As semelhanças entre britânicos e portugueses, incluindo uma certa “reserva” nas relações pessoais, surpreendeu a embaixadora do Reino Unido que está em Portugal há dois anos. Kirsty Hayes considera que no meio de tantos desafios, talvez os portugueses preferissem não ter o “clima de incerteza” causado pelo referendo à permanência do Reino Unido na União Europeia, mas que caberá apenas aos britânicos tomarem uma decisão. Falando sempre em português, a embaixadora alerta que o impacto económico desta saída pode ser “dramático” para o Reino Unido.
Kirsty Hayes veio ao Observador e considera que as questões económicas vão continuar a ser o maior cavalo de batalha entre as duas campanhas até ao dia 23 de junho, data em que realiza o referendo sobre a permanência ou a saída do Reino Unido da União Europeia, embora haja questões mais polémicas como a imigração. A embaixadora considera que o grau de imigração criou “uma pressão enorme” nos serviços públicos e esclareceu que o corte de benefícios acordados com a União Europeia será apenas para quem imigre para o Reino Unido para fazer trabalhos menos qualificados. As condições para os portugueses no Reino Unido podem mudar depois do referendo? Kirsty Hayes diz que não há certezas, mas tanto a saída como a permanência podem ter impacto. Leia e veja a entrevista (player no final do texto).
“Quando viramos as nossas costas à Europa, mais cedo ou mais tarde vamos arrepender-nos”, disse David Cameron sobre a possível saída do Reino Unido da UE. Do seu ponto de vista, a saída do Reino Unido ameaça a paz no país e na Europa?
Precisamos de considerar o que disse o primeiro-ministro e a sua intenção. Ele não está a dizer que no dia depois do referendo, caso o Reino Unido saia, a guerra irá eclodir na Europa. Mas é preciso lembrar que um dos aspetos mais importantes na União Europeia foi a criação de uma Europa estável depois de duas guerras horríveis no continente. É muito fácil considerar que estes fatores são apenas históricos, mas não são. Podemos olhar agora para algumas regiões próximas da Europa e ver que os conflitos continuam a acontecer. Precisamos de mudar a direção do Reino Unido dentro da União Europeia. Mas há também outros argumentos que importa ter em mente como a prosperidade do Reino Unido dentro da Europa.
Qual é a sensibilidade do próprio corpo diplomático nesta questão?
É muito importante lembrarmos que o corpo diplomático é composto de funcionários públicos. Não é o nosso papel, incluindo embaixadores, ter opiniões pessoais. O nosso trabalho é apoiar o Governo atual e explicar a sua posição. Naturalmente falamos todos os dias, no meu caso, com portugueses e temos perceção do ponto de vista do povo português, mas os principais atores são os ministros e as duas campanhas: Stronger In, para ficar e Vote Leave, para sair.
Tem ouvido a a opinião de muitos portugueses, de que forma é que este referendo está a afetar as relações entre os dois países?
Nós temos a aliança mais antiga no Mundo e temos tido sempre um relacionamento próximo. O relacionamento tem-se intensificado nos últimos tempos, com várias visitas de ministros e até o primeiro-ministro veio a Portugal. Uma das razões principais para estas visitas foi para falar do futuro da Europa. Até fevereiro deste ano, o Reino Unido estava a fazer esforços para reformar a UE, não só para o Reino Unido, mas para benefício de todos os Estados-membros. Uma das áreas em que mais cooperámos com Portugal foi na competitividade, onde ambos partilhamos a ideia de que a União Europeia precisa de mais crescimento, precisa de mais emprego para os jovens e de concluir o mercado único, especialmente nas áreas dos serviços e na energia. Nos meses mais recentes tem havido uma intensificação da relação entre os dois países, mas obviamente que muitos dos meus amigos estão preocupados com a possibilidade da saída do Reino Unido. Temos uma forte relação comercial, temos tantas ligações pessoais também…
Duas comunidades muito fortes dos dois lados…
Temos cerca de 40 mil britânicos a viver cá. E temos ainda mais portugueses a viver no Reino Unido. Isto cria uma dinâmica especial. Os meus amigos também me disseram que para um país como Portugal, o Reino Unido é importante dentro da UE para haver um equilíbrio de poder entre os Estados-membros. Partilhamos ainda uma abordagem atlanticista, mais aberta ao comércio. Apoiamos o TTIP e a possibilidade de concluir um acordo com o MercoSul. Estamos muito alinhados na UE. E por isso há clima de preocupação aqui. Temos todos desafios enormes como a crise dos refugiados e acho que preferiam não ter esta incerteza sobre o Reino Unido.
O governo britânico lançou um estudo em que mostra que qualquer cenário de possível saída seria prejudicial para a economia britânica. Ao mesmo tempo, Barack Obama esteve recentemente no país e disse que fora da UE, relação entre EUA e Reino Unido seria complexa. A saída da UE seria dramática para o Reino Unido?
O problema é que ninguém tem a certeza. Como o meu primeiro-ministro disse: “É um salto no escuro”. Mas o Governo está a fazer todos os esforços para explicar ao povo britânico as realidades da permanência na UE. É muito fácil dizer que o Reino Unido pode sair, mas como é que o Reino Unido se vai relacionar com a UE? É isso que esse estudo quis mostrar. Há três possibilidades. Um relacionamento semelhante à Noruega e alguns apoiantes da saída pensam que esta pode ser uma das formas. O que muitos britânicos não sabem é que a Noruega segue a maioria das regras da UE, incluindo a livre circulação que é uma das questões mais polémicas para os britânicos. Cada pessoa na Noruega contribui com uma quantia semelhante à de cada cidadão britânico para a UE. E há ainda várias exclusões no acesso ao mercado único. Outra possibilidade é um acordo entre o Reino Unido e a UE, como o Canadá, mas o problema é que estes acordos demoram muito tempo para negociar e o resultado não é certo. Podemos ainda sair do mercado único e ter um relacionamento com os preços da Organização Mundial do Comércio (este é o cenário mais negativo). Temos também de entender que exportamos cerca de 44% dos nossos produtos para outros Estados-membros, mas quando consideramos os tratados comerciais entre a União Europeia e outros países, isto representa cerca de 80% das exportações do Reino Unido. O impacto pode ser dramático.
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Sem o argumento económico e das alianças privilegiadas, pensa que a campanha pela saída se vai focar muito na imigração? Uma questão mais polémica.
Recentemente as questões económicas têm sido mais relevantes e a imprensa tem muitas histórias de ambos os lados sobre este assunto. É verdade que durante a renegociação que fizemos com os outros Estados da UE, a imigração e a livre circulação foram duas questões importantes porque o grau de imigração para o Reino Unido, tanto de Estados-membros da UE como fora, tem sido enorme. E isto criou uma pressão enorme nos nossos serviços públicos. Obviamente que beneficiamos da presença dos imigrantes. Temos uma cultura muito multicultural. Temos portugueses no Reino Unido que estão a dar uma contribuição enorme para o nosso sistema de saúde, cultura e até futebol. Mas há impactos negativos deste grau de imigração e, por isso, esta área tem sido muito importante. Mas a minha perspetiva é que os argumentos económicos são ainda relevantes.
Pensa que essa comunidade portuguesa, que por um lado vai à procura de novas oportunidades mas também contribui para o desenvolvimento económico do Reino Unido, pode estar em risco por causa do referendo?
Não, não haverá impacto imediato. Se os britânicos votassem para sair, não seria uma mudança imediata. Ou seja, seria a primeira vez que um país escolheria sair da União Europeia e é difícil antever a realidade, mas os Tratados Europeus têm o artigo 50º que explica o processo que demoraria pelo menos dois anos. Nesse tempo, todas as regras e todas as responsabilidades dos Estados-membros continuam de forma igual. No longo prazo, pode haver alguma diferença. Mas é muito difícil saber o que pode acontecer, porque se vai tratar de uma negociação. Caso o Reino Unido vote para permanecer, a renegociação de fevereiro resultaria nalgumas mudanças no sistema de benefícios, que pode ter impactos nalgumas comunidades europeias.
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Está a falar no travão dos benefícios para os imigrantes europeus. Em quanto tempo é que o Reino Unido gostaria de ver esse acordo implementado?
Ficou claro durante a negociação que a Comissão e os Estados-membros sentiram que as condições já existem no Reino Unido para implementar esta medida, devido ao grau de imigração. Mas não afetaria os portugueses que já estão estabelecidos no Reino Unido. Gostaria de explicar um pouco mais sobre isto porque há muitos aspetos neste travão. Esta medida vai incidir nos in-work benefits, ou seja, apenas para as pessoas que estão a fazer trabalhos pouco qualificados. A ideia para criar este mecanismo no passado foi que tínhamos famílias britânicas que não trabalhavam há três ou mais gerações e crianças sem esperanças de futuro. Essas famílias viviam dos benefícios sociais porque era mais fácil viver deles do que trabalhar, especialmente em postos de trabalho que não são muito atraentes, como limpezas. O sistema tem funcionado bem em encorajar os britânicos a trabalhar e temos uma taxa de desemprego de 5,1%, o que é baixo. O problema é que, quando temos imigrantes de países onde os salários são muito mais baixos do que no Reino Unido, só o salário destes postos de trabalho não é suficiente, mas com benefícios adicionais, é muito atraente. O que acontece é que temos imigrantes com muitas qualificações, que poderiam ter um trabalho qualificado nos seus países de origem, mas preferem ir para o Reino Unido e ter um posto de trabalho não qualificado. E essa não é a ideia de livre circulação, é um incentivo perverso. O travão não é para desencorajar…
Não estamos então a falar de engenheiros ou enfermeiras que vão para o Reino Unido exercer as suas profissões?
É isso.
Uma das partes do trabalho da Embaixada é receber questões dos britânicos que vivem em Portugal. Tem recebido muitas questões relacionadas com o referendo? Como é que a comunidade está a encarar este referendo?
Temos muitos britânicos e alguns deles estão bastante preocupados com este assunto já que os seus direitos para permanecer aqui são resultado da União Europeia. Querem também saber muito como podem votar. Nós temos muitos britânicos fora do Reino Unido, e, em geral, eles não votam nas eleições britânicas. Nas últimas eleições, em maio de 2015, a comissão eleitoral fez muitos esforços para encorajar os britânicos a votar e conseguiu atrair cerca de 100 mil britânicos em todo o mundo — foi o maior número nos últimos anos. Mas temos entre 4 a 5 milhões de pessoas que podem votar. Agora, a comissão está novamente a encorajar para que se vote no referendo. Na Embaixada estamos a apoiar esta campanha usando as redes sociais e dando entrevistas sobre o tema. Uma área polémica para os nossos residentes é que quem vive há mais de 15 anos fora do Reino Unido não pode votar. E este Governo reconhece que isso não é justo. O Governo vai introduzir legislação para mudar isto e criar o voto para a vida.
Ainda a tempo deste referendo?
Não. E esse é o problema. Especialmente para os britânicos que vivem fora do Reino Unido e dentro da União Europeia e não têm direito a votar, é frustrante. Mas não há tempo para fazer alteração antes do referendo.
Uma das questões associadas a este referendo, é a Escócia e a vontade da Escócia querer permanecer na União Europeia. Pensa que um resultado que aponte para a saída, pode levar a novo referendo na Escócia?
Tivemos recentemente um referendo histórico sobre a posição da Escócia dentro do Reino Unido. O resultado foi claro e e foi para permanecer. Eu sou escocesa e tenho interesse pessoal neste assunto. Imediatamente depois deste referendo, todos os participantes principais, incluindo a liderança do Partido Nacional Escocês, deixaram claro que esta questão tinha sido resolvida por uma geração para muitos anos. Estes referendos sobre questões de identidade são importantes, mas não devemos fazê-los regularmente porque criaria um ambiente de incerteza. Mas é óbvio que a população escocesa é mais favorável a permanecer na UE e aí, há uma dinâmica. Mas só isso.
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Algumas pessoas com cargos importantes dentro e fora da União Europeia, como Jean-Claude Juncker ou Barack Obama, tomaram posição neste referendo. Isso ajuda ou prejudica o debate dentro do Reino Unido?
Na minha opinião é claro que esta é uma questão para o povo britânico. É uma decisão inteiramente para nós. Mas quando na nossa vida normal consideramos questões importantes, naturalmente queremos saber o ponto de vista dos nossos amigos mais chegados. E, por isso, é importante que líderes como Barack Obama, que é muito respeitado e popular no Reino Unido, falem com franqueza sobre as suas opiniões. Depois, o povo britânico pode considerar e tomar as suas decisões. É interessante que tenho ouvido muitos líderes que apelam à permanência do Reino Unido, mas não ouvi quase ninguém, talvez só Trump, dizer que o Reino Unido devia sair.
Disse num jantar de homenagem a Winston Churchill que o Reino Unido olha para a Europa como um meio para a atingir um fim. Mas também como uma âncora de liberdade, democracia e todos os valores partilhados. Considera que com todos os problemas da União Europeia, ela ainda representa isso?
Penso que sim. Em geral, os britânicos têm um ponto de vista diferente de outros países sobre a União Europeia. É um ponto de vista mais prático que emocional. Mas reconhecemos que a União Europeia foi o resultado de um conflito horrível e tem tido um papel fundamental para fortalecer as relações positivas entre os países e continua a ter esse papel. Foi o mecanismo mais importante para criar crescimento. É verdade que enfrentamos desafios enormes. Não só os refugiados, mas também a ameaça do terrorismo que está muito presente na nossa cabeça. Durante toda a sua história, a UE tem mudado e evoluído para enfrentar novos desafios e, sem dúvida, no futuro haverá novos desafios.
Está há dois anos em Portugal como embaixadora. O que é a mais surpreendeu em Portugal?
Quase todos os dias observo semelhanças entre os britânicos e os portugueses, que não conhecia anteriormente.
Que tipo de semelhanças?
O respeito é muito importante para os britânicos e para os portugueses. O povo português é muito aberto, mas tem algumas reservas e isso é uma característica muito britânica na minha cabeça. A ligação entre os dois povos não foi surpresa, mas parece que todos os dias encontro novos pontos de contacto. É muito bom para mim ver que o relacionamento não é só questão histórica, mas que é muito relevante e atual. Há muitas relações entre empresas portuguesas e britânicas, especialmente no campo das start ups. Penso que Lisboa e Londres são dois polos do futuro.
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Fala português. O que é que tem sido para si mais difícil nessa aprendizagem?
No início foi muito difícil. Eu falava um pouco de espanhol e desde o início das aulas conseguia ler um jornal mais ou menos, embora não entendesse todas as palavas. Mas quando tentava ouvir rádio, não entendia nada! Nem o tema de que se estava a falar. Passaram algumas semanas e entrei em pânico porque pensei que não ia acontecer. Mas tornou-se muito mais fácil. Adoro a língua, acho que é muito elegante — não como eu própria falo [risos]. A literatura é muito refinada. O problema é que atualmente não consigo falar espanhol, continuo a entender, mas quando tento falar…
Fala portunhol?
Sim!
E tem algum incidente ou história que a tenha marcado devido a estas diferenças culturais?
Um incidente que aconteceu há um ano foi que tive um acidente. Ao fim de semana faço competições de equitação e estava perto da fronteira no Alentejo, caí do cavalo e parti o braço. O hospital mais próximo era em Portalegre e tudo, desde o atendimento aos tratamentos, foi fantástico. Os meus pais são médicos, por isso, quando caí tive quase a certeza que o braço estava partido. E disse isso aos médicos. Quando cheguei ao hospital fizeram-me raios X em todo o corpo e depois disto a médica visitou-me e disse: “As notícias são boas, nada está partido”. Fiquei grata e envergonhada porque tinha dito tantas vezes aos médicos que tinha o braço partido e então perguntei: “E o meu braço?”. Ela disse: “O braço está completamente partido, mas de resto está tudo bem”. Foi uma experiência e fiquei muito contente com a atenção de todos os médicos e de todos que me ajudaram.
Veja aqui a entrevista na íntegra:
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