco. Após a pintura de carros, casa do FC Porto de Luxemburgo, transferências de milhões e direção do Benfica, José Veiga volta a ser notícia.