Como numa espécie de distopia futurista, passada nos primórdios do assalto televisivo dos reality shows, Juan Pablo Escobar ficou a saber da morte do seu pai através de um jornalista que lhe apontava ao rosto jovem, vermelhusco e saudável, uma câmara de televisão pronta a captar os primeiros momentos do choque.
Juan Pablo tinha 16 anos e, logo ali, em direto para toda a Colômbia, que tinha acabado de saber da morte do maior traficante de droga de que algum dia aquele país tinha ouvido falar, jurou vingança aos culpados. Fez uma pausa, a câmara ainda em cima dele, e retirou o que tinha dito, poucos minutos depois. Não se queria vingar, só queria paz; se é que paz é coisa que se possa pedir quando se carrega o nome Escobar.
O pai de Juan Pablo terá matado, ou encomendado a morte, a cerca de três mil pessoas. Trinta e nove anos passados e é Juan Pablo — agora Sebastian Marroquín, um nome falso tirado de uma lista telefónica por falta de tempo para escolher outro — que anda a fazer as pazes em nome da sua família junto dos milhares de pessoas que perderam familiares numa guerra entre cartéis de droga rivais, na qual Escobar foi um dos maiores estrategas.
Garante que ninguém apanhou o pai, ele é que escolheu “ser apanhado”. Até porque o local onde se encontrava só foi descoberto pelas autoridades depois da triangulação de uma chamada a partir do radiotelefone de Pablo Escobar, aparelho que ele quase nunca usava — “O telefone é a morte”, costumava dizer Escobar. No dia 2 de dezembro de 1993, falou com a família durante longos minutos. “Ele sabia o que ia acontecer. Estava farto de ter a sua família ameaçada e suicidou-se, como sempre me disse que ia fazer. Dizia-me ‘filho o meu revólver tem 15 balas, 14 para os meus inimigos e uma para mim’ “. Para a posteridade ficam as imagens do pai de Juan Pablo encurralado num prédio de Medellín, “vitória” que as autoridades americanas — e também as colombianas — reclamam, mas Juan Pablo não tem dúvida que ele se deixou apanhar.
“Poderia, com uma grande facilidade, ou pelo menos com mais facilidade do que outra pessoa qualquer, ser uma espécie de versão 2.0 de Pablo Escobar“, disse Juan Pablo ao Observador numa entrevista em Lisboa, uma das centenas de cidades que anda a visitar para promover o seu livro Pablo Escobar — O que o meu pai nunca me contou. Hoje vive na Argentina, é arquiteto, e corre o mundo a falar a favor a descriminalização das drogas e contra a “criminalidade organizada” da classe política. Este livro é o sucessor de Pablo Escobar, o Meu Pai, editado em 2015, no qual Juan Pablo descreve como foi ser criança no seio do temível cartel de Medellín, ter como melhores — e únicos — amigos um bando de assassinos a soldo, e uma coleção de motas de competição antes de entrar na adolescência.
Neste livro, as histórias são outras. O foco passa da vida familiar para as histórias de toda a gente que se meteu no caminho de Pablo Escobar: uns com um fim trágico, outros, menos, tornaram-se confidentes do barão e embarcaram com ele em loucuras que Juan Pablo conta em jeito policial. São as cenas que nunca chegaram a entrar em “Narcos”, a série norte-americana do Netflix baseada na vida do seu pai que Juan Pablo despreza. Ele já vai explicar porquê.
Começa o seu livro com uma dedicatória às mulheres na sua vida. Que papel tiveram elas no caminho que escolheu, tão diferente do do seu pai?
Vocês trazem paz. O mundo deveria estar nas vossas mãos e não nas nossas. As mulheres são mais maternais, mais respeitadoras, mais visionárias, mais sensíveis. Nós somos brutos, toscos, não vemos além do nosso ego.
Será que uma mulher poderia ter feito o que seu pai fez? Poderia ter existido uma mulher capaz de gerir um negócio tão violento, uma teia tão crua de interesses?
O meu pai dizia que as missões mais difíceis sempre tinham sido encomendadas a mulheres.
Diz outra coisa também logo no início, quando começa a enumerar aquilo de que o seu pai abdicou ao escolher a vida que escolheu. A certa altura diz: “Ele perdeu a oportunidade de passar muito mais anos ao lado da minha mãe”. A sua mãe sempre apoiou o seu pai?
Sempre, sempre. Hoje é diferente, as mulheres são mais independentes, mas na altura era uma sociedade ainda muito machista e até as mulheres aceitavam esse machismo como parte da sua cultura. Eu lembro-me de a minha avó me dizer que não lavasse os pratos, dizia ‘deixa isso, deixa isso, isso é trabalho para as mulheres’, ‘mas que mal tem lavar um prato?’, pensava eu. Mas era assim. A minha mãe não concordava com a violência, claro, nunca quis uma arma, e estava preocupada com a família, mas foi-lhe sempre leal. Mantinha-nos o mais “normais” possível, tentando sempre escudar-nos da vida paralela do meu pai, que sempre foi um pai carinhoso e protetor à maneira dele. Dizia sempre que a pessoa que fosse apanhada a consumir droga à frente da família era uma pessoa morta.
Ao longo do livro diz muitas vezes, por estas ou outras palavras, que “a paz e a reconciliação não são utopias”. Nem na Colômbia depois de 50 anos de guerra civil?
Não são, em nenhuma parte do mundo. Conheci os assassinos mais sanguinários que podes imaginar nos teus pesadelos e fiz as pazes com todos eles. Eles querem a paz porque é uma necessidade, a partir de um certo ponto. A experiência que tenho tido mostrou-me que as pessoas e as famílias que sofreram a violência da guerra que o meu pai travou com os seus inimigos, apesar de serem aquelas que poderiam ter mais ódio, mais sede de vingança nos seus corações, afinal são as que mais disposição têm para lutar pela paz, pela reconciliação, pelo amor. Imagino que sejam assim porque não querem que o mesmo suceda aos seus filhos e a outras famílias.
Pergunto-lhe isto porque a Colômbia começou há menos de um ano, em força, a reintegração dos guerrilheiros das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). É possível esse perdão total?
É muito necessário. E é possível porque os colombianos estão cansados da guerra. Há seis milhões de refugiados internos. Estamos fartos, não queremos mais histórias de violência. E todos temos responsabilidade no próximo capítulo. Se dificultarmos a integração dos militares, se nos tornamos violentos, então eles também vão ser violentos.
Os colombianos estão cansados? O país votou contra os acordos de paz…
Acho muito triste que as pessoas tenham votado contra a paz. Preferiram a violência e isso é uma vergonha para mim. Como é que é possível pensarmos que é através da violência que iremos solucionar qualquer problema? É uma esperança de submissão, não de paz. É uma loucura. Mas há uma coisa que considero ainda mais louco. Que tenha passado pela cabeça do governo perguntar aos colombianos se queriam paz ou guerra. Que pergunta é esta? Isto não se pergunta, anuncia-se. A paz é mais constitucional do que qualquer direito.
Apesar de ter seguido um caminho completamente diferente do do seu pai, o seu nome, que está na capa deste livro, ainda continua a ter um grande peso, ainda “vende”, basta olhar para os filmes e as séries feitas com base na sua vida. Recebe algum desse dinheiro?
(Risos) Não, claro que não. É uma história conhecida, qualquer pessoa a pode utilizar, mas não posso é aceitar a forma como os factos são contactos. “Narcos” foi um enorme sucesso, mas aquilo não é a história da minha família, não é a história do meu pai, é uma glorificação do narcotráfico que não tem nada de romântico. A Netflix, a cadeia de televisão Caracol, jornais, todos fizeram fortunas com a vida do meu pai, eu só tenho os livros. Sou a pessoa que menos dinheiro viu, que menos dinheiro fez, que menos usufruiu.
Já muitas vezes falou contra “Narcos”. Chegou a oferecer-se para ser consultor na série, mas recusaram. O que é que não está bem contado?
Há várias coisas pouco factuais, mas o mais importante é a ausência de certos episódios que eu decidi contar neste livro que mostram como os norte-americanos também estavam metidos no tráfico e, claro, os Estados Unidos não querem que isso se saiba. Esqueceram-se de contar a história do seu próprio Pablo Escobar, o homem da CIA. Que estranho que justamente os Estados Unidos se esqueceram de Barry Seal [piloto, traficante e informador da Drug Enforcement Administration — DEA]. Que curioso, não? Pablo Escobar e Barry Seal eram o mesmo, cada um no seu país. Mas a CIA e a DEA, que foram consultores na série “Narcos” [Steve Murphy e Javier Pena, agentes da DEA aparecem como os arquitetos do cerco a Escobar] esqueceram-se da sua existência? Incrível. Primeiro agente da CIA assassinado por homens de Pablo Escobar em solo americano e não contam essa história? Interessante…
A história de Barry Seal
“Adler Barriman Seal, que preferia ser conhecido por Barry Seal, foi um conhecido jovem piloto norte-americano que trabalhou para várias companhias aéreas comerciais e teve a ousadia de, ao mesmo tempo, ser agente infiltrado da CIA, informador da DEA e piloto do meu pai nos primeiros tempos década de 1980, na época dourada do cartel de Medellín. Aos 24 anos de idade, Seal foi o mais jovem piloto a voar sozinho pela companhia norte-americana TWA. Era tão audaz que se tornou membro ativo da Civil Air Patrol, uma organização criada em 1930 por aviadores civis que ofereciam o seu talento para defender voluntariamente o território norte-americano com os seus próprios aviões.
(…)
Depois de vários anos como piloto comercial, Seal ajudou a CIA com voos ilegais que entraram nos Estados Unidos carregados com heroína para financiar diferentes conflitos no mundo, principalmente operações anticomunistas. Mas a ambição rapidamente o levou à cadeia: em 1979 foi detido nas Honduras, acusado de tráfico de droga. Ficou nove meses numa prisão em Tegucialpa, onde conheceu o piloto colombiano Wiliam Rodríguez, que foi quem lhe propôs trabalhar para o cartel de Medellín. Já em liberdade, Seal destacou-se como piloto dos seus próprios aviões e dos aviões do meu pai e notabilizou-se pela sua audácia na transferência de toneladas de coca da Colômbia para o sul da Florida.
Pelo que me contaram de Seal, é fácil entender porque conseguiu ganhar o afeto do meu pai: porque era capaz de tudo e porque, de certa forma, foi percursor de vários métodos para introduzir drogas e armas no coração dos Estados Unidos (…).
Mas a meteórica carreira de Seal foi interrompida pela agência anti-droga dos Estados Unidos, a DEA, que o deteve nos primeiros meses em 1984, em Miami, sob a acusação de lavagem de dinheiro e venda de Quaalude, um poderoso sedativo com propriedades hipnóticas que os jovens na altura utilizavam como droga recreativa (…).
Perante a possibilidade de passar vários anos na prisão, Seal não teve outra opção a não ser assinar um acordo com a justiça para denunciar os seus sócios colombianos. (…) Os norte-americanos montaram uma temerária operação na qual Seal pilotaria um avião com uma potente máquina fotográfica escondida na fuselagem. A ideia era fazer prova das ligações do regime sandinista [movimento revolucionário do Nicarágua que deve o nome ao líder esquerdista Augusto César Sandino] à máfia colombiana. (…)
Na noite de 25 de Maio de 1984, Seal aterrou e ordenou ao co-piloto que acelerasse a fundo enquanto ele esperava pelo momento adequado para tirar as fotografias. Berry Seal acabou por obter, às escondidas, as imagens reveladoras do exato instante em que o meu pai, o “Mexicano” [aliado de Escobar] e Federico Vaughn, um funcionário de alto nível do Ministério do Interior da Nicarágua, colaboravam com vários soldados nicaraguenses para fazer subir a bordo quatro sacas com 600 quilos de cocaína. (…)
Seal aterrou nessa mesma noite no aeroporto da base aérea de Homestead, no extremo sul da Flórida. Naquela altura, o meu pai e o “Mexicano” eram ambos foragidos da justiça na Colômbia, onde eram procurados para responder pelo assassinato do ministro da Justiça Rodrigo Lara Bonilla, a 30 de abril de 1984. A sequência fotográfica, na qual aparecem o meu pai e o “Mexicano”, foi publicada em meados de julho em vários jornais dos Estados Unidos. O documento gráfico era incontestável, uma vez que tinham apanhado o meu pai com as mãos na massa. Barry Seal tinha-o atraiçoado e isso custar-lhe-ia a vida.
(…)
Finalmente, Barry Seal foi assassinado às seis da tarde de dia 19 de fevereiro de 1986 pelos homens enviados pelo meu pai, que o tinham localizado num parque de estacionamento numa filial do Exército da Salvação quando se preparava para estacionar o seu Cadillac branco modelo de 1979. Luis Carlos Quintero disparou uma rajada da pistola-metralhadora Ingram MAC-10 calibre 45 com silenciador (…)”
A história do filho de Barry Seal, Aaron, também é muito triste. Ele não fala com a irmã dele porque ficou com alguns dos lucros por ter sido consultor em um filme sobre o pai. Sofreu muito também e a mãe dele nunca recuperou… A sua família, por outro lado, mantém-se unida?
Sim, é verdade. É um grande exemplo de como, estando viva, uma família pode nunca mais recuperar do trauma de ter tido um membro envolvido — e morto — por culpa do narcotráfico. A minha família é muito unida, a que tenho agora, mas não falo com a família do meu pai. A minha família é a minha irmã, a minha mãe, a minha mulher e os meus filhos. Eles entregaram o meu pai, foram desleais ao meu pai. Ajudaram a que o meu pai, no final, não visse mais nenhuma saída.
Fala também na glorificação da atividade do seu pai. Os adolescentes com quem vai contactando, dizem-lhe que querem ser o seu pai…
É impressionante. Tenho centenas de fotos, centenas de vídeos de jovens de todo o mundo, dos Estados Unidos ao México, de Itália ao Irão. Enviam-me e-mails a dizer que querem ser “narcos”, perguntam-me como se faz, quais os passos a seguir. É muito triste. Enviam-me fotos onde se vestem como o meu pai, cortam o cabelo como o meu pai, deixam crescer um bigode como o dele, fazem tatuagens alusivas à série Narcos. Eles têm milhões de dólares para gerar um milhão de fanáticos que querem ser Pablo Escobar, eu tenho poucos dólares e 700 páginas para os convencer que não o façam.
E a si, nunca lhe passou pela cabeça tomar o lugar do seu pai? Voltar a erguer o cartel de Medellín, ter esses milhões todos?
As pessoas não sabem o que é estar lá dentro. Tive tanto dinheiro e nunca me senti tão pobre como na altura em que mais dólares entravam naquela casa. Passei fome, frio, solidão, medo, tudo isto enquanto chegavam milhões e milhões de dólares a casa do meu pai. Tínhamos sacos de dólares mas vivíamos em esconderijos sem condições sanitárias. Tínhamos sacos de dólares mas não podíamos pegar neles para ir ao supermercado.
Os cartéis dissiparam-se ou continuam a existir?
Apenas mudaram de nome, não é Samsung é Apple, entendes? Não é cartel de Medellín é outro grupo com outro nome. E isto só acontece porque as drogas são proibidas. O meu pai dizia sempre que não lhe interessavam negócios legais, só os ilegais. Porquê? Porque só assim se ganha dinheiro.
Qual é a solução?
As drogas têm que passar a ser legais. Os recursos dos traficantes têm que passar para as autoridades só que as autoridades também ganham muito dinheiro com isso. Cem anos de proibição e cada vez mais violência, mais corrupção, mais droga disponível, mais venda de armas, mais organizações criminosas que até submarinos têm.
A proibição, na sua opinião, piora as coisas. Porquê?
Nós confiamos nos nossos governantes, que supostamente elegemos para nos protegerem. Não será um traficante que se preocupará com o povo. Primeira regra de um grande negócio: proíbe o teu produto. Se proibissem os meus livros eu venderia o triplo. Se proibires a pizza vai haver uma guerra pela pizza. A proibição é a forma mais eficaz de gerar violência. Não conheço outra tão boa. Há muita gente que ganha muito dinheiro com isto, não lhes importa as pessoas que morrem e que as que ficam vivas fiquem com as vidas destruídas. Desde que os seus bolsos estejam cheios isso basta-lhe para estarem felizes. O verdadeiro crime organizado é a política. Não creio que os políticos sejam um bom exemplo para a sociedade. A sua corrupção e as suas políticas só os fazem parecer-se a mafiosos, mais do que a funcionários públicos. Os bandidos ao menos assumem esse papel, os outros andam escondidos debaixo de um fato.
Tem falado em várias conferências…
Permanentemente.
Sempre junto de públicos jovens?
Não, também em empresas públicas e privadas como bancos privados, por exemplo. E também junto de várias forças de segurança, públicas ou privadas.
Dos jovens que conheceu, através da internet, nas suas conferências, há alguma história que o tenha marcado, alguém a quem tenha “convencido” que a vida de um narcotraficante não era a ideal?
Há uma história de um rapazinho pequeno, talvez de uns doze anos que, numa das apresentações que fiz nos Estados Unidos, veio ter comigo e deu-me uma carta. No fim da sessão li a carta e ele dizia que tinha visto muitas coisas sobre o meu pai e que a brincadeira preferida deles era fingir que eram narcotraficantes. Ele decidiu ler os meus livros e explicou aos amigos que coragem a sério era não ser criminoso porque passar por cima dos outros para chegar longe é fácil, competir com os melhores é que é difícil.
O que é que diz a uma plateia de bancários?
Que quando não dão uma conta bancária a uma pessoa como eu estão a convidar à ilegalidade. Porque eu quero entrar num banco não é para roubar o banco nem lavar dinheiro. Quero ir a um banco para que as minhas contas sejam claras, para que possam ver o dinheiro que tenho e o que faço com ele e de onde vem. Não vou ser tão estúpido para ir a um banco tentar fazer trafulhices com o nome que tenho. É um insulto à minha inteligência. Essa medida discrimina muitas pessoas como eu. A banca está a incitar a criminalidade, e é também sua responsabilidade, não apenas nossa, dos que estamos a tentar encontrar o caminho da legalidade, promover a integração das famílias com um passado como o meu ou de ex-reclusos, por exemplo.
Ainda não pode entrar nos Estados Unidos…
Nem poderei, depois deste livro. A menos que eu acredite na vida depois da morte…
O seu pai esteve sempre rodeado de pessoas que lhe juravam lealdade mas é impossível saber quem são mesmo os amigos num mundo desses, ou guarda alguns?
A maneira de eu definir o meu pai e a sua família é a seguinte: se me perguntares qual era o membro mais correto de toda a família do meu pai eu diria Pablo Escobar, imagina o resto. O meu pai era uma pessoa terrível com os inimigos, a sua ambição estava acima de quase qualquer coisa e por isso ele fazia coisas terríveis, mas a família estava um pouco acima disso ainda. Foi um bom pai. Ele sabia quem era a família dele, no fim disse-me isso, que sabia que o trairiam. Guardo alguns amigos, mas uma mão chega para os contar.
Uma das coisas que mais marca o seu livro são as histórias que demonstram a impunidade com que os membros do cartel de Medellín operavam na cidade: comprava-se um polícia para ele deixar passar um carro em direção à fronteira, compravam-se juízes, advogados, chefes de polícia e até há uma história que relata os maços de notas que os homens do seu pai foram dando a toda a gente que viam à frente até chegarem ao local onde estava preso um dos colaboradores que o seu pai queria reaver.
Todos nós adoramos ao Deus dinheiro, você não? O que se passa é que alguns de nós têm limites e não querem dinheiro a qualquer preço.
O resgate de Orelhas
[O contexto em que acontece o resgate de Orelhas é relatado primeiro por Juan Pablo que depois coloca em discurso direto um dos intervenientes na operação]
“(…) Agentes do Departamento Administrativo de Segurança, o DAS, capturaram, em Medellín, o Orelhas, encarregado de lavar, no Panamá, boa parte do dinheiro que a cocaína rendia em Miami. O Orelhas era tão importante na engrenagem da organização que os Estados Unidos imediatamente solicitaram a sua extradição. A sua detenção significava um golpe para o cartel de Medellín, porque o Orelhas tinha os contactos para abrir contas correntes nos bancos da Cidade do Panamá, onde depositava os recursos que o tesoureiro do meu pai tinha à sua guarda em Miami, e que depois transferia — por canais normais — para os bancos de Medellín (…).
Através de um contacto no DAS, o meu pai soube que o Orelhas seria enviado para os Estados Unidos às cinco da manhã do dia seguinte e decidiu resgatá-lo. Para o fazer, encarregou o Kojack, um dos homens mais audazes do grupo de sicários que o rodeava. Mas a operação implicava um grande risco, porque o Orelhas estava em reclusão na sede do DAS, no setor de Ayacucho, uma velha casa onde nunca estavam menos de 20 funcionários em turnos de 12 horas. Por isso o meu pai deu 62 milhões de pesos a Kojack para subornar quem quer que fosse preciso para resgatar o Orelhas.
(…)
Claro que os funcionários se assustaram quando eu disse ‘vamos lá ver quantos maricas há aqui. Não comecem com parvoíces que há aqui muita massa!’ Todos ficaram em silêncio e começámos a distribuir o dinheiro. Aos técnicos das impressões digitais, que eram seis, demos um milhão a cada um; ao encarregado das chaves do calabouço, demos 500 mil; a dois datilógrafos, 800 mil; à telefonista, um milhão e meio, para que não atendesse as chamadas; à senhora da cafetaria, que ficou toda feliz, 200 mil; e foi assim com todos, até chegar ao chefe do escritório, um inspetor do DAS, a quem dei oito milhões. Mas quando fomos buscar o Orelhas, quase não o encontramos, porque estava escondido, bem enroscado, debaixo de uma secretária. Pensava que o vinham matar porque já o tinham ameaçado. Dissemos aos que estavam armados que começassem a disparar para o teto quando saíssemos, que nós responderíamos com disparos para o ar, para que parecesse um resgate com muitos tiros.
Pode ir à Colômbia?
Posso. Mas não devo ficar muito tempo.
Ainda teme pela sua vida ou que atentem contra a sua família?
Nunca se sabe.
Ainda procuram dinheiro ou dinheiro e vingança?
Os que têm o poder de tirar-me esse dinheiro já o tiraram.
Todo? Falamos de um homem que no auge do seu poder dominou 80% do tráfico de cocaína e heroína que entrava nos Estados Unidos e é o próprio Juan Pablo que diz no livro que o seu pai fazia cerca de 70 milhões de dólares por fim de semana.
O meu pai ganhava e gastava. Não há violência grátis. Nenhum outro traficante ficou tanto tempo no poder como o meu pai e isso compra-se a preços proibitivos, a impunidade é o bem mais precioso para um homem como o meu pai mas paga-se muito por ela. O Estado, os inimigos, a família dele, ficaram com o que restou. A mim fizeram-me o favor de mo tirar.
Acho que entendo, mas explique nas suas palavras: favor porquê?
Porque me deram a liberdade de ser o que sou. Se eu tivesse esse legado comigo estaria morto, ou louco ou seria dono de uma ilha e não deixaria entrar ninguém, estaria isolado. Agradeço aos meus inimigos que mo tenham tirado. O meu nome ainda pode valer alguma coisa, mas agora é mais por amor do que por violência. Eu considero o amor mais poderoso.
Era preciso ser louco para se ser bom na Colômbia nos anos 80 e 90?
Uh! Tinhas que ser completamente chanfrado! Mesmo fora desse circuito dos cartéis não dizer nada é pactuar. E eu não quis fazer isso e não te sei dizer como sobrevivi. O caminho para a sobrevivência, e, ao mesmo tempo, para a morte, era converter-me em Pablo Escobar. O mais fácil era ser o meu pai apesar de tudo. Eu creio que destruir é mais fácil, muito mais fácil que fazer o bem, por isso fazer o bem é um ato de rebeldia às vezes, em certos países e em certos momentos históricos.