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Através de uma simples fotografia, o olho treinado de um perito em cozinha japonesa consegue identificar o mês do ano em que um menu kaiseki foi servido — os elementos que decoram os pratos, os produtos utilizados e até algumas receitas específicas assim o permitem.
Rigorosa e cheia de nuances, a culinária nipónica tem neste kaiseki o seu nível máximo de especificidade. Em termos mais gerais, esta palavra que para muitos pode soar estranha é usada para caracterizar o fine dining japonês, a versão oriental daquilo que por cá chamamos de menu de degustação. Apesar de ter diversas matizes e variantes — uma delas muito associada ao shojin ryōri, por exemplo, que é um estilo de cozinha que nasce entre monges budistas e é essencialmente composto por pratos vegetarianos –, desde que o kaiseki foi adotado pelas famílias nobres e pela realeza imperial japonesa, formalizaram-se alguns conceitos base para o definir: a enorme atenção dada à sazonalidade dos ingredientes, os produtos raros ou dispendiosos e os vários momentos que se devem suceder com fluidez.
“Com folhas dessa cor [amarelas e vermelhas] e esses cogumelos, a refeição só pode ter sido servida em Outubro/Novembro”, disse ao Observador o chef Paulo Morais, enquanto via fotografias de refeições kaiseki servidas no Japão ao telemóvel. Foi este o homem escolhido por Tomoaki Kanazawa para assumir a liderança do Kanazawa, restaurante que o próprio abriu em 2016 e que teve de abandonar em meados de 2017.
Em funções desde 3 de Agosto de 2017 — “O chef Tomo fez o último serviço a 31 de julho e nós no dia três já estávamos a servir. Só tivemos tempo de arrumar tudo e perceber coisas básicas, por exemplo, como é que se ligava o gás [risos]. –, Paulo Morais reconhece que já passou tempo suficiente para que as suas ideias ganhassem forma. “Nós não pretendemos fazer um trabalho igual ao do chef Tomo, temos o nosso cunho muito vincado. Ele era uma pessoa e eu sou outra”, conta o sensei Morais. Apesar desta mudança de rumo, o pequeno espaço onde só são servidas, no máximo, oito pessoas por noite (só está aberto ao jantar), continua a ser um dos mais emblemáticos em Portugal.
Tomo, o japonês que veio de França
Há pouco mais de um ano, quando todos os críticos começaram a especular sobre quem seriam os novos estrelados Michelin, havia um nome que aparecia em todas as listas, blogs e conversas: Kanazawa. Inaugurado no final de 2015, esta surpreendente aposta do chef Tomoaki Kanazawa levantou muitas dúvidas a quem conhecia o trabalho deste japonês, já que se propunha a trocar o muito bem sucedido Tomo (chegou a ser destacado pelo jornal ABC), por um outro altamente específico. Fê-lo numa altura em que o fenómeno do sushi já estava mais que interiorizado em Portugal, mas com um objectivo: não ser um espaço igual aos que existem espalhados pelas ruas e food courts que servem uma versão adulterada da verdadeira comida nipónica.
Rolos com morango e queijo creme? Cones de alga atafulhados de arroz e salmão? Não, nada disto teria lugar no Kanazawa. Um menu mais elaborado e sazonal, o tal kaiseki, por oposição às cartas tradicionais seria a única escolha. Ainda por cima cada refeição custaria cerca de 170€.
A verdade é que os lisboetas acolheram de braços abertos os kaisekis do chef Tomo e em pouco tempo não só se dissiparam as dúvidas iniciais como o Kanazawa foi catapultado para a lista dos melhores restaurantes do país.
“Ele veio para cá por causa da embaixada japonesa”, explica o Paulo Morais. Tomo era o cozinheiro oficial do embaixador japonês em Lisboa tendo, antes, passado por França. Depois de vários anos a cozinhar (e a aprender) em terras gaulesas, Tomoaki mudou de geografia e tudo correu muito bem por cá, de tal forma que “quando chegou a altura do embaixador regressar ao Japão, ele quis ficar” com a mulher, Kayo (exímia pasteleira), e a filha. Pouco tempo depois começa a trabalhar no restaurante Aya. Fica por lá durante uns tempos mas depois acaba por se aventurar a título próprio, com um pequeno espaço na zona de Pedrouços. Seguiu-se o Tomo e o Kanazawa.
Já depois da “febre das estrelas” ter passado — e de nenhuma ter ido parar ao número três da Rua Damião de Góis, em Lisboa –, começaram a surgir alguns rumores de que o famoso chef Tomo poderia estar prestes a regressar à sua terra natal. Aparentemente, motivos pessoais começaram a pressionar o japonês e este escolheu o chef Morais como seu sucessor.
O “sim” de Paulo Morais foi quase instantâneo, conta o próprio. Apesar de nessa altura ainda estar envolvido no projeto Rabo d’Pêxe, achou que seria possível conciliar as duas coisas: a manhã e o almoço eram passados num lado e a tarde/noite no outro. Paulo não tardou muito a perceber que isso seria incomportável e aos poucos foi preparando a sua saída de um restaurante para se mudar completamente para o outro.
Paulo Morais, um sensei que fala português
“Uma das coisas que o chef Tomo me perguntou logo depois de assumir o restaurante foi se manteria o mesmo nome. Disse-lhe que sim: Kanazawa pode ser o apelido dele, mas também é o nome de uma região muito bonita e interessante do Japão”, diz. E o novo chef não sentiu uma mudança considerável ao passar a trabalhar num registo deste género: “Num projeto que tive em Oeiras há uns tempos, o QB Essence, a cozinha era toda aberta e eu servia tudo diretamente ao cliente. Essa proximidade é uma coisa que sempre me entusiasmou e que sempre gostei. Acho que faz todo o sentido e é uma das coisas que eu gosto mais aqui no Kanazawa. É um regressar às origens!”
Paulo Morais começou a trabalhar em cozinha japonesa em 1990. Nesta altura, quando tinha pouco mais de 18 anos, a cozinha nipónica ainda era um mistério para os portugueses — e até para o próprio, que tinha acabado de sair da Escola de Hotelaria de Lisboa. “Um dia a escola avisou-me de que uma cadeia de restaurantes japonesa se tinha acabado de instalar perto da praia do Tamariz, no Estoril, e que estavam à procura de pessoas”, explica. Paulo, que tinha tido uma experiência muito negativa ao estagiar num restaurante “ocidental” em Lisboa, decide arriscar e é assim que vai parar ao Furusato (em português, “lar doce lar”), espaço que, segundo avança, foi um dos três primeiros restaurantes japoneses em Portugal, a par do Kamikaze e do Bonsai — dos três, só o Bonsai ainda se mantém aberto.
O novato Paulo Morais acaba por ser contratado e é destacado para a área do teppanyaki, uma vertente da cozinha japonesa que consiste em cozinhar numa enorme chapa de metal, à frente dos clientes. A colocação parecia promissora, mas os seus primeiros tempos foram passados a fazer a preparação dos ingredientes que o chef mais veterano depois iria usar — “estava sempre no backoffice!” Tudo isto mudou, porém, num dia em que esse cozinheiro mais sénior chegou ao pé dele, deu-lhe a jaleca e o chapéu especial, assim como a faca, garfo e espátulas próprias de quem trabalha no teppan. “Ele só me disse: ‘A partir de hoje vais lá para fora’. Aquele momento, para mim, foi incrível”. Esta promoção, e tudo aquilo que foi aprendendo, selaram a paixão pelo oriente que o acompanha até hoje.
Acabou por passar quatro anos neste Furusato e daí seguiu para o Midori, no Penha Longa Resort, casa que lhe abriu as portas do Japão, enviando-o para lá várias vezes, para que colecionasse todo o conhecimento que, na altura, era tão difícil de encontrar em Portugal. “Até aos anos 2000 não havia quase informação nenhuma sobre comida japonesa”, realça. Com o passar do tempo acabou por ir parar a restaurantes como o Bica do Sapato, ao tal QB Essence e até ao Umai, que abriu em parceria com a mulher, Anna Lins, também ela uma aficionada da comida oriental (gere o Miss Jappa, em Lisboa).
Entre pratos, taças e pauzinhos
Uma das principais diferenças entre o trabalho dos chefs Paulo e Tomo é o facto de este último mudar de ementa de três em três meses, enquanto o seu substituto se propõe a fazer uma renovação mensal — “Sinto que ao fazer assim estou a obrigar-nos a trabalhar melhor o produto e a fazer muitas coisas novas. Temos de nos esforçar por isso, ainda para mais porque tentamos sempre não repetir ingredientes.” É então, assim, com disciplina e criatividade, que este novo mindset ganha forma: as preparações e grande parte das compras são calculadas diariamente, consoante o número de reservas que têm e os produtos que usam são sempre os mais locais possível — os citrinos vêm da quinta Lugar do Olhar Feliz, no Alentejo, e o peixe e marisco é todo da nossa costa (“menos as vieiras, que não temos cá”). Já a carne wagyu (vem de vacas japonesas de qualidade superior) chega do Japão com o preço de 300€/quilo.
O trabalho que Paulo Morais faz ao balcão obriga-o a contar histórias sobre aquilo que vai servir ou a explicar ao pormenor determinado ingrediente. Logo no início desta refeição, antes dos pratos começarem a surgir, o chef começa a falar sobre o seu wasabi, por exemplo: “Nós estamos habituados a wasabi que não é wasabi… Na Europa já há vários produtores, mas este não deixa de ser um produto com muito que se lhe diga! Quando uma raíz é mesmo selvagem demora quase dois anos a crescer, o sabor é muito mais intenso. Já quando são feitos em estufa demoram apenas uns oito/nove meses e a diferença de sabor para com um natural é percetível para um japonês, por exemplo.”
O Kanazawa serve o Menu Tasting, que é composto por 10 momentos e custa 150€, o Miyazaki, que custa 100€ e tem sete pratos, o Kanazawa, com seis pratos a 90€, e o Oyama a 60€ por cinco pratos. Em menos de nada chega o primeiro momento do primeiro, uma espécie de entrada (o Sakizuke) composta por um pequeno mil folhas de tubérculos com chips de peixe e molho ramen — que desaparece num instante. O segundo prato, o Mokozuke, é composto por sashimi de peixes da época. Neste caso foram servidas seis variedades, nomeadamente encharéu, vieira, lula com ovas de truta, peixe porco curado em alga kombu, espadarte braseado, pargo e o famoso toro, o nome dado à barriga de atum que, neste caso, era da espécie bluefin, a mais popular em terras japonesas. Entre suaves mergulhos do peixe no molho de soja, o chef aproveitou para mais um momento de fun facts: “Sabem porque é que a barriga deste tipo de atum é tão saborosa?”, perguntou. Dada a resposta negativa, começou a explicar que tal acontece porque o peixe em questão é dos poucos que consegue mergulhar a grande profundidade, daí precisar de ter mais gordura (para proteger do frio) e um circuito cardiovascular mais potente, o que lhe dá maior sabor.
Quando nos é colocada à frente uma pequena caixa de madeira, avisam que chegou o prato seguinte, o Futamono (“prato com tampa”, em português). Dentro dessa tigela morava uma espécie de almofada feita com rábano cozido, claras em castelo, camarão e ouriço do mar. A acompanhar, uma pequena — outra característica dos menus kaiseki é ser composto por ligeiras doses — seleção de vegetais cozidos a vapor (“ao cozinharmos desta forma mantemos os seus sabores naturais, nada fica mascarado por condimentos ou outros temperos”) e um caldo dashi. O sabor muito elegante e subtil caía bem, mas a grande surpresa chegou logo depois em formato de bonsai.
O momento que se seguiu, de seu nome hassum, pretende ser o mais representativo da altura do ano em que é servido. Como ainda corria o mês de dezembro, o chef Paulo decidiu brincar com a ideia de árvore de Natal, transformando-a num bonsai que vinha “decorado” com pequenas e redondas iguarias (“para se assemelhar à bolas de Natal”), como o sushi de salmão fumado prensado, uma bola de vinho tinto recheada com foie gras, o pão cozido a vapor recheado com bivalves, uma terrina de lula com algas, raíz de lótus frita e uma gulosa cornucópia recheada com sapateira. Este último elemento é o que mais destoava, a nível de forma física, mas o chef explicou porquê: “Faço essa cornucópia desde os tempos da Bica do Sapato, persegue-me desde então.”
A conversa, como sake, ia fluindo. Antes da pequena árvore ficar despida de “enfeites”, o chef aproveitou para contar que já foi visitado por japoneses, para ele, o grande teste. “Há pouco tempo tive cá um casal que está a viver em Portugal há dois/três meses, e que já viveram em 60 e tal países pelo mundo”, começa por explicar. “Curiosamente, vieram cá porque são originários da região de Kanazawa! Disseram que gostaram imenso da refeição e prometeram que me traziam doces de lá quando fossem ao Japão.”. Mal acabou esta frase chegou o novo prato, o Yosanabe.
“Isto é mesmo aquela comida para toda a família desfrutar à volta da mesa”, diz, antes de colocar à nossa frente uma mini-fogueira com um tacho de ferro tapado. “Tradicionalmente, é a comida que como todos os fins-de-ano, lá em casa”, diz. De um ponto de vista mais simplificado, esta especialidade é semelhante ao fondue. O tacho vem com vários tipos de peixe, marisco e vegetais (“mas também fazem com carne”) que cada pessoa vai tirando. Quando se chega ao fim, o caldo onde tudo foi cozinhado é bebido como sopa.
O momento que se seguiu é um que, tradicionalmente,”costuma ser sempre mais avinagrado”. Numa tigela grande, de fundo azul, surge o prato que, de todos, mais se assemelha àquilo que podemos encontrar num restaurante de fine dining convencional: “Temos o camarão de Espinho, que leva um pouco de pomelo (citrino fantástico) por baixo. Há também a areia de frutos secos e sementes, uma espuma de água do mar e um molho feito com miso, sumo de citrinos e vinagre de arroz”. À mesa — ou melhor, ao balcão — houve que perguntasse se também era suposto comer a cabeça inteira do camarão. “Sim, é para ir tudo”, respondeu o chef, que aproveitou a deixa para explicar que normalmente, os japonêses que são intolerantes a produtos lácteos costumam ir buscar cálcio às cascas de marisco. Dado o estado do prato da pessoa que perguntou pela cabeça dos camarões, ela não era intolerante à lactose.
“Passamos para o Yakimono?”, perguntou Paulo Morais? Antes de ouvir uma resposta já nos era apresentado o primeiro e único prato com carne. Aparentemente, a combinação “mar e montanha” tem muitos fãs, na terra do sol nascente, daí justificar-se a ostra gratinada que acompanhou o cachaço de porco cozinhado a baixa temperatura e o chutney de tomate “um bocadinho picante”.
A grande diferença este kaiseki e um servido no Japão aparecia agora. “O tradicional japonês termina sempre com sopa, arroz e pickles. Nós fazemos o mesmo mas de forma ligeiramente diferente: usamos o sushi”, explica o chef. Ora o elemento do arroz aparece na base das 10 peças de sushi que são servidas e o elemento pickle surge na forma de lascas de gengibre — que se devem comer entre cada pedaço de sushi, para limpar o palato. A a sopa, miso, neste caso, surge em formato literal. “Acaba por ser uma reintrepretação nossa. O chef Tomo já fazia desta forma e eu decidi manter assim”, conta.
Apesar de este ser o momento que mais se distância do tradicional, a verdade é que é o mais fascinante. Com uma velocidade estonteante, o chef puxa da caixa de madeira onde guarda o peixe e o marisco do dia, puxa um recipiente de arroz para perto de si, e começa a fazer nigiris e makis a uma velocidade relâmpago. “O nosso arroz é mais acastanhado porque regamo-lo com um vinagre de arroz envelhecido”, dispara. As peças são sempre diferentes, de dia para dia, e é o chef que as define no momento, consoante os gostos ou preferências do cliente, daí sr quase impossível prever o que é que aqui se vai encontrar. Aquando da visita do Observador surgiram peças que usavam ostra, vieira com kisami wasabi (consiste numa mistura da rama do wasabi picada com a pasta mais comum), lingueirão com molho miso, toro, carabineiro braseado e até ameijola, um parente maior da ameijoa tradicional.
O que é bom acaba depressa e aqui não houve . O festim de peixe cru terminou e chegava a sobremesa, uma construção com vários tipos e texturas de chocolate (o branco aparecia em gelado, o de leite em mousse e o negro em brownie), uma telha de citrinos, biscoito de pistácio e uma compota feita com o citrino kumquat. Assim que tudo isto desapareceu dos pratos, o chef avisou: “agora é o chá”.
A cultura japonesa é cheia de pequenos rituais e procedimentos milenares que abrangem tópicos tão diferentes como o amanhar um peixe (os cozinheiros da zona de Osaka tendem a abrir o animal pela zona da barriga, já os de Tóqui fazem-no sempre pelas costas) ou a decoração de um restaurante — têm de ter sempre presente algo que remeta a cada um dos cinco elementos naturais e também, por exemplo, nunca pode faltar uma espécie de cortina à entrada do espaço, para o obrigar os clientes a fazerem sempre uma vénia quando entram. No meio de tudo isto, o chá não é diferente.
“A cerimónia do chá começa sempre com o aquecer da chávena”, explica Paulo Morais enquanto agita um pouco de água quente nas taças onde vai servir a bebida. O chá é sempre verde, mas não é igual àquele convencional que vem em saquetas. Ele vem sempre em pó, e é diluído na água com a ajuda de um instrumento parcido com um píncel de fazer a barba, só que em vez de pelo tem umas varetas de ar frágil. Já ouviu falar da Matcha? Pois saiba que esse é outro nome dado a este “chá em pó” que vem do Japão. Quentinhos e bem satisfeitos damos a (longa) refeição por concluída.
Antes de deixar o chef ir descansar foi impossível não fazer a pergunta de um milhão de dólares: “O chef Tomo vai voltar?” Paulo é bastante claro ao dizer que sim, “pode haver essa possibilidade”, mas isso não é algo que esteja no horizonte do japonês. O acordo celebrado entre estes dois mestres da comida nipónica fez deles sócios, mas Paulo vai pagando uma quantia a Tomo todos os meses. Esta espécie de renda acaba por ser um pagamento a prestações da totalidade do restaurante. “Quando chegarmos ao fim dos pagamentos, o Kanazawa passa a ser totalmente meu”, diz o chef mesmo antes de nos despedirmos. Olhando para tudo o que se passou no decorrer da refeição, é seguro afirmar que o espaço estará mais que bem entregue.