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Para grande parte da opinião pública mundial, o “sionismo” é hoje a única e a derradeira face visível do que no decorrer do século XIX e até à primeira metade do século XX se chamava “Judenfrage”, “Jewish Problem”, “Questão Judaica”. No entanto, após a criação do Estado de Israel (1948) muitas coisas mudaram, deixando, entretanto, de se falar da “questão judaica” para se começar a falar em “sionismo” e em “anti-sionismo”.
Como explicar esta deriva terminológica? O que é o judaísmo? O que é o sionismo? A que se deve a recente identificação de judaísmo e sionismo? Qual o significado político do sionismo enquanto fundamento do apelo à restauração do estado de Israel? Como manter-se judeu numa sociedade liberal moderna? É a estas e a outras perguntas que o presente ensaio procurará responder numa época de guerra sangrenta e de cegueira ideológica no conflito no Médio Oriente. Naturalmente, apoiamo-nos num conjunto de autores judeus, sobretudo filósofos e historiadores, que escreveram sobre o sionismo.
O que é Sião?
O que é, afinal, o sionismo? É verdade que, de um ponto de vista apenas teórico e especulativo, o sionismo, enquanto manifestação contemporânea empírica da “questão judaica”, é a expressão concreta de um problema muito mais vasto, a saber, a expressão do moderno problema das relações entre a fé e a razão, entre a teologia e a filosofia, entre a religião e a política.
Mas, para tentarmos responder às perguntas atrás enunciadas, devemos começar por esclarecer que Sião é o termo bíblico que designa a “cidade do grande rei” (Salmos: 48, 3), isto é, a cidade de Deus enquanto Rei de Israel. Bastião Jebusita capturado por David, e identificado, durante o período macabeu, com o Monte do Templo e com a Cidade de David, o termo é usado na linguagem poética e profética como uma referência a Jerusalém como um todo. O termo Sião simboliza, portanto, para qualquer judeu crente, a capital espiritual do mundo e a cidade messiânica de Deus. Enquanto missão sagrada, enquanto promessa divina do estabelecimento de uma sociedade justa que inicie o reino de Deus na “terra santa”, o conceito messiânico de Sião ressoa abundantemente nas profecias bíblicas, das quais o conhecido voto judeu “Para o ano que vem em Jerusalém” é um poderoso testemunho que nunca deixou de se ouvir e ecoar por todos os lugares da diáspora.
Sendo central no pensamento bíblico, o conceito de Sião dominou também o pensamento talmúdico e inspirou ainda os pensadores judeus medievais e os cabalistas, estimulando activamente, para além disso, movimentos messiânicos como aquele que o falso messias Sabbatai Tzvi, sob o jugo otomano, levou a cabo em meados do século XVII. Uma carta do rabino Jacob Sasportas refere-se do seguinte modo ao entusiasmo dos judeus portugueses de Amesterdão – comunidade da qual Bento de Espinosa havia sido recentemente excomungado – perante esse precoce e invulgar proto-sionista que foi Sabbatai Tzvi: “Houve uma comoção muito grande na cidade de Amesterdão, de modo que foi uma convulsão muito grande. Os judeus portugueses regozijavam de modo exuberante, dançando nas ruas ao som do adufe. Os rolos da Lei, com os seus belos ornamentos, foram retirados da Arca Santa para o cerimonial das procissões, não fazendo caso do possível perigo proveniente da inveja e do ódio dos gentios. Pelo contrário, proclamavam publicamente as notícias e informaram os gentios de todos os relatos sobre Sabbatai Tzvi”.
Voltaremos adiante à relação entre messianismo e sionismo. Para já, cabe-nos referir que na sua análise do significado real de Sião como conceito nacional específico do povo judeu, um autor como Martin Buber insiste constantemente no que a religião e a nação judaicas possuiriam de distinto e de único por relação a outras religiões e a outras nações. Deste modo, o conceito sionista de “sacralidade”, o qual permite conceber Sião como o matrimónio “sagrado” de um povo “sagrado” com uma terra “sagrada”, é, para Buber, mais um conceito teológico-político do que uma noção estritamente religiosa. O seu raciocínio é o seguinte: se o povo judeu é um povo particular (sagrado) e a terra judaica (Palestina) uma terra particular (sagrada); se a sua particularidade e a sua sacralidade decorrem do facto de que ambos se encontram unidos por uma mútua necessidade, isso é porque Deus elegeu os dois em ordem a conduzir o Seu povo eleito até à Sua terra eleita, unindo povo e terra no cumprimento de uma missão: o estabelecimento do Seu reino aqui em baixo. Deste ponto de vista, importa desde já sublinhar que, para um judeu ortodoxo, apenas na Palestina poderia Sião ser restabelecido, pois ela é a única terra digna de um tal nome. Eretz Israel significa, por isso, a união indissolúvel da “terra” e do “povo” judeus.
Ao contrário do que aparentam crer alguns pensadores contemporâneos, nomeadamente o reputado filósofo italiano Giorgio Agamben, que muito recentemente escreveu sobre este assunto, o sionismo nunca esteve completamente separado das esperanças tradicionais dos judeus, mesmo se também nunca foi concebido como algo que devesse culminar na construção do terceiro templo e no restabelecimento do serviço sacrificial aquando do regresso dos judeus ao Eretz Israel. Mas a particularidade do sionismo enquanto movimento teológico-político moderno aparece da maneira mais clara naquele a que poderíamos chamar o sionismo estritamente político de um Leon Pinsker (Auto-emancipação: 1882) e de um Theodor Herzl (O estado judeu: 1896).
Com efeito, quer para Pinsker (que escreveu sob o impacto dos pogroms russos de 1871 e 1881), quer para Herzl (que deu a conhecer o seu projecto de edificação de um estado judeu na Palestina sob os efeitos do trauma vivo desencadeado pelo affaire Dreyfus), o recrudescimento de um novo anti-semitismo de tipo racista, com um fundamento naturalista e biologista – que, mais do que substituir, se acrescentou, intensificando-o, ao tradicional anti-judaísmo religioso cristão medieval –, era um claro testemunho do completo fracasso da política liberal e democrática, a qual, desde a Revolução Francesa, tinha vindo a promover, de modo inconsequente e com muitas vacilações, com constantes retrocessos e permanentes contradições, a chamada emancipação jurídica dos judeus, a supressão da sua discriminação por motivos religiosos, a sua assimilação cultural, o abandono da sua religião e da sua cultura etnicamente diferenciadas, para, finalmente, se incorporar plenamente na cultura cristã e liberal e no racionalismo ingénuo e optimista das Luzes que lhe deu forma.
A exemplo de Pinsker e de Herzl, também o filósofo Leo Strauss deplora (atenção: nos anos vinte do século passado, antes da criação do estado de Israel) as tendências “desjudaizantes” e, no limite, tendências “auto-destrutivas”, dos judeus assimilacionistas que, com a sua crença ingénua numa liberalização dos princípios universalistas da Revolução Francesa, abandonam as fontes tradicionais do judaísmo, nomeadamente a ideia de “Eleição” do povo judeu e a fé no Messias. Do ponto de vista de Leo Strauss a assimilação nega, pura e simplesmente, a existência da “questão judaica”, enquanto o sionismo – seja este religioso, político ou cultural – tem, pelo menos, a inquestionável vantagem de reconhecer a existência de um “problema judeu” que deve ser enfrentado, de uma “questão judaica” que deve ser dirimida face-a-face.
Daí o valor que para ele possui o esforço originário de Theodor Herzl em ordem a dar forma e a intensificar uma vontade política que permitisse estabelecer um estado judeu e, consequentemente, uma política externa dos judeus. No entanto, apesar de Leo Strauss reconhecer a importância decisiva desta “vontade política” na criação de um estado dos judeus e para os judeus, o filósofo não tem ilusões quanto às limitações do “sionismo político” na sua proposta de solução do “problema judeu” ou “questão judaica”. Ao oferecer aos judeus em estado de extrema necessidade uma outra versão do estado liberal secular – um estado para um povo que durante dois mil anos viveu sem estado… – o sionismo, como filho que é do estado-nação do século XIX, não é senão uma nova forma de assimilação, baseada na crença de que os judeus devem tornar-se numa nação igual às outras nações (1 Samuel 8). Sob este ponto de vista, pode Strauss afirmar, acompanhando, neste particular, Max Nordau: “O sionismo continua e intensifica a tendência desjudaizante da assimilação”.
Ora, segundo Leo Strauss, o “pecado original” deste “sionismo estritamente político” foi que ele tivesse compreendido o “problema judeu” tal como sempre o liberalismo moderno o compreendeu: como um “problema meramente humano”, cuja solução requereria também meios apenas humanos, isto é, meios estritamente políticos. Considerando a situação dos judeus como uma doença natural que só poderia ser curada por meios também eles naturais, o sionismo estritamente político propugnado por Theodor Herzl, ao mimetizar a doutrina liberal da qual nascera, fracassou tal como sempre fracassara também antes o remédio liberal que esteve na sua origem. Strauss reconhece que enquanto pura exigência moral deduzida da razão, a solução liberal trouxe mais igualdade jurídica aos judeus, porém, não só não teve qualquer efeito sobre os sentimentos dos não-judeus para com os judeus, como também não garantiu idêntica igualdade social para os judeus, e muito menos impediu a continuação da discriminação contra os judeus nas nações anfitriãs.
Ora, este falhanço do remédio liberal com vista à resolução da “questão judaica” significa para Strauss que os judeus não podiam recuperar a sua honra assimilando-se individualmente às nações nas quais viviam ou tornando-se meros cidadãos como todos os outros cidadãos dos estados liberais. Em consequência das insuficiências históricas manifestadas pelos princípios políticos liberais na sua tentativa abortada de lidar com o “problema judeu”, a resolução da “questão judaica” passaria agora por uma solução também ela “puramente política”, mas, entretanto, capaz, presumia-se, de devolver aos judeus a honra ou o orgulho em ser judeus. E uma vez que para Theodor Herzl a “questão judaica” jamais foi uma questão social ou religiosa, mesmo se ocasionalmente ela tomou essas formas, tal significava que a verdadeira solução da “questão judaica” requeria que os judeus se tornassem “iguais a todas as nações”, exigindo que a nação judaica se assimilasse às nações do mundo e que, tal como estas, instituísse também ela um estado moderno, liberal e secular. Por conseguinte, só assegurando a honra da nação judaica é que a honra dos judeus, tomados individualmente, seria alguma vez respeitada. Eis as próprias palavras de Theodor Herzl sobre o assunto: “Queiram-no ou não os judeus, eles são uma nação, uma nação ligada pelo seu sofrimento. Independentemente dos seus desejos, os seus inimigos fazem deles uma nação”.
Sob este ponto de vista, o programa revisionista da corrente sionista protagonizada por Vladimir Jabotinsky, o herdeiro radical de Herzl, era bastante claro: “O programa não é complicado. O objectivo do sionismo é um estado judeu. O território: ambas as margens do Jordão. O sistema: colonização massiva. A solução do problema financeiro: um empréstimo nacional. Estes quatro princípios não se podem realizar sem a sanção internacional. Portanto, o mandato é: uma campanha política nova e a militarização da juventude judaica no Eretz Israel e na diáspora”.
Sionismo político, sionismo cultural, sionismo religioso
Ao fazer do “problema judeu” ou “questão judaica” uma questão nacional, o “sionismo estritamente político” de Pinsker e Herzl, enquanto movimento de uma elite a favor de uma comunidade constituída por uma descendência comum e por um sofrimento comum, movimento este que tinha em vista a restauração da honra judaica através da criação de um estado judeu e da ocupação de uma terra onde localizar esse estado, esse movimento, pesem embora os seus louváveis e até heroicos propósitos, jamais poderia resolver o “insolúvel” “problema judeu”. Como sobre este ponto refere o nosso autor: “O sionismo político, mais do que do que qualquer outro movimento, preocupou-se de uma maneira apaixonada e séria com a dignidade humana dos judeus. O que no fim de contas ele queria era que os judeus pudessem regressar à sua terra de cabeça erguida, não em virtude de um acto divino, mas antes por uma acção política e militar – combatendo”.
Contudo, apesar de nele reconhecer a existência de virtudes viris, e de o considerar uma “sugestão honrosa”, Leo Strauss considera que o “sionismo estritamente político” não passou de uma solução meramente formal, incapaz, dada a ilusão romântico-liberal que o determinava, de dar uma solução consequente ao “problema judeu”. Para além disso, a solução tipicamente liberal do “sionismo estritamente político” leva, no fundo, à “assimilação”, a qual é a negação da própria judeidade, pois ao pressupor o abandono do traço específico dos judeus, a sua religião, para o substituir por um nacionalismo moderno de tipo europeu e ocidental, ele ficava, desse modo, sem nenhum fundamento para a sua invocada diferença étnica e religiosa. Essa a razão por que os sionistas ateus deixavam, paradoxalmente, de ser judeus. Ora, segundo Leo Strauss, uma tal solução é uma solução limitada porque permanece ainda e sempre uma solução política para o “problema judeu”. Todavia, o “problema judeu”, como problema teológico-político que é, não se reduz à sua dimensão política.
Ora, esta falta de perspectiva histórica, que segundo Leo Strauss caracteriza o “sionismo estritamente político”, preocupado como estava apenas com a urgência de acção no presente, mostrou simultaneamente as suas limitações e, com elas, criou também as condições que tornaram possível o aparecimento do chamado “sionismo cultural”.
Mas o que vem a ser, afinal, o “sionismo cultural”? De acordo com o mentor desta corrente, Asher Hirsch Ginsberg (ou Ahad Ha’am: 1856-1927), o sionismo, para além de uma comunidade de ascendência e de uma comunidade de sangue, deve ser sobretudo uma “comunidade de espírito”.
O que é que isto significa? Significa que segundo a principal voz do “sionismo cultural” o estado judeu deve ter uma vida própria que o distinga de outros estados. No entender de Leo Strauss essa é, aliás, uma exigência que decorre da própria tradição judaica, pois “um estado judeu sem uma cultura judaica que mergulhe as suas raízes na herança judaica seria uma concha vazia”. Contudo, este “sionismo cultural” que, segundo Strauss, apela a uma cultura judaica a fim de estabelecer o que deve ser o génio nacional do estado judeu, não está ele próprio isento, na relação que estabelece entre os meios e os fins, de contradições insolúveis que minam por dentro a sua proposta meramente secular de resolução da “questão judaica”. Porquê? Porque aquilo que, segundo Strauss, constitui a autoridade da herança judaica não pode ser interpretado como uma cultura exactamente igual a qualquer outra cultura, de acordo com um sentido relativista de uma coexistência pacífica entre diversas culturas.
Com efeito, se a cultura judaica significa o produto do espírito judaico por oposição aos outros espíritos nacionais, é porque ela, considera Strauss, assenta fundamentalmente na Torah, no Talmude e no Midrash. De acordo com a dogmática judaica tradicional a nação judaica é compreendida e justificada à luz da Torah. Não foi, portanto, a nação judaica que esteve na origem da Torah, mas, pelo contrário, foi a Torah que deu origem à nação judaica. Isto significa que a herança judaica não se apresenta com um mero produto do espírito humano, mas como um dom divino, como uma revelação divina. Por conseguinte, a substância do judaísmo não se funda, para muitos sionistas, numa cultura, ela é antes uma revelação divina. Efectivamente, se o “sionismo cultural” for consequente consigo mesmo, deve antes de mais, compreender-se como um “sionismo religioso”, como um retorno à fé judaica, pois também o “sionismo religioso” é, em primeiro lugar, a fé judaica, e só depois é que é… sionismo. Daí que a modernizada teologia do “sionismo cultural”, que rejeita a tradicional religião judaica do exílio e a sua crença no monopólio divino da redenção possa ser vista seja vista pelos sionistas religiosos como um ateísmo não confessado, como uma variante do protestantismo cultural moderno que mergulha as suas raízes na crítica Iluminista da religião.
Portanto, o que para Strauss aqui importa, o que para ele se torna decisivo, é que o fundamento último, fundamento incontornável de qualquer possível definição étnico-cultural da condição judaica, é inevitavelmente a religião judaica. Paradoxalmente, foi esta problemática possibilidade de definir o sionismo sem qualquer espécie de remissão ao judaísmo, entendido como um puro movimento nacionalista secular, foi ela, dizia, que fez com que nenhuma ideologia sionista pudesse contornar a discussão sobre a relação entre nacionalismo e religião, entre nacionalismo judeu e religião judaica, numa palavra, entre sionismo e judaísmo.
Ora, para Leo Strauss é precisamente o sentido dessa “busca da verdade da tradição judaica” que as soluções sionistas para o “problema judeu” desconhecem, pois na medida em que aceitam as premissas irreligiosas modernas falham o ataque a um problema que, segundo Strauss, possui por essência uma incontornável dimensão transcendente e religiosa. E o “sionismo estritamente político” falha precisamente porque propõe uma solução ateia para um “problema judeu” ou “questão judaica” cuja essência é de natureza teológico-política.
Sob esta perspectiva, a solubilidade meramente humana para o problema de todo o judeu que rompeu as suas ligações com a comunidade judaica na esperança de, por esse meio, se tornar num membro normal de uma sociedade puramente liberal ou num cidadão universal de uma sociedade humana universal, consiste em ele regressar à comunidade estabelecida pela fé judaica e pelo modo de vida judeu – teshouvah (arrependimento, num sentido lato).
Uma vez mais – Leo Strauss não se cansa de o sublinhar –, uma solução meramente humana ou política para o “problema judeu” é sempre uma solução deslocada, parcial, errónea. Deve mesmo ser julgada como uma “solução blasfemadora”, pois, para Strauss, apenas os problemas finitos, problemas relativos, podem ser resolvidos, nunca os problemas absolutos, os quais – tal é, segundo ele, o caso do “problema judeu” – são necessariamente insolúveis. Por isso, que o estabelecimento do estado de Israel possa ser considerado como o acontecimento mais importante desde o acabamento do Talmude, algo que Strauss parece disposto a aceitar, mesmo nesse caso, um tal estado não pode ser entendido como a chegada da era messiânica e da redenção de Israel e de todos os homens. Numa palavra, a criação do Estado de Israel não resolve o “problema judeu” ou “questão judaica”. Por conseguinte, mesmo que o estabelecimento do estado de Israel signifique, num certo sentido, um progresso no caminho da assimilação judaica, mesmo nesse caso, a mera existência de um tal estado significa ainda e sobretudo uma inevitável reafirmação da distinção entre judeus e não judeus.
De acordo com Leo Strauss, ainda que a edificação do estado de Israel viesse a ser um facto (o que nos anos vinte do século XX, quando ele escreveu os seus “escritos sionistas”, estava muito longe de ser uma certeza) não se poderia nunca presumir que os antagonismos entre judeus e não judeus desapareceriam da face da Terra: “O estabelecimento do estado de Israel é a mais profunda transformação do Galut [Exílio] que alguma vez ocorreu, mas não é o fim do Galut. No sentido religioso, e talvez não apenas no sentido religioso, o estado de Israel é uma parte do Galut”.
Para Leo Strauss, a experiência do Galut – a história dos judeus durante a sua diáspora – teve o efeito positivo de fortalecer a fé tradicional judaica: “No Galut” – afirma Strauss – “o povo judeu existe como um povo que vive no ar [Luftvolk]. Falta-lhe o terreno por debaixo dos pés, tanto no sentido literal como no sentido figurado, e depende de todas as contingências do comportamento dos outros povos. Nesta condição, a vida é mantida por uma forte vontade de existir. […] Esta é a essência do Galut: ele dota o povo judeu de uma possibilidade máxima de existência através de um mínimo de normalidade”.
Mas que a existência do estado de Israel seja apenas uma parte do Galut significa, no fundo, que não há, para Leo Strauss, uma solução para o “problema judeu” ou “questão judaica”. O “problema judeu” é, para ele, a ilustração mais simples e a mais acessível do problema humano: “É uma maneira de dizer que os judeus são o povo eleito” e que o povo judeu e o seu destino são os testemunhos vivos da ausência de redenção: “Tal é o sentido, poder-se-ia dizer, do povo eleito: os judeus são eleitos para provar a ausência de redenção”.
Sionismo, messianismo, liberalismo, secularismo
Chegou agora o momento de esquematizarmos a análise straussiana do sionismo passando em revista os seus principais tópicos. Uma vez esta síntese feita, passaremos à conclusão, onde afloraremos um ou outro ponto problemático da relação entre o sionismo e judaísmo de que o próprio Leo Strauss não extraiu, assim nos parece, todas as consequências.
Como vimos até aqui, Leo Strauss considera o sionismo (os vários sionismos, e não apenas o sionismo político) como altamente “problemático por razões óbvias”. Bom, mas de que problemas se trata, ao certo, aqui? E quais são essas razões que ele qualifica como óbvias?
Em primeiro lugar, é problemática a relação do sionismo com o messianismo, pois o sionismo estimula, ao mesmo tempo que nega, as esperanças messiânicas dos judeus. Estimulou-as porque necessitava de se apoiar nelas para aumentar a eficácia do seu apelo à restauração do estado de Israel, mas nega-as porque o estado de Israel, como vimos, não põe um termo ao Galut [Exílio], no seu sentido teológico, ao invés, ele é antes uma modificação teológico-política do Exílio, o qual, para os sionistas religiosos, nunca se poderá estabilizar politicamente e estará sempre ameaçado por aqueles que traduzam as expectativas messiânicas em novas conquistas políticas, de que as conquistas territoriais no Eretz Israel são o flagrante exemplo.
Em segundo lugar, é problemática a relação do sionismo com o liberalismo. Não apenas por causa, como vimos, das limitações essenciais do liberalismo moderno, que se mostrou incapaz de “integrar” politicamente os judeus, mas também porque o espírito do liberalismo moderno é uma contradição fundamental no próprio coração do sionismo: por um lado, o pensamento sionista reconhece honestamente a futilidade das esperanças originais do liberalismo moderno na sua tentativa de assimilar os judeus na cultura gentia; por outro lado, ele repousa inteiramente nas premissas do liberalismo moderno ao decidir resolver o “problema judeu” ou “questão judaica” por meios exclusivamente humanos, como se tratasse de um problema meramente humano susceptível de uma simples solução humana. Ora, isto supõe uma dramática ruptura com o pensamento tradicional judeu acerca dos limites da acção humana. No que toca a este contra-senso, Leo Strauss percebeu muito bem o modo como o sionismo, inspirando-se no liberalismo, expõe ao mesmo tempo, e com uma necessidade que se torna eloquente, as limitações do próprio liberalismo.
Em terceiro lugar, é problemática a relação do sionismo com a cultura secular. O sionismo político define-se a si mesmo em termos puramente seculares e nega qualquer dependência fundamental da tradição religiosa judaica. Todo o contrário, portanto, daquela ideia contida num célebre aforismo do poeta francês René Char, segundo a qual “notre héritage n’est précéde d’aucun testament”. Com efeito, para “normalizar” a existência política dos judeus através de um moderno estado nacional, o sionismo político, considera Strauss, necessita de operar um “retorno espiritual” à fé tradicional judaica, e o estado de Israel deve, por isso mesmo, ter em conta essa tradição para se poder apoiar numa cultura nacional moderna. Por conseguinte, se o que se quer é um “estado judeu” e não apenas um “estado dos judeus”, do que se necessita não é de uma cultura ocidental universal, mas de uma cultura judaica particular. Portanto, o sionismo político precisa de se apoiar num sionismo cultural. Mas o sionismo cultural, por sua vez, não pode inspirar-se noutra coisa senão na tradição e na história judaicas, as quais, paradoxalmente, o sionismo tinha, senão recusado, pelo menos emendado; e essas fontes nas quais o sionismo cultural é obrigado a beber não podem secularizar-se, sob pena de secarem, pelo que, quando o sionismo cultural reflecte sobre si mesmo, deve necessariamente transformar-se em sionismo religioso. Cabe neste passo referir que é altamente duvidoso que os “anti-sionistas” de serviço possam vislumbrar o que aqui está verdadeiramente em causa.
Ora, esta análise faz com que Leo Strauss duvide de que o matrimónio secular do sionismo político com o sionismo cultural no moderno estado de Israel, por impressionantes que sejam as realizações deste último, seja suficiente para apoiar os judeus na sua vida espiritual e no seu esforço de sobrevivência. A conclusão de Leo Strauss é a de que o estado de Israel, se quer permanecer politicamente são e se quer continuar a florescer culturalmente, terá que fortalecer e alimentar as suas raízes teológicas nas fontes tradicionais do judaísmo.
Chegados a este ponto, e expostas assim as teses de Leo Strauss sobre o sionismo, não é possível agora ocultar que, independentemente das responsabilidades que a Modernidade possa ter tido na sua génese, o Shoah foi efectivamente o túmulo do Iluminismo europeu, a prova definitivamente acabada da incapacidade das sociedades do Ocidente em se organizarem de acordo com os princípios liberais que proclamam.
Como é bom de ver, levanta-se aqui o problema de saber até que ponto o ódio aos judeus, que o último quartel do século XIX europeu baptizou com a expressão “anti-semitismo”, torna não apenas necessária, mas sobretudo inexorável, a existência do estado de Israel tal como os sionistas a idealizaram. Uma coisa parece clara: a existência do estado de Israel está indissociavelmente ligada à presença e à persistência nos estados-nações europeus do que alguns autores chamam o “anti-semitismo eterno”.
De acordo com a filósofa Hannah Arendt, que reflectiu demoradamente sobre o assunto, o pressuposto do perpétuo ódio gentílico contra os judeus expresso na tese do “anti-semitismo eterno” não pode deixar de fornecer argumentos aos anti-semitas profissionais. Eis o que, sobre o assunto, escreve a autora de The Origins of Totalitarianism: “A explicação do anti-semitismo baseada na teoria de que os judeus são um bode expiatório continua a ser uma das principais tentativas de escapar à seriedade do anti-semitismo e ao significado do facto de os judeus terem sido atirados para o centro dos acontecimentos. Igualmente espalhada, é a doutrina oposta de um ‘anti-semitismo eterno’ na qual o ódio ao judeu é uma reacção normal e natural à qual a história dá apenas uma maior ou menor oportunidade. As explosões de anti-semitismo não necessitam de uma explicação especial porque são as consequências naturais de um problema eterno. Que, por via de regra, esta doutrina tenha sido adoptada por anti-semitas profissionais, é o melhor alibi possível para todos os horrores. Se é verdade que a humanidade tem insistido em assassinar judeus durante mais de dois mil anos, então o assassínio de judeus é uma ocupação normal, humana mesmo, e o ódio ao judeu fica justificado sem a necessidade de qualquer argumento. O aspecto mais surpreendente desta explanação, a assumpção de um anti-semitismo eterno, é o facto de ter sido adoptada por muitos historiadores imparciais e por um número ainda maior de judeus”.
A “ideia consoladora” – como lhe chama Arendt – de que o anti-semitismo, bem vistas as coisas, pode, afinal, manter o povo judeu unido em torno dos seus inimigos, de modo que na existência de um anti-semitismo “eterno” estaria também a “eterna” garantia da existência do povo judeu, é levada ao extremo por um autor como Itzhak Baer, o qual chega ao ponto de afirmar que “o anti-semitismo é uma liga internacional com vista à sobrevivência do judaísmo”.
Se é, pois, verdade que uma das justificações políticas usualmente apresentadas para a existência do estado de Israel – justificação pragmática e vital – é a de que ele constitui um refúgio e uma garantia contra um “eterno anti-semitismo” sempre renovado, é igualmente certo que a legitimação política de um tal estado se torna extraordinariamente difícil tomando como ponto de partida apenas uma qualquer ideologia política secular que não seja, finalmente, apenas um pálido disfarce da religião judaica. Seja como for, a verdade é que a necessidade de constituição um estado judaico por motivos pragmáticos de sobrevivência é o testemunho mais irrefutável do definitivo fracasso ético e político da Modernidade iluminista e liberal, a pedra-de-toque na qual necessariamente tropeçam todas as ideologias políticas modernas.
Podemos agora afirmar que é esta a principal conclusão de Leo Strauss a respeito da “questão judaica”. Dito de outro modo, a criação do estado de Israel é uma consequência da incapacidade do Ocidente para resolver o “problema judeu” ou “questão judaica”, sendo que o reconhecimento de um tal estado na ordem jurídica criada após a II Guerra Mundial não pode deixar de implicar uma sanção positiva a uma legitimação étnico-religiosa do estado de Israel que só muito dificilmente pode ser conciliada com os valores e os princípios da ideologia democrática e liberal.
O Shoah como corpo místico da nação
E apesar de Leo Strauss o não afirmar de modo completamente aberto, o facto é que a explícita e manifesta consciência sionista de que a preservação da unidade do povo judeu depende do respeito para com a regulação do estatuto pessoal dos judeus por meio da religião judaica – uma regulação que pressupõe, implicitamente, a aceitação de que o critério último de definição da identidade judaica é a religião –, uma tal consciência marcará, desde o princípio, a impossibilidade de construir um estado secular consequentemente democrático e liberal. Por outro lado, dir-se-á que mediante a identificação transcendental dos actuais judeus israelitas com as vítimas do Shoah é o próprio “sionismo secular” que encontra o seu fundamento religioso autónomo, independentemente do judaísmo, ao transformar os seis milhões de mortos do Shoah numa espécie de corpo místico da nação judaica, legitimando, deste modo, a exploração de uma culpa infinita de um Ocidente eternamente anti-semita, autor, ou cúmplice, do genocídio dos judeus.
É um facto: oitenta anos após o fim da II Guerra Mundial, o peso do Shoah na vida pública israelita é mais forte do que nos primeiros tempos da existência do estado de Israel. Pode dizer-se que o genocídio dos judeus – como, num outro plano, hoje actualíssimo, o longo conflito israelo-árabe – desnaturou o significado principal do sionismo. Não apenas o ethos mítico do Shoah contribuiu para ocultar e secundarizar a realidade dessa revolução intelectual do judaísmo que dá pelo nome de sionismo, como a reduziu a uma experiência de vitimização que acabou por conferir uma espécie de santidade e de poder únicos às suas vítimas. Por outro lado, é um paradoxo digno de nota que no estado de Israel contemporâneo a destruição de uma parte do povo judeu seja frequentemente instrumentalizada com o fim de dispensar aos futuros cidadãos uma “educação sionista”, a qual muitas vezes se funda numa recusa da “condição da diáspora”.
Com efeito, desde a constituição do estado de Israel que o Holocausto e os seus seis milhões de vítimas jamais deixaram de estar presentes na esfera pública do país, assumindo um lugar central no debate político israelita e permanecendo indissoluvelmente ligados. Como observa Idith Zertal, a ritualização política do Shoah “está presente na legislação, nas orações, nas cerimónias, nos tribunais, nas escolas, na imprensa, na poesia, nas inscrições funerárias, nos monumentos e nos livros comemorativos, transformando Israel num lugar crepuscular em que o Shoah já não é um acontecimento do passado, heterogéneo e complexo, mas numa eventualidade permanente e numa ideologia que serve para tudo”. Quer directamente, quer enquanto metáfora, o Shoah é integrado na vida quotidiana de Israel, à qual ele empresta um sentido transcendente e inefável que – indo além da própria realidade histórica do Shoah – mergulha o conjunto da experiência judaica num fundo negro de vitimização. Deste ponto de vista, o Holocausto é um passado que não conhece um fim e que, por isso mesmo, se transforma num presente perpétuo. Ele fornece a matéria para a constituição de um laço de sangue irrecusável entre os jovens nascidos em solo israelita – os “herdeiros patenteados do Shoah”, como lhes chama Idith Zertal – e os seus pais ou avôs europeus perseguidos e exterminados.
O estado de Israel e o Shoah – ou antes, a existência de um estado judeu que retira a sua necessidade histórica e a sua legitimidade política dos efeitos catastróficos do Holocausto – inauguraram uma nova era na história judaica, tanto no modo como os próprios judeus se veem a si mesmos, como, não menos importante, no modo como passaram a ser vistos pelos não judeus. Ambos os acontecimentos marcam e simbolizam uma ruptura que não apenas influenciou a personalidade dos judeus enquanto povo, como, mais decisivo, lhes forneceu um mito político fundador. De acordo com Yosef Gorny, um historiador israelita extremamente atento à realidade do seu país, a mudança mais importante dos últimos de anos em Israel foi a que permitiu a transferência do ponto de focalização da identificação nacional da criação do estado de Israel para o Shoah. É verdade que é bem mais fácil – sobretudo a um judeu da diáspora – a identificação intelectual, psicológica e política com o Shoah do que com o acto de criação do estado de Israel. Contudo, não é menos certo que o Shoah encarna, antes de mais, o fracasso da vontade colectiva dos judeus, ao passo que a criação do estado de Israel é a prova empírica que manifesta a força dessa vontade.
Na ambivalência que constitui a relação entre estes dois polos fundadores da actual vida judaica em Israel, pode dizer-se que é o ethos mítico do Shoah que reforça o ethos mítico do estado – e não tanto o inverso. Como, sobre este ponto, observa Yosef Gorny: “Dos dois mitos que hoje em dia actuam sobre a imagem do povo judeu – o estado de Israel e o Shoah – é o desastre que, trazendo à luz do dia a impotência colectiva, interessa o público mais do que os exemplos colectivos de coragem e de sucesso. O que a consciência do renascimento estatal parece ter perdido é o que a consciência do Shoah ganhou”.
Encorajando a identificação com a recordação da catástrofe, organizando peregrinações aos locais de destruição e extermínio, fomentando o estudo assíduo de livros e a análise de documentos que descrevem os factos, formulando lições históricas, filosóficas e teológicas sobre a tragédia que se abateu sobre os judeus, o ethos mítico do desastre do Shoah tem vindo paulatinamente a constituir-se como uma autêntica religião civil do estado de Israel, a qual garante a identificação emocional entre as vítimas e os seus herdeiros.
Em jeito de conclusão, cabe-nos sublinhar que através dos diversos mecanismos que concretizam e asseguram no terreno uma tal identificação, o sionismo político evita qualquer censura moral, procurando, desse modo, pôr-se também a salvo de toda e qualquer crítica racional. Efectivamente, com a aura de sacralidade que lhe adveio do “mal absoluto” padecido em Auschwitz, o sionismo de estado de Israel torna-se crescentemente impermeável à crítica e ao diálogo racional com o resto da comunidade das nações.
Não deixa, contudo, de ser uma prodigiosa ironia do destino que o Ocidente democrático e liberal se tenha aparentemente convertido à solução sionista do “problema judeu” ou “questão judaica” apenas a posteriori, isto é, uma vez consumada a criação do estado de Israel e apenas após a solução final nazi praticamente o ter feito quase desaparecer da Europa.
“Para o ano que vem em Jerusalém”.