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Kelsey Leigh teve o seu primeiro filho em 2012. Três anos depois, esta residente de Pittsburgh e o marido quiseram dar “um irmão” ao filho e resolveram tentar engravidar outra vez. Foi o que aconteceu e, durante algumas semanas, tudo parecia estar a correr bem.
“Até que, às 20 semanas, fui fazer uma ecografia mais aprofundada, como é habitual. Entrei a achar que ia saber teria um menino ou uma menina. Mas, quando estava a fazer o exame, perceberam que algo se passava: ele não se estava a mexer”. O diagnóstico médico que veio depois foi aterrorizante para Kelsey: “Havia indícios de que ele não estava a desenvolver os membros superiores e inferiores. Os médicos foram muito claros: isto não iria mudar, ele iria nascer assim. ‘A decisão é sua, mas estamos muito certos de que, por exemplo, ele vai partir vários ossos durante o parto’, disseram-me. O coração batia, nessa parte estava tudo normal. Mas ouvir que o meu bebé iria partir os ossos no parto, que iria ter problemas musculares, problemas neurológicos… Para mim, isso não é qualidade de vida.”
Uma semana depois, Kelsey decidiu abortar.
121-70, o número que Kelsey tatuou no braço por representar uma vitória pessoal sobre o aborto
À altura, no estado da Pensilvânia, o limite legal para uma interrupção da gravidez era de 23 semanas, por isso Kelsey pode fazer o procedimento sem problemas num hospital. Mas, pouco depois, o congresso deste estado (que já teve maiorias quer republicanas quer democratas, mas à altura as duas câmaras eram controladas pelo Partido Republicano) decidiu votar uma proposta de lei para alterar as regras. “Quando soube fiquei a tremer, a suar. Só pensava: isto era eu há um mês”, recorda esta eleitora democrata, com quem nos encontramos num café da moda, mesmo no centro de Pittsburgh — a segunda cidade maior do estado e um bastião do Partido Democrata na Pensilvânia.
Kelsey envolveu-se no ativismo. Escreveu um email para a Planned Parenthood, a organização que tem várias clínicas onde se realizam abortos e que faz campanha pelo movimento de legalização do procedimento em todo o país, e disse ‘Usem-me, usem a minha historia’. Estava consciente de que o seu caso era bom para apelar a um eleitorado mais moderado: era uma mulher casada, que teve uma gravidez planeada e a interrompeu dentro do termo permitido pelo seu estado devido a uma malformação.
Fez campanha para que a lei não fosse aprovada, como um evento com outras mulheres para partilhar o seu testemunho. Nessa mesma tarde, quando saiu do palco, foi informada de que a proposta de lei tinha sido chumbada. Mas, dois anos depois, os representantes locais voltaram a apresentar uma proposta de lei semelhante e Kelsey voltou a fazer campanha acesa com outros voluntários, sobretudo mulheres e médicos. No final, apesar de ter havido mais votos a favor do que contra a lei, esta não teve os suficientes para impedir o veto do governador democrata. Kelsey Leigh sentiu um enorme alívio. O momento foi tão importante na sua vida que tatuou no braço o resultado da votação: 121-70.
Em 2022, com a decisão do Supremo Tribunal de reverter a proteção a nível nacional da interrupção voluntária da gravidez (Roe v. Wade), Kelsey decidiu despedir-se e tornar-se “ativista a tempo inteiro”. Passou seis meses a atender telefonemas numa clínica da Planned Parenthood e mais tarde subiu na hierarquia da organização. “É o trabalho mais poderoso que já tive”, afirma.
Lembra-se nos primeiros tempos dos telefonemas que atendeu e a impressionaram, como o de uma mulher da Virgínia Ocidental onde a atual lei praticamente não prevê exceções que permitam o procedimento: “Ela achava que podia ser presa e acusada judicialmente só por ligar a pedir informações”, diz Kelsey, espantada. “Ouvi casos de mulheres que engravidaram porque estavam a amamentar um recém-nascido e achavam que isso impedia uma nova gravidez. Mulheres em situações de violência doméstica. Estudantes que só querem acabar os estudos. São tantas histórias! Podia ficar aqui todo o dia.”
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Pensilvânia, um estado onde o aborto é um tema que pode ditar o rumo da eleição
A reversão do Roe v. Wade deu um novo impulso ao movimento pró-aborto na Pensilvânia. Em 2022, nas eleições intercalares, a vitória foi dos democratas, muito graças a este tópico. Nesse mesmo ano, Josh Shapiro concorreu a governador do estado e apoiou medidas para facilitar o acesso a pílulas abortivas e extensão dos seguros de saúde para cobrirem o procedimento médico — venceu. No ano seguinte, Kelsey Leigh foi convidada por uma congressista para assistir ao vivo ao discurso de Joe Biden do Estado da União, em homenagem ao trabalho que fez nesta área.
O tema pode ser decisivo na Pensilvânia, até porque mobiliza muitos eleitores democratas e Kamala Harris tem sido assertiva quanto à defesa do Roe v. Wade. Mas, ao mesmo tempo, pode servir para reforçar a votação em Donald Trump pelos eleitores pró-vida, a maioria de grupos profundamente religiosos. Segundo as sondagens, quase 50% dos eleitores do estado consideram o aborto um dos tópicos principais para escolher o próximo Presidente — embora o tema na Pensilvânia seja mais mobilizador para democratas do que republicanos, ao contrário do que acontece em estados como o Iowa, onde a comunidade evangélica tem mais peso. De qualquer forma, num swing state onde cada voto pode ser decisivo, o peso dos cristãos não pode ser descartado pelas duas campanhas.
Neste momento, há 17 clínicas da Planned Parenthood que fazem abortos no estado da Pensilvânia, duas delas em Pittsburgh. “Parece muito, mas não chega”, explica Kelsey, porque muitas mulheres de estados vizinhos onde a lei é mais restritiva viajam para este estado para os fazer. E os constrangimentos são muitos: “É preciso pagar imediatamente, o que é um problema para muita gente, que ainda tem de pagar as viagens. A clínica onde trabalho, por exemplo, é muito pequena e não se pode ir acompanhada. São coisas que afetam muito as vidas das pessoas. Vejam o Kansas”, diz a ativista, apontando para o exemplo do estado profundamente republicano onde a maioria votou num referendo para manter a legalização do procedimento.
É um exemplo de que o tema não se divide exatamente por linhas partidárias. A maioria dos norte-americanos, segundo as sondagens, foram contra a decisão do Supremo Tribunal. Mas há uma minoria muito vocal sobre o tema: os cristãos. Kelsey tenta não os demonizar e diz que os considera simples “peões” que são usados num tema que apela às emoções “por tipos que só querem poder”.
“Buzinem pela vida”. Haddon, um dos vários cristãos da Pensilvânia que se manifesta por ser pró-vida, mas que não se importa quando lhe mostram o dedo do meio
Chuck Haddon acha que é tudo menos um peão. Na praça principal de Lancaster, condado rural da Pensilvânia, este norte-americano de 67 anos está reunido com outras pessoas para fazer campanha contra as leis pró-aborto do estado. Na mão, trazem cartazes a pedir aos que passam de carro “buzinem pela vida” e “democratas matam bebés através do aborto”.
Está um dia agradável, com sol, mas o longo período passado na rua a manifestar-se faz com que Chuck mantenha sempre vestido o seu casaco corta-vento e o boné que lhe protege os olhos da luz, a imitar o design da marca Calvin Klein, mas com a legenda Christ is King (“Cristo é Rei”). Não arredará pé dali nas próximas horas. Porquê? Ao Observador, assume-se como um cristão e explica que isso norteia completamente a sua posição sobre o tema. “Desde muito jovem percebi quando começa a vida. E Deus diz ‘Não matarás’. Isto já aconteceu neste país, com a escravatura, por exemplo. Uma desumanização, como se não fossem pessoas. Mas são. A vida começa no momento da conceção.”
São sete pessoas, seis homens e uma mulher. Distribuem panfletos com o título “Desbloqueie a verdade”. Lá dentro, há imagens de fetos, acompanhadas de declarações de especialistas que afirmam que a vida começa no ato da conceção. Há também testemunhos de vítimas de violação que não abortaram. Como o de Liana: “Perguntei ao médico: se fizer o aborto, vou esquecer-me da violação? Vou esquecer a dor e o sofrimento?’ Ele disse que não. E aí, pensei ‘Por que devo matar o bebé quando isto não é culpa dele?’”
Chuck Haddon é um antigo eleitor democrata. “Mas afastaram os últimos membros pró-vida do partido, isso começou nos anos Obama”, explica. Por essa razão, em 2016, com a chegada de Donald Trump à vida política e perante a escolha face a Hillary Clinton, decidiu abster-se. Nas eleições seguintes, de 2020, votou em Trump, por considerar que “mereceu” o seu voto. “Os republicanos não são tão maus neste tema [do aborto]. Trump nomeou os juízes do Supremo [que reverteram o Roe v. Wade] e tem sublinhado que essa é uma decisão de cada estado.”
A estratégia de Trump agradou a Chuck, como a muitos outros eleitores religiosos, em particular a comunidade evangélica. Se em 2016 olhavam para Trump candidato com desconfiança, o papel que teve relativamente ao aborto no seu mandato foi decisivo para o fazer ganhar o apoio da larga maioria da comunidade. Precisamente por isso, nesta campanha, vários grupo de lobby do tema como o Pro-Life America e o Women Speak Out têm apostado forte em mensagens de campanha.
Mas muitos republicanos têm evitado abordar o tema da interrupção voluntária da gravidez. Como nota o New York Times, o próprio Donald Trump tem mantido uma posição ambígua nesta eleição: se por um lado se gaba de ter nomeado os juízes que reverteram a proteção nacional, por outro já assumiu que não aprovaria uma lei que proibisse o aborto a nível nacional e tem defendido os tratamentos de fertilização in vitro, contestados pelos grupos mais religiosos.
Eleitores de “um só tema”? Para Kelsey e Chuck, a questão do aborto sobrepõe-se a todas as outras nesta campanha
Perante isto, em Pittsburgh, Kelsey Leigh afirma que está preocupada à mesma com o que uma eleição de Trump pode representar nesta questão. “Trump diz o que precisa para se manter de pé em qualquer assunto. Tenho a certeza que o tema já teve impacto na vida dele, aposto que muitas das suas amantes fizeram abortos, e ele diz-se pró-vida. É assustador como um candidato pode ter valores flutuantes.” Outra parte do ticket preocupa-a ainda mais: o candidato a vice-presidente, JD Vance, católico assumido e fortemente anti-aborto. “Vance é muito claro, muito calculado e muito inteligente. E isso parece-me até mais perigoso [do que a posição de Trump], porque é insidioso.”
Perante isto, não tem quaisquer dúvidas em apoiar Kamala Harris no dia 5 de novembro. “Não é a minha candidata ideal, mas é a única que alguma vez falou sobre o tema do aborto em público. E isso é tremendo. O meu voto não tem de ser uma carta de amor a um candidato, deve ser um voto que nos leve naquilo que considero ser a direção certa”, afirma, por contraste, por exemplo, com o Presidente Joe Biden, que não usava sequer a palavra aborto’ — “Não ajuda, mantém um estigma”, decreta Kelsey.
Às pessoas que a acusam de ser uma eleitora que só vota com base “num único assunto”, a ativista responde dizendo que acha o tema muito mais abrangente: “Ter autonomia sobre o meu corpo não é ‘um único assunto’”.
Para Chuck Haddon, em Lancaster, o direito à vida é também uma bússola orientadora que se sobrepõe a qualquer outro tema. É precisamente por isso que se sente “num dilema” sobre o que fazer nestas eleições, porque considera que Donald Trump não tem sido suficientemente claro na sua posição sobre o aborto.
A que se acrescentam outras preocupações: “Não gostei do que aconteceu a 6 de janeiro e não gosto das coisas que ele diz sobre vir a prender pessoas, porque isso vai contra a primeira emenda. Por exemplo, aqui”, diz, apontando para o pequeno círculo que manifestantes e cartazes formam à beira do cruzamento principal de Lancaster, onde há uma clínica da Planned Parenthood a menos três quilómetros daqui. “Há pessoas que passam e nos mostram o dedo do meio. Eu não gosto, mas está tudo bem, não quero que eles sejam presos. O direito à liberdade de expressão existe neste país.”
Perante isto, Haddon está a pensar votar no profundamente cristão Partido da Constituição, apesar de este não ter tido autorização para concorrer na Pensilvânia. “Gosto de me manter fiel aos meus princípios, sou um cristão e acho que o único a quem prestamos contas é Deus”, justifica. Em vez da política nacional, quer focar-se mais no seu estado: “Adorava que houvesse uma proibição a nível federal, mas sei que isso não vai acontecer. Portanto, se conseguir ajudar a que pelo menos haja aqui na Pensilvânia, já seria uma vitória.”
Este homem, que trabalha como empregado da limpeza em escritórios por não querer perder acesso ao seguro de saúde — “Ainda há uns dias me caiu um dente, do nada. Não tenho outra hipótese se não continuar a trabalhar” —, não olha para a economia e o custo de vida como os temas que mais lhe importam nesta campanha, mas sim o aborto. Porque se define como cristão, acima de tudo, como comprovam as últimas palavras que trocou com o Observador: “Posso rezar por vocês?”, perguntou. “Senhor, faz com que eles tenham uma boa viagem pelo nosso país, que nada de mal lhes aconteça.”