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Laborinho Lúcio esteve na Comissão de investigação aos abusos na Igreja
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Laborinho Lúcio esteve na Comissão de investigação aos abusos na Igreja

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Laborinho Lúcio esteve na Comissão de investigação aos abusos na Igreja

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Laborinho Lúcio e a polémica dos nomes de abusadores na lista. "Isto foi um facto que foi criado. Deixámos de discutir o relatório"

Em entrevista ao Observador, o juiz Laborinho Lúcio esclarece que nomes de padres estavam nas listas de abusadores entregues aos bispos e mostra-se desapontado com alguns líderes da Igreja portuguesa.

A lista dos alegados abusadores que a comissão independente entregou à Igreja Católica foi inicialmente pensada para incluir apenas os nomes dos padres ainda no ativo. Mas o grupo de trabalho decidiu, depois, incluir também os nomes dos que já tinham morrido, uma vez que as vítimas desses casos ainda podem ser indemnizadas. É o que revela numa longa entrevista ao Observador o juiz jubilado Laborinho Lúcio, antigo ministro da Justiça e escritor, que foi um dos seis elementos da comissão que, ao longo do último ano, estudou o fenómeno dos abusos sexuais de crianças na Igreja Católica portuguesa.

Na entrevista, uma semana depois de as várias dioceses portuguesas terem começado a revelar dados sobre as listas que receberam das mãos da comissão independente, Laborinho Lúcio explica que o facto de alguns desses “alegados abusadores já terem desaparecido, evidentemente, conduz à impossibilidade de os perseguir criminalmente ou disciplinarmente”. Mas “não retira a possibilidade de procurar atingir a responsabilidade que a Igreja tenha em matéria de indemnização às vítimas”.

O esclarecimento surge após alguma confusão no debate público sobre qual era, efetivamente, o conteúdo da lista entregue pela comissão aos bispos católicos portugueses. A controvérsia surgiu no próprio dia da apresentação do relatório da comissão independente, quando o grupo prometeu para o final do mês a entrega à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e ao Ministério Público uma lista com os nomes dos alegados abusadores que ainda se encontravam no ativo. À SIC Notícias, o coordenador da comissão, o psiquiatra Pedro Strecht, revelou que a lista dos abusadores ainda no ativo teria mais de uma centena de nomes. Mais tarde, contudo, a socióloga Ana Nunes de Almeida, também da comissão independente, disse ao Observador que a lista incluiria também os nomes dos padres que já tinham morrido. Com a revelação, por parte das várias dioceses, do conteúdo das listas que receberam, ficou esta semana a saber-se que mais de um terço dos padres nomeados já tinham de facto morrido — e que um grande número já não estavam em funções.

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Nesta entrevista, Laborinho Lúcio esclarece esta questão, mas mantém que não há nenhum bispo português que possa dizer que não tinha dados suficientes para, com base na lista que recebeu, agir preventivamente com o afastamento dos suspeitos. Segundo o juiz conselheiro, todos os bispos tinham referências sobre a identidade dos suspeitos, mas também sobre os abusos cometidos e sobre o lugar e a data dos factos. “Neste momento, em todos os lugares podia haver a adoção de medidas preventivas”, insiste Laborinho Lúcio.

Ao contrário de alguns bispos, como o de Angra ou o de Évora, os bispos de Lisboa e Porto — duas das maiores dioceses do país — optaram por manter os padres suspeitos no ativo, afirmando que precisavam de mais informações sobre os casos em questão.

Laborinho Lúcio mostra-se também desapontado com alguns bispos portugueses, incluindo o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, que diz ter sido excessivamente legalista na abordagem à questão das indemnizações às vítimas. E diz ainda acreditar que o presidente da CEP, D. José Ornelas, está a tentar conciliar duas posições inconciliáveis dentro do grupo dos bispos: uns que advogam uma Igreja “aberta ao sentimento das vítimas” e outros que representam uma Igreja “completamente fechada sobre si própria”.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Antes de abordarmos concretamente o trabalho da comissão independente e a reação da Igreja Católica na última semana ao trabalho da comissão, era importante aproveitar esta entrevista para esclarecer uma questão que tem motivado algum debate dentro e fora da Igreja nos últimos dias: a lista dos alegados abusadores que a comissão entregou à Igreja. Tendo em conta os dados que vêm das dioceses, dos 83 nomes das dioceses que já falaram, 31 eram de pessoas que tinham morrido, 10 tinham os processos concluídos, nove desconhecidos e 11 já não tinham qualquer cargo eclesiástico. Mais de metade das pessoas já não estavam sob a alçada da Igreja. Esta lista não era para ter só os nomes de pessoas que estão no ativo?
Inicialmente, foi essa a nossa perspetiva. É interessante verificar e começar por dizer isto: esta lista de alegados abusadores foi sempre referida, nomeadamente nas conferências de imprensa que fomos fazendo ao longo do ano, como sendo uma lista que nós enviaríamos, nomeadamente à CEP, que foi onde ela acabou depois por criar algumas dificuldades. Inicialmente, a nossa ideia era essa. Mas, no dia em que a entregámos, no dia 3 de março, à Conferência Episcopal, tivemos o cuidado de dizer que não era uma lista de alegados abusadores no ativo, mas era uma lista de alegados abusadores. E que, portanto, iria integrar também aqueles que já teriam falecido. E a razão é muito simples, e foi justamente essa razão que nos levou a alargar a lista para lá daqueles que estavam efetivamente no ativo. É que o facto de esses alegados abusadores já terem desaparecido conduz, evidentemente, à impossibilidade de os perseguir criminalmente ou disciplinarmente, mas não retira a possibilidade de procurar atingir a responsabilidade que a Igreja tenha em matéria de indemnização às vítimas, por exemplo.

Foi essa a razão…
Portanto, nós não podíamos tirar da lista aqueles que já tivessem desaparecido por morte, porque isso anularia a possibilidade de fazer as averiguações necessárias para definir os atos que eventualmente tivessem praticado e, a partir disso, poder indemnizar as vítimas — indemnizar ou dar-lhes apoio específico por aquilo que resultasse como efeito das práticas de abusos sexuais de que tinham sido vítimas. O caso específico de alguns que, entretanto, não são identificados ou de outros que até já tivessem tido processos, desses não tínhamos necessariamente essa informação para nós. E, como não tínhamos, não podíamos estar a adivinhar quem é que estava nessa posição. O que acontece é que mesmo os que não são identificados, isso não significa que, cada diocese, ao verificar que há um elemento que não é identificado, abandone completamente a possibilidade de vir a identificá-lo. Pode estar noutra diocese, pode ter desaparecido do contacto com a Igreja, mas, mesmo assim, manter sempre a sua vinculação ao caso que determinou o testemunho — e que pode, uma vez mais, repercutir-se em matéria de indemnização às vítimas. Portanto, a lista que foi entregue foi uma lista com todos os alegados abusadores de que a Comissão Independente dispunha.

Portanto, retiro daquilo que diz que não houve qualquer nome que fosse retirado daquela lista em relação àqueles nomes a que tinham tido acesso.
Os únicos nomes que não constaram desta lista são aqueles que foram revelados com garantia de absoluto sigilo no trabalho junto dos arquivos. Há elementos que estão confrontados pela equipa que trabalhou os arquivos com aqueles que vinham diretamente da base de dados da comissão. Os que resultaram diretamente dos arquivos não constam desta lista, mas são conhecidos dos respetivos bispos da diocese em concreto onde esse trabalho foi feito.

Só para clarificar uma questão: esta lista então é maior do que aquela que inicialmente se previa, quando se previa que só se iria colocar o nome dos padres suspeitos de abusos no ativo.
Sim, é maior do que se previa, embora nós não tivéssemos a previsão exata quantificada. Mas é maior, uma vez que nós tínhamos previsto enviar apenas aqueles que estavam no ativo e, depois, enviámos independentemente de estarem no ativo ou não. É esta diferença que a torna maior, embora não possamos calcular qual é verdadeiramente a diferença em número. Mas também isso não é particularmente significativo, julgo eu.

Quantos nomes estavam na lista no total?
Justamente para evitar este ruído todo que se criou, nós deliberámos que não falaríamos sobre isso. A lista foi entregue, foi entregue nas dioceses, foi entregue à Conferência Episcopal em envelopes fechados dirigidos a cada diocese. A lista pertence agora à Igreja, a Igreja falará dela como entender e nas circunstâncias em que entender.

Entretanto, ainda só tivemos notícias sobre as dioceses. Também entregaram listas às congregações religiosas?
Vai-se entregar agora, dentro de dias. As próprias congregações, nomeadamente a sua presidente, a irmã Maria da Graça, pediu para que ela fosse entregue mais tarde. E é isso que vai ser feito, nomeadamente pelo Grupo de Investigação Histórica, que foi aquele que trabalhou os arquivos e que, mais uma vez, consolidou a relação entre a lista que vinha proveniente da base de dados e a lista resultante da pesquisa nos arquivos.

Vai ser entregue à Conferência dos Institutos Religiosos (CIRP) e não a cada superior?
Isso agora não lhe sei dizer em pormenor. Sei que vai ser entregue, provavelmente, à presidente da CIRP.

"Os factos que constavam eram, pelo menos, a identificação da pessoa, os abusos sexuais que tinha praticado, o lugar onde eles tinham acontecido e o ano em que eles tinham ocorrido. Pelo menos estes factos estavam transmitidos e foram conhecidos de todos os senhores bispos ou dos representantes que eles próprios indicaram."

Com esta lista que foi entregue a cada um dos bispos, era possível ou não para os bispos fazer uma correspondência entre o nome e as histórias que estavam no relatório? Essa foi uma queixa que foi apresentada pelos bispos.
Essa é outra dúvida que entretanto se lançou e que é necessário deixar esclarecida. Esta lista foi, ela própria, consolidada a partir do trabalho do Grupo de Investigação Histórica. Ela foi consolidada a partir do trabalho feito nos arquivos. E porquê? Porque a base de dados tinha, claramente, as indicações que permitiam identificar alegados abusadores. Essas indicações foram transmitidas ao Grupo de Investigação Histórica para que este grupo as trabalhasse em cada diocese e em cada um dos arquivos, quer com o bispo respetivo, quer com a pessoa indicada pelo bispo como sua representante — aconteceu em alguns casos a indicação de cónegos e vigários que trabalharam diretamente com o Grupo de Investigação Histórica. Quando a cada diocese chega a lista de nomes relativa a essa diocese, todos os bispos sabiam quais eram os factos a que cada um daqueles nomes se relacionava. Esse trabalho tinha sido feito, em várias circunstâncias demorou horas — estou a pensar, por exemplo, na diocese do Porto, o trabalho foi diretamente através do coordenador do Grupo de Investigação Histórica com o bispo do Porto. Os factos que constavam eram, pelo menos, a identificação da pessoa, os abusos sexuais que tinha praticado, o lugar onde eles tinham acontecido e o ano em que eles tinham ocorrido. Pelo menos estes factos estavam transmitidos e foram conhecidos de todos os senhores bispos ou dos representantes que eles próprios indicaram.

Mas isso incluía histórias que tinham sido reveladas pelos testemunhos à comissão?
Histórias que tinham sido reveladas pelos testemunhos, outras que eram confirmadas pela própria investigação nos arquivos e muitas delas que eram encontradas e cruzadas entre o que estava nos testemunhos e o que estava nos arquivos. Se me perguntar: os factos eram suficientes para condenar estas pessoas? Não, nunca, como nunca os factos são suficientes para condenar ninguém enquanto eles não são sujeitos a contraditório, enquanto não são trabalhados, evidentemente, com respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos. Se os factos eram bastantes para poder exercer uma ação preventiva? Claro que sim. Eles eram suficientes pela credibilidade do testemunho. A credibilidade do testemunho não vem do facto de a comissão independente ter pegado em alguém que faz uma denúncia e ter passado a denúncia para a Conferência Episcopal. A comissão trabalhou a qualidade da denúncia.

Houve vários excluídos.
Houve variadíssimos excluídos. Aliás, é muito interessante verificar isso, porque se nós contabilizarmos o número dos testemunhos prestados na sua totalidade.

564.
564. E se verificarmos que apenas 512 foram trabalhados, significa que foram excluídos…

Meia centena.
Meia centena. O que nos permite extrair uma conclusão que é importante. Evidentemente que ela não é de valor absoluto, mas é importante. A tendência que quem trabalha estas matérias tem vindo a publicar é a de que em inquéritos deste tipo há normalmente uma percentagem de falibilidade que se situa entre os 3% e os 5%. Aliás, aqueles que mais têm intervindo ultimamente até falam em 3%, mas nós vamos aos 5%. Neste caso, a nossa margem de segurança é de 10%. Isto não significa que todos os testemunhos são verdadeiros, como é evidente, mas significa que há uma enorme, uma imensa probabilidade de verdade em todos eles. Isto, ligado à indicação daqueles factos que referi — e depois há a disponibilidade que a comissão tem de poder indicar mais um ou outro facto, desde que não ponha em causa o segredo quanto à identidade da vítima, porque isso é um compromisso nosso desde o início. Portanto, neste momento, em todos os lugares podia haver a adoção de medidas preventivas.

Tem essa convicção?
Aliás, há um aspeto aqui que não gostaria de deixar de referir: se tivesse havido uma aproximação a este ponto de vista sugerido pela comissão, julgo que bem podia ter acontecido que os senhores bispos, junto dos alegados abusadores, os tivessem levado a aceitar com naturalidade que eles próprios pedissem o seu afastamento enquanto o processo estivesse a decorrer. Não porque isso signifique qualquer antecipação do juízo de culpa, não porque se esteja a dizer que aqui está comprovado que foram eles que praticaram estes atos, mas apenas porque eles próprios diriam: o que está em causa é gravíssimo em função daquilo que é o prestígio da própria Igreja, eu sou um membro da Igreja, se é uma denúncia relativamente a mim estejam à vontade para me afastar de funções enquanto estiver sujeito a esta suspeita. E vamos avançar rapidamente com os respetivos processos. Nem isto se fez, nem os próprios senhores bispos tomaram a iniciativa, na maioria dos casos, de avançar nesse sentido, o que está a criar, evidentemente um imenso ruído à volta disto e a permitir — e isso é o menos agradável — que se comecem a firmar posições antagónicas, que se opõem umas às outras e que não vão levar, claramente, a nenhuma solução.

Voltando à lista em concreto, o facto é que houve vários bispos a dizer que aquilo que receberam foi apenas e só uma lista. Em primeiro lugar, queria entender de forma mais clara se compreende em algumas destas situações a posição tomada? E depois perceber, para que não restem dúvidas, se de facto em todos os casos era possível fazer uma correspondência entre aqueles nomes que estavam naquela lista e os factos que eram descritos no relatório? Ou seja, podemos falar daquela lista como uma espécie de apenso ao relatório? E, se sim, como é que era possível fazer a conexão entre cada um dos nomes e os factos descritos no relatório?
A ideia do apenso ao relatório é muito interessante, nós próprios usámos essa expressão. Nós, no limite, poderíamos não ter criado esta lista, que é uma lista de informação dirigida à Igreja. Nós, no limite, poderíamos ter deixado o relatório tal como ele está e a Igreja, por sua iniciativa, teria de fazer toda a investigação de base no sentido de saber, então, no final de contas, onde estão esses alegados abusadores de que a comissão independente fala. Nós organizámos a lista com os nomes justamente porque isso estava acertado com a própria Conferência Episcopal Portuguesa, que o que iríamos entregar eram alegados abusadores e entregaríamos no trabalho feito diretamente nas dioceses pelo Grupo de Investigação Histórica, a conexão factual entre aqueles nomes e esta lista. Evidentemente, quando na conferência de imprensa da CEP é dito “foi-nos entregue uma lista com nomes”, isto é verdade. Mas, enfim…

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O que é que falta nessa verdade?
Mal comparado, o que falta é isto. Admitamos que convido um conjunto de pessoas para um casamento. E depois prometo: na véspera envio-vos a lista com o nome dos convidados. As pessoas não vão dizer “tenho aqui uma lista com nomes convidados, não sei para que é que isto serve”. Evidentemente, toda a gente sabe que aqueles convidados são para o casamento e as pessoas têm mais ou menos a ideia do que acontece num casamento. Ora, os senhores bispos tinham toda a informação sobre o casamento, o que lhes faltava era ter o conjunto exato dos nomes dos convidados. Foi aquilo que nós fizemos. O que pode acontecer, mas não quero estar a fazer conjeturas acerca de matérias que não conheço: admito que não se tivesse levado, talvez, a peito o trabalho feito junto dos arquivos nas dioceses e que, eventualmente, não tivesse havido transmissão dos elementos internos. Mas tenho muitas dúvidas de que isso tivesse acontecido, porque foi o trabalho aturado do Grupo de Investigação Histórica que fez essa conexão toda. E tanto é assim que o senhor D. José Ornelas, apesar de tudo, na entrevista que dá ao Expresso, de alguma forma vem dizer que foi pouco feliz aquela afirmação, porque não era exatamente aquilo que se pretendia dizer. Porque, mantida a afirmação como está, ela não é verdadeira.

Continuando nas reações dos vários bispos, podemos encontrar diferentes padrões. Houve bispos, como é o caso dos de Angra e de Évora, que afastaram liminarmente os suspeitos enquanto averiguam os casos, e depois tivemos outros, como os de Porto e Lisboa, que só afastam com mais informação. Compreende esta dualidade de critérios? Já nos disse que dificilmente se compreende em algumas situações. O pedido de mais informações, em alguns casos, pode fazer sentido a essa lista? Porque, de facto, a comissão enviou mais informação em determinados casos. Foi porque entendeu que fazia sentido nesses casos dar mais informações para contextualizar essa lista?
Se os senhores bispos, para efeitos de terem uma intervenção imediata em termos de ações preventivas, precisam de mais dados, a comissão dará todos os dados disponíveis, que não ponham em causa, repito, o segredo da identidade das vítimas. Nós não estamos aqui numa posição adversarial relativamente à Igreja. Pelo contrário: nós temos todo o gosto em colaborar para que se possa chegar o mais longe possível no tipo de investigações que se possam desenvolver acerca desta matéria. O que é importante é isto, e é isto que eu julgo que nós temos de destrinçar: uma coisa é deixar claro que a lista que foi entregue aos senhores bispos era uma lista acordada, que foi esclarecida quando foi entregue. Relativamente a essa lista, há um conjunto de factos com ela cruzados que permitem que, a partir dela, e a partir da credibilidade dos testemunhos, se possam adotar ações de natureza preventiva. Chegados aqui, nós chegamos à conclusão de que há alguns senhores bispos que já entenderam que assim deve ser e já estão a atuar nesse sentido; outros que estão ainda numa situação de dúvida; e outros que estão numa posição com alguma renitência enquanto não tiverem mais elementos de informação.

Houve até bispos que disseram que tinham nomes que nem conheciam. Aceita que haja bispos a dizer que não têm informações sobre os nomes que lá puseram, tendo em conta tudo o que já nos disse?
Tenho de acreditar que é verdadeiro o que dizem. Para já, nós estamos a falar num período de 70 anos. Podemos ter nomes que estariam na diocese na altura em que o bispo atual não está, que entretanto terão passado para outra. Admito que sim, dentro daqueles tais poucos que são desconhecidos. Que são poucos, mas pode naturalmente acontecer, visto que nós próprios também não os conhecemos, estamos a fazer a transmissão da informação que recebemos para aqueles que agora foram os destinatários da lista que enviámos. Agora, há aqui dois aspetos: um é o que tem a ver com o tipo de lista que foi apresentado. Isso presumo que está esclarecido e que não vale a pena voltar a repetir. Outro é o de saber o que pode fazer-se a partir dessa informação. Aí é que depois houve um conjunto de declarações sucessivas que, na nossa perspetiva das coisas, foram pouco felizes.

Já vamos falar sobre o que alguns bispos disseram relativamente à lista, mas para fechar este tópico uma pergunta de sim ou não: as dioceses de Lisboa e Porto já vieram dizer publicamente que pediram mais informações à comissão. Tem dito que a comissão está disponível para as enviar. Nestes casos, a comissão já enviou?
Não sei dizer se, concretamente, já enviou, visto que nós não fazemos qualquer recusa ao envio desses factos. Aliás, como calculará, o único limite que nós temos a isso é realmente o limite do compromisso na defesa do sigilo da identidade das vítimas. E mais nada. Tudo o resto, nós informamos. Agora, as informações essenciais, os factos essenciais, constavam na primeira missão de trabalho, que foi desenvolvida junto do Grupo de Investigação Histórica. Aliás, é curioso que onde mais esse trabalho foi desenvolvido foi em Lisboa e no Porto, pela natureza das coisas. Houve muito mais tempo, sabemos quem foi o cónego que foi indicado em Lisboa, com quem se falou, com quem um dos elementos do Grupo de Investigação Histórico teve um trabalho aturadíssimo para analisar caso a caso as respetivas situações. E, portanto, as coisas constavam. Se me perguntar: então como é que se compreende este tipo de reação? Eu, que não faço juízos de censura antecipados, como é evidente, prefiro dizer que talvez se tenha antecipado no espírito dos senhores bispos a ideia da condenação dos alegados abusadores. Mas não é isso que está em causa. O que está em causa é a prevenção nesta fase. O problema, depois, das conclusões finais a que se chega… haverá o seu tempo.

Quer dizer que há um tempo para tudo…
O que não podemos é confundir os tempos, porque essa confusão vai determinar a antecipação para esta fase das dificuldades em conseguir a condenação futura e isso não me parece que seja adequado. Há um aspeto muito importante, é fundamental que isso seja dito: nós próprios estamos aqui, já há tempo significativo, e raramente falámos nas vítimas. Mas as vítimas estão por detrás de nós e estão por detrás de tudo isto a assistir ao que está a acontecer. E é extraordinário como da parte da Conferência Episcopal Portuguesa não houve uma referência, não há uma manifestação de preocupação.

Na semana passada, o Parlamento português aprovou dois projetos de lei que tem em vista o aumento de prazo de prescrição destes crimes para os 30 anos da vítima, tal como a comissão tinha sugerido. Este é um sinal de que o trabalho da comissão já está a ter um impacto no país?
Nós esperamos que tenha. Como deve calcular, nós somos aqui aqueles que menos olha para si próprios. Nós fizemos o nosso trabalho, foi um trabalho que gostaríamos de ver refletido no exterior como trabalho importante pelos seus efeitos, por aquilo que ele pode produzir. Nesse sentido ficamos contentes quando vemos que começa a haver — e em vários aspetos isso tem-se verificado — atenção àquilo que foram as nossas sugestões e recomendações. Esse caso concreto é bem interessante, com uma especificidade — eu não quero entrar muito em aspetos técnicos para não tornar maçador. É que há ainda uma questão que pode suscitar-se e que nós teremos ocasião de falar nisso quando formos à Assembleia da República, que é a de saber se o que nós devemos ampliar é a idade da vítima e, portanto ampliar o tempo para ela exercer o direito de queixa, ou se devemos ampliar o prazo de prescrição. Nós temos defendido, eu tenho defendido — não direi que seja o maior defensor, mas sou aquele quem tem fundamento, portanto, trabalhado mais essa área — que é importante não mexer nos prazos de prescrição. Porque isso pode gerar um desequilíbrio enorme no ordenamento lógico do próprio sistema penal. Portanto, defendo manter os prazos de prescrição tal como eles estão, mas neste caso concreto alterar o tempo que a vítima tem para apresentar a sua queixa.

O prazo começar a contar mais tarde…
Sim, a duração do prazo é a mesma, começa é a contar mais tarde. E, nessa medida, fixámos os 30 anos. Com isto, obtemos dois objetivos: em primeiro lugar, não desestabilizar o equilíbrio dos prazos de prescrição para todos os crimes previstos na lei; e em segundo lugar, mais uma vez, centrar este aumento na vítima e não necessariamente numa filosofia de política criminal.

"Então como é que se compreende este tipo de reação? Eu, que não faço juízos de censura antecipados, como é evidente, prefiro dizer que talvez se tenha antecipado no espírito dos senhores bispos a ideia da condenação dos alegados abusadores. Mas não é isso que está em causa. O que está em causa é a prevenção nesta fase."

Houve, no entanto, algumas críticas ao facto de a proposta da comissão ter ficado pela sugestão dos 30 anos. Aliás, no no relatório há dados que parecem apontar noutro sentido, em 48,2% dos casos o testemunho aconteceu pela primeira vez e a idade média das pessoas que testemunharam é de 52 anos. Isto não pode significar que as pessoas precisam de mais tempo do que os 30 anos para conseguirem falar do assunto?
Está para nascer a primeira pessoa que diga que a idade certa é a idade X. Nós avaliámos isso em grande parte através  da participação, do trabalho quer do dr. Daniel Sampaio, quer do dr. Pedro Strecht. E, portanto, a partir daquilo que são as suas competências técnicas e científicas, entendemos que deveríamos fixar um limite. Não falar apenas em termos abstratos do aumento do prazo para a apresentação do direito de queixa, mas definir um limite. E acordámos que os 30 anos, tendo em conta o estudo que fizemos dos testemunhos que recebemos, seria bastante — mas não fizemos disso uma questão especial. Aliás, tive ocasião de dizer aquando do lançamento do relatório na Gulbenkian que não pomos obstáculo nenhum em que seja fixada outra idade. A nossa questão está na necessidade de aumentar o tempo para o fazer — se são 30 ou 35 anos, não fazemos disso qualquer questão. Nem sequer sentiremos que a comissão não viu consagrada a sua ideia se em vez de serem 30 forem 35 anos. O que queremos, como consagração da ideia, é realmente o aumento da idade para poder fazer.

O grande número de possíveis vítimas que resulta do relatório da Comissão Independente — as 4.815 possíveis vítimas — têm origem num cálculo feito a partir dos 512 testemunhos, de que já falamos, e dos relatos feitos por essas pessoas. Dentro da comissão foi unânime chegar a este método de extrapolação, digamos assim, para um número aproximado de vítimas que terão existido durante estas décadas?
Foi absolutamente unânime como resultado final e como critério final adotado para poder chegar aí. Não houve nunca uma divergência entre nós, mas houve trocas de opiniões no sentido de saber se não se estaria a exagerar por defeito e nós ainda hoje consideramos que esse número é uma projeção que, a pecar, peca por defeito — não temos mesmo dúvida de que pecará mesmo por defeito. Não precisávamos de apresentar um número para exibir no resultado, tínhamos que apresentar um número para dar uma noção clara da dimensão brutal que isto significa. E, portanto, entendemos que era bastante mais preferível ter um número que, sendo menor, já é tão grande, do que ter um número maior que ainda por cima pudesse suscitar algumas dúvidas quanto ao critério que tínhamos seguido para o atingir. Posso-lhe dizer que o critério é muito quadriculado, com um conjunto de aproximações e recuos e, dentro desse critério, muitas vezes, onde podíamos ir até 20 fomos até 5. Estabelecemos grandes travões a essa projeção, o que nos dá uma margem de segurança quase absoluta de rigor.

A comissão independente enviou um total de 25 casos para o Ministério Público. Os elementos da comissão, especialmente o dr. Laborinho Lúcio, foram sempre manifestando pouca esperança de que pudesse haver efetivamente investigações criminais, quer pela prescrição quer pela dificuldade em recolher indícios e provas neste neste tipo de crimes. Quais foram os critérios usados para decidir o envio para o Ministério Público?
É absolutamente essencial clarificar isso. A Comissão Independente era uma comissão ad hoc, não era uma comissão institucional, enquadrada nos poderes do Estado e, portanto, não tínhamos qualquer poder — nem de investigação criminal, nem de decisão sobre o destino criminal dos factos que eram colocadas nas nossas mãos. Nós podíamos até, no limite, não ter enviado nada para o Ministério Público, partindo da ideia de que, não tendo de nós o estatuto de funcionários, não precisaríamos de o fazer. Não tínhamos essa obrigação. Mas, evidentemente, que não se compreenderia que, estando nós a receber notícia de facto que constituía um crime, não os enviássemos para o Ministério Público. A esmagadora maioria dos testemunhos que recebemos referem-se a factos ocorridos numa época que já não os faz caber dentro do prazo do exercício da ação penal e, portanto, do procedimento criminal.

Estão prescritos.
Sim, estão prescritos, como se diz em linguagem vulgar — eram factos que, embora constituindo crimes, estavam prescritos. Nós, evidentemente, temos a noção da forma como se conta o prazo e deixámos uma margem de dúvida — aplicando praticamente o mesmo prazo a todos os casos, quando sabemos que há casos cuja prescrição é bastante inferior, dependendo da gravidade do próprio adolescente.

Quantos anos?
Atirámos para vinte anos, que são muito mais do que aqueles que já estão previstos mesmo para o máximo da prescrição. E porquê? Porque não nos cabe a nós decidir se está prescrito ou não. Agora havia muitos casos e não íamos inundar o Ministério Público com casos obviamente prescritos. Alguns dos enviados para o Ministério Público terão tido já um despacho de arquivamento por prescrição, que serão esses que cabiam na margem de tolerância. Em segundo lugar, mandámos para o Ministério Público tudo o que, cabendo dentro da margem da prescrição, podia ser absolutamente injustificado. Eu dou-vos um caso que é paradigmático, mas que ao mesmo tempo demonstra aquilo que quero dizer: uma vez uma senhora deixou no bolso de um de nós um papel e disse: “Esse papel tem dois nomes, investiguem-nos.” Era um papel com dois nomes que a senhora dizia que eram de eclesiásticos. A nossa dúvida foi: isto não dá para nada, mas também não podemos rasgar isto. Porque mais tarde a senhora poderia dizer: ‘Eu denunciei dois e não ligaram nenhuma’. Então tínhamos ali dois nomes e uma senhora que diz que praticaram abusos sexuais, então vão para o Ministério Público.

Mas esses nomes constam na famosa lista?
Não, estes dois nomes nem constam da nossa lista final, porque para nós isto não é testemunho validável. Mas nós não podíamos deixar de enviar ao Ministério Público, que provavelmente também os arquivou imediatamente por não haver base de investigação. E foi por isso que disse na conferência de imprensa na Gulbenkian que tínhamos três tipos de casos para o MP: os de investigação mais simples, cujo resultado depois se verá a que conduz; os de investigação muito mais complexa, provavelmente sem sucesso; e os insuscetíveis de investigação. Portanto, se chegarmos ao fim e houver pouquíssimos casos de acusação por parte do Ministério Público ou até eventualmente nenhum — e tenho que admitir teoricamente isso — não é especialmente surpreendente para nós. Por outro lado também é importante referir que a comissão independente não era uma comissão de investigação criminal, não era esse o nosso objetivo. O que nós não quisemos foi ter nas mãos factos que são qualificáveis pela lei como crime e não os entregar à única entidade que em Portugal tem competência para respetiva investigação.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Ainda que a justiça não pudesse fazer nada em muitos dos casos, esses nomes foram enviados todos para a Igreja. Até certo ponto, o facto de na maioria das situações já haver prescrição pode ter motivado algumas declarações, como as de D. José Ornelas, que disse que seria muito difícil investigar os casos e suspender os alegados abusadores sem dados mais concretos — escudando-se na questão de nem o Ministério Público muitas vezes ter condições para fazer essa investigação? Acha que de alguma forma o facto da maioria dos crimes estarem prescritos acabou por permitir que os bispos também se escudassem ou vê que a obrigação da Igreja era totalmente diferente da da justiça?
Tem de ser totalmente diferente. Estamos a falar de milhares de vítimas que sofreram e sofrem hoje, à mercê da atuação de membros da Igreja Católica portuguesa ao terem abusado sexualmente delas. Esta é uma realidade que existe e que não prescreve. O sofrimento das vítimas não prescreveu, a completa falta de cuidado com elas, de reparação dos males que sofreram, de indemnização pelos prejuízos quer morais quer materiais que tiveram, nada disto prescreveu do ponto de vista ético. A Igreja tem o dever de cuidar destas vítimas, tem o dever do cuidar neste sentido, não é no sentido caritativo do termo. As vítimas não querem isso, mas é no sentido civil do termo, no sentido nobre do termo, na relação que cada um de nós tem pela afirmação de responsabilidade daquilo que é a interação comunitária onde nós todos vivemos. E a Igreja aqui evidentemente não está excluída disto. Daí nós falarmos nomeadamente de situações de morte, porque é evidente que aí não há qualquer hipótese de se fazer avançar um processo, nomeadamente pelo Ministério Público, mas todavia os factos foram praticados. Ora bem, nestes casos dos abusos prescritos, os factos foram praticados e também lá estão. E mais do que isso, é preciso tentar perceber internamente quem são essas pessoas, não é para as perseguir criminalmente, provavelmente não será para as prosseguir disciplinarmente — se se entender que até a própria prescrição prevista na lei canónica já foi ultrapassada.

E então, como agir?
Não se pode é, por isso, esquecer a situação e manter tudo como estava. Daí que haja um conjunto vastíssimo de ações que se podem desenvolver e que estão muito ligadas ao outro tipo de recomendações que nós enviámos, nomeadamente à Igreja Católica e que hoje devem colocar o problema justamente na vítima. Se se fizer as perguntas que têm estado a fazer — e que são essenciais — a partir da vítima, o simples facto de formular a pergunta a partir da vítima sugere logo uma resposta diferente, porque entra um elemento de cultura na formação da equação que estamos a colocar que vem a induzir necessariamente uma resposta de natureza diferente. Ora, aqui nós precisamos olhar muito claramente para as recomendações que foram emitidas. Não por serem as nossas, isso não importa nada. As recomendações agora são recomendações independentemente da origem de quem as preferiu. Há neste momento um ponto que me parece absolutamente decisivo com estas dificuldades de comunicação que entretanto se estabeleceram, chamemos-lhe assim, o que veio a acontecer foi que, se havia uma retomada de confiança das vítimas nomeadamente na Igreja, presumo que agora essa confiança está ferida outra vez. O que não quer dizer que se desista dela, desde que a Igreja não queira desistir dela.

É preciso agora correr atrás do prejuízo?
É necessário que haja agora manifestações ativas, proativas, que mostrem que a Igreja está a caminhar em sentido diferente e uma delas resulta, eu diria, da primeira das recomendações gerais que fazemos, dirigidas à Igreja, e que é a da criação de uma nova comissão. Não é esta que acabou agora, nem com nenhuma destas pessoas — todos nós já deixámos isso claro –, mas com personalidades que, pela sua qualidade técnica e científica (antropólogos, psicólogos, psiquiatras, juristas, sociólogos…) constituam uma equipa de qualidade e publicamente reconhecida por essa qualidade, à qual podem agregar-se membros da Igreja. Ou seja, uma comissão plural mas em que este tipo de pessoas, vindas de fora, tenham a maioria. Será uma comissão nomeada pela Igreja e que vai de alguma forma estabelecer uma mediação entre as vítimas e as estruturas de resposta da Igreja. Esta comissão terá por objetivo receber os testemunhos das vítimas, avaliar as hipóteses de indemnizações, estudar as hipóteses de indução de processos a instalar contra pessoas que venham ser acusadas de novo, não vão ter nenhum poder de decisão sobre nada disto. Mas vão trabalhar os processos, avaliá-los, analisá-los, colocar as questões da indemnização a receber pelas vítimas, colocar as questões do apoio psicológico e psiquiátrico, que é muito importante, e depois remeter tudo isto às comissões diocesanas.

A criação dessa possível nova comissão foi levemente abordada na última semana, naquela conferência de imprensa de D. José Ornelas em Fátima, e foram remetidos para abril mais detalhes. Na qualidade de membro da comissão, que agora cessou funções, como é que foi para si ver aquela conferência de imprensa de D. José Ornelas? Depois de terem estado reunidos com os bispos nessa manhã, estava à espera de algo assim?
Poderia dizer qual foi a nossa a nossa reação, mas uma vez que estamos a falar de dimensões mais emocionais, falarei com mais propriedade da minha. A minha reação foi de uma absoluta perplexidade, mesmo com alguma dificuldade em compreender a razão que estaria por trás daquilo. Nós tínhamos estado juntos de manhã, a reunião da manhã iniciou-se com uma intervenção de D. José Ornelas extraordinariamente assertiva, relativamente ao que era necessário fazer, àquilo que tinha sido o trabalho da comissão, ao modo como a Igreja ia tomar em conta o relatório e as recomendações. Quando foram entregues as listas com os nomes, nós dissemos que aquelas listas tinham o conjunto dos alegados abusadores e ficámos à espera de que ao fim da tarde houvesse uma consonância clara evidente entre as propostas da comissão a aceitação por parte da conferência episcopal e o anúncio de que iríamos entrar numa nova era relativamente à abordagem desta criminalidade tão grave e tão perturbadora.

"Não vimos uma palavra sobre as vítimas, não vimos uma palavra sobre a própria posição da Igreja relativamente a este tema e aí continuo hoje, com um pouco mais de distância e mais reflexão crítica sobre isso, com a mesma perplexidade."

E não viu nada disso.
Não vimos nada disso. Não vimos uma palavra sobre as vítimas, não vimos uma palavra sobre a própria posição da Igreja relativamente a este tema e aí continuo hoje, com um pouco mais de distância e mais reflexão crítica sobre isso, com a mesma perplexidade. Não ponho em causa a estrutura moral das pessoas e, portanto, não creio que tenha havido ali uma forma perversa de abordar um tema ou enganosa — longe de mim essa ideia, com franqueza –, mas a perplexidade foi-se mantendo e começo a ler isto de uma forma que me preocupa um pouco mais. Mas julgo que ou não se confirma — e seria bom que não — ou pode pelo menos ser corrigida: quando vi a história da afirmação sobre uma lista de nomes sem factos, de uma maneira até que não é muito própria da gentileza com que D. José Ornelas normalmente se refere a estas coisas, achei estranha a maneira como tudo foi dito, que de alguma forma não deixava a comissão um pouco em dificuldade para explicar.

Foi dito até: é só o Jacinto, é só o Albino…
Neste momento, passado este tempo, há uma conclusão que nós extraímos: é que isto foi um facto que foi criado. E tanto que é assim que, daí para cá, nós passámos a discutir muito mais a lista de nomes que nós apresentamos e que era um apêndice, como há pouco foi dito, em vez de discutir o relatório. Não quero crer que isto tenha sido intencional, mas o que é facto é que o efeito foi este. Não se falou das vítimas. Nada, o que é uma coisa absolutamente extraordinária. Sobretudo, quando de manhã se tinha falado — é certo que tinha sido uma afirmação nossa –, que hoje há claramente duas posturas na Igreja. Não quero fazer a distinção entre conservador e progressista, porque não tenho nada contra a estrutura conservadora. E acho que é legítimo defender a estrutura conservadora, nem tenho a ideia de que a progressista é boa e a conservadora é má necessariamente. São diferentes, temos conceitos de uma coisa e de outra, mas ambas têm o seu lugar e ambas têm a legitimidade para o seu lugar. O que entendo é que há uma perspetiva que é, espero que se perceba, reacionária. Isto é, uma perspetiva que reage a qualquer hipótese de mudança.

E vê isso em alguns bispos. Quais?
Isso não vou dizer, como como calcula. E há por outro lado uma perspetiva de abertura. Há uma Igreja, diria, do Papa Francisco, uma Igreja do evangelho, que é aberta ao exterior, que é aberta ao sentimento das vítimas, que integra as vítimas e que está disponível para as ouvir e para remediar, tanto quanto possível, os males que nelas foram praticados. E uma outra Igreja completamente fechada sobre si própria, que reage completamente à mudança, que não é aberta ao exterior e que no fundo é mais uma Igreja clerical ou clericalista, no sentido ideológico.

E em Portugal, pesa mais essa Igreja do Papa Francisco ou Igreja mais fechada ao exterior.
Respondo já, mas deixe-me só acabar isto, porque isto pode ter efeito naquilo que é a interpretação da reação depois, na conferência de imprensa. É que nós tivemos a ocasião de opinar, porque não fizemos outra coisa, no sentido de que será errado tentar conciliar estas duas posições. Elas são absolutamente inconciliáveis e qualquer tentativa de conciliação favorece esta outra mais extremada. Ora não sei se não foi uma tentativa de conciliação que se fez na conferência de imprensa.

Onde é que fica D. José Ornelas no meio de tudo isto? Esta semana o editorial do Sete Margens, jornal especializado em religião, dizia que o que vimos provavelmente teria sido D. José Ornelas a defender coisas em que não acredita, porque está a tentar conciliar dois pontos de vista inconciliáveis. Também é a sua análise?
Quero admitir que sim, mas tenho de reconhecer que me parece um caminho profundamente errado. Porque aqui a conciliação favorece uma das partes, não há conciliação possível, porque ou se está de um lado ou se está do outro.

Mas reforçando a pergunta que foi feita: há mais peso de uma ala conservadora na Igreja em Portugal?
Não sou capaz de dizer. Tenho uma ideia há muito tempo, como cidadão, de que há uma grande unanimidade à volta do Papa Francisco, porque a maior parte das coisas que ele diz não têm seguimento, porque não podem ter. Ele próprio sente que não tem poder para lhe dar seguimento. Ele tem conseguido muito, mas há muita coisa que ele diz e leva as pessoas a aplaudirem, porque sabem que não há seguimento possível nesse sentido. Isto tem, com certeza, também repercussão do interior da Igreja. Além disso, não é novidade para ninguém que evidentemente há, no interior da Igreja, quem deseje desesperadamente a abdicação do Papa Francisco. Neste momento o que me interessa não é o meu pensamento sobre a Igreja, não é o pensamento sobre a sociedade, não é isso que importa. O que importa é este tema em si e a maneira como nós lhe damos valor para criar valor novo. A Igreja portuguesa tem um grande momento de afirmação no mundo, que é justamente a Jornada Mundial da Juventude.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Como especialista e no direito e nas questões de justiça, como é que viu a intervenção de D. Manuel Clemente essencialmente focada num certo legalismo, argumentando que só com factos comprovados e sujeitos a contraditório é que é possível afastar alguém? E depois D. Américo Aguiar também entrando aqui num debate semântico sobre a diferença entre “suspender” e “afastar”? Depois deste relatório e mantendo o foco nas vítimas, deve ser este o discurso, a grande preocupação da Igreja?
Posso ter uma margem de tolerância, porque não sabemos o que está no espírito de quem faz essas afirmações. Se me estiverem a dizer que não pode haver condenação sem contraditório, sem o respeito pela presunção de inocência, estou completamente de acordo. Mas ninguém põe isso em causa, nem ninguém pôs. Agora vir antecipar isso para o momento anterior, em que pode haver medidas preventivas, que são medidas de afastamento — nem sequer são necessariamente medidas de afastamento do ministério, podem ser afastamento, por exemplo, de relações com crianças… Isso não só pode, como deve acontecer. E é como digo, se tivesse acontecido desde o início, se todos tivessem tomado a iniciativa eles próprios de pedirem esse afastamento, episódico, temporário. Ou se a própria igreja tivesse chamado as pessoas envolvidas e tivesse dito isso, tudo tinha acontecido com maior tranquilidade, não havia problema nenhum e não se punha em causa nenhuma regra do estado de direito — que como deve calcular me sensibiliza particularmente. Portanto, isso não é verdade, não percebo porque foi seguido esse caminho. E não quero antecipar que esse caminho seja já de si também a antecipação daquilo que se espera ser o resultado final das investigações que venham a ter lugar. Se esse for o resultado final, que seja, mas que ele seja perseguido como um objetivo parece-me profundamente inaceitável. Por outro lado, a ideia de que não pode haver indemnização às vítimas, porque nós não podemos tomar a iniciativa…

Indemnizações que são insultuosas para as vítimas, segundo as palavras de D. Manuel Clemente…
Tínhamos para já de reconhecer que há várias igrejas insultuosas pelo mundo de fora. Temos Estados Unidos, Austrália, Alemanha, Irlanda, a França — todas elas insultaram as vítimas. As vítimas não sentiram nada insultadas com isso. Evidentemente que a manifestação da disponibilidade para indemnizar não é outra coisa se não a assunção de responsabilidade por aquilo que são os efeitos negativos que geraram danos quer materiais quer morais nestas pessoas. As vítimas depois decidirão elas — mas só elas — se querem ou não ter essa indemnização. Quanto ao senhor D. Manuel Clemente — e digo isto com com alguma tristeza pela afirmação, porque conheço-o relativamente e tenho muito boa ideia dele, é uma pessoa que estimo até pelo seu papel no mundo intelectual, não consigo perceber como é que disse a certa altura que há muitos casos que são ali entre os anos 60 e 80 e que nestes casos eram eram atentados ao pudor e que o atentado ao pudor era uma coisa que se resolvia com uma pequena conversa. O atentado ao pudor nessa altura integrava o coito anal, o coito oral, masturbação, etc. O atentado ao pudor não é uma festinha quase inocente. É preciso ter a noção do que se está a dizer, porque as vítimas estão em casa, ouvem e dizem ‘mas o que é isto?!’ Mas que conversinha pode haver numa situação destas?

Novamente é uma forma de legalismo?
É uma forma de absoluto legalismo, é uma forma de transpor para o exterior a procura de um critério que permita no interior não assumir verdadeiramente o ponto…

E que desvaloriza as vítimas?
E que desvaloriza completamente as vítimas. Aliás, se me permitissem, peço desculpa por tomar esta esta iniciativa, mas quero, como pessoa, deixar uma palavra de agradecimento às vítimas. Não é apenas de louvor, não é de conforto, é de agradecimento. Estas vítimas arrostaram com muito, e nós sabemos bem, porque conversámos vimo-las, ouvimo-las, sabemos, temos os depoimentos delas. Estas vítimas que arrostaram com esta responsabilidade de vir a público dar conta do seu testemunho foram de uma grande coragem e, aconteça o que acontecer, têm todas as razões para se orgulhar da sua atitude. Elas vieram introduzir um espaço novo de reflexão e de debate entre nós que se prende diretamente com o que há de mais profundo do ponto de vista da ética, da relação humana, do respeito à dignidade humana e do respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos. E, portanto, são elas a grande figura a louvar. São as vítimas dos abusos sexuais acontecidos em Portugal nos últimos setenta anos, as grandes figuras deste trabalho e deste processo.

Voltando aqui ao legalismo que tem existido assistimos nos últimos tempos também a um outro caso, que mostra também a atuação da justiça — o processo do padre Anastácio, do Funchal. Este antigo padre tentou entregar-se no Ministério Público, o que foi noticiado pelo Observador, e foi recusado, por não ser ali o local. Além disso, o que se pretendia era uma notificação e não a sua entrega. Compreende a atuação da justiça neste caso? A justiça transmite uma sensação de segurança para as pessoas com esta decisão?
Vou começar por dar a resposta que os jornalistas nunca gostam que seja dada. Sou magistrado jubilado e estou comprometido com o estatuto de juiz, que é o que sou e não posso falar de casos concretos. Esse é um caso concreto e não posso falar sobre ele, mas, na parte final da sua pergunta, há uma outra dimensão, que é a de saber se este tipo de atuação corresponde àquilo que as pessoas esperam da justiça. Essa é uma questão que não vou abordar agora, porque nos levaria muito longe, é uma questão muito complexa, mas nós temos todos que ter aqui uma profunda reflexão sobre esse tema. Nós hoje, por variadissimas razões — e isto não envolve nenhum juízo censura contra quem for, é apenas uma observação crítica da realidade –, estamos a caminhar para um mundo de tal maneira tão acelerado em que a instantaneidade tem tanto peso, a eficácia substitui praticamente a maioria dos valores estruturados eticamente, corremos o risco de dar muito mais importância à perceção que as pessoas têm nas coisas do que à informação que as pessoas têm das coisas. E, por maioria de razão, ao conhecimento que as pessoas têm das coisas. A justiça funciona com um conjunto de regras, muitas delas interligadas entre si que têm muito que ver com as garantias fundamentais de direitos essenciais para o estado de direito. Em alguns casos, as garantias dessas garantias — isto não é redundância, é mesmo isso que quero dizer — constituíram uma luta pela qual muita gente morreu, para conseguirem atingir aquilo que, no fundo, é esta dimensão plural do estado de direito, com o pluralismo democrático, com os direitos humanos, com o primado da lei. E muitas vezes a aplicação dessas normas, que tem de ser feita com total independência pelos tribunais, nem sempre é compreendida pela comunidade.

E aí podem gerar-se erros de perceção.
Há um perigo, que é deixar passar o juízo crítico do pedido de informação e de aumento do conhecimento para a reação imediata a partir da perceção. Esse caso não o comento, não sei exatamente sequer como foi que ele aconteceu, mas gostaria de deixar a ideia de que relativamente ao funcionamento da justiça, através do contrato social, há um elemento de confiança que é necessário manter e às vezes um aumento de informação sobre as situações é importante, para que nós não entremos também numa descrença absoluta sobre coisas de cujo o conteúdo não conhecemos a totalidade. E que nos pode levar a criar situações difíceis que vão gerar coisas que nós hoje nos vamos habituando a chamar de populismos e que podem conduzir a efeitos bem nefastos do ponto de vista do ambiente democrático em geral.

Como é que tem visto ao longo do trabalho da comissão e também nos últimos dias as intervenções de Marcelo Rebelo de Sousa sobre sobre este tema? Inicialmente o Presidente da República chegou a dizer que o número era relativamente baixo — o que segundo o relatório terá motivado algumas vítimas a apresentarem o seu testemunho –, mas agora, na última entrevista, foi bastante duro com a Igreja.
Direi de uma forma muito simples: valorizo sempre aquilo que é dito mais recentemente, porque é necessariamente aquilo que manifesta a posição que a pessoa tem no momento em que a profere. Acho que a posição do senhor Presidente da República neste momento parece uma posição perfeitamente correta e, portanto, não não tenho que tecer mais comentários acerca disto.

Voltemos ao relatório, é certo que comissão independente cumpriu o prazo de um ano estabelecido — o que muitas vezes é raro acontecer –, mas, tendo em conta as dificuldades que foram tendo, por exemplo o acesso aos arquivos que só teve início em outubro, acha que teria feito sentido um alargamento do tempo do trabalho da comissão para que algumas dessas contingências pudessem ser compensadas de alguma forma e até haver um um maior aprofundamento do material que constava nos arquivos?
Podia ter havido, sim, na área dos arquivos que, porventura, teria mais do que uma fase a trabalhar e apenas trabalhou uma fase. Mas, apesar de tudo, isto foi um ganho de causa que muitos pensariam que não viria sequer a acontecer.

Como assim?
Aqui é a vez de nós também entendermos a posição da Igreja. Vamos ver: para a Igreja isto não foi fácil, pelo contrário. E digo mais: da mesma maneira que sou muito crítico relativamente à posição que a Igreja ultimamente tem adotado e espero que ela venha a recuar um pouco nesse caminho, também não posso deixar de dizer que há três aspetos que para mim que são decisivos. Em primeiro lugar, foi a Conferência Episcopal Portuguesa que criou a Comissão Independente — pode dizer-se que poderia ter sido mais cedo ou mais tarde, mas criou a comissão e a iniciativa foi dada; em segundo lugar, deu-nos toda a independência para podermos ser absolutamente isentos no trabalho que desenvolvemos ao longo deste ano — e isto é muito de louvar; e finalmente o conselho permanente da Conferência Episcopal esteve presente, na primeira fila, na apresentação do relatório, sabendo que ia ouvir coisas que não eram, evidentemente, agradáveis de ouvir. E isto também é de louvar. Por outro lado, quanto a algumas dificuldades, alguma renitência inicial de alguns bispos em virem à conversa com a comissão, algum fechamento dos arquivos, isso realmente aconteceu, mas para a Igreja tudo isto também era pesado, era muito difícil. No fundo, era escancarar aquilo que estava muito na sua intimidade.

Era difícil, mas há vários anos tinha vindo a acontecer noutros países. Não fomos pioneiros.
Isso é verdade, mas como sabe tudo o que passa pelo domínio da emoção só se sente na altura em que se sente verdadeiramente e não por antecipação daquilo que vai acontecendo aos outros. E, portanto, foi neste ano que a Igreja se sentiu verdadeiramente confrontada com isso. E isto é muito importante que se diga, para que a própria Igreja perceba que ela tem uma dimensão de transformação e de mudança que pode fazê-la sair deste processo por aquilo que parece, aos olhos de todos, que é o único lado possível de sair. O respeito pelas vítimas, a necessidade de encontrar medidas claras, urgentes, que ponham travão à quantificação deste fenómeno. Ele não vai acabar, certamente, mas é necessário que ele se reduza por um limite que nunca será tolerância, porque nem um caso é tolerado, mas por um limite que não seja sistémico, como durante muito tempo foi, ligado evidentemente também a um outro tema, que é complicado, e que ficou muito fora do debate nestas semanas, que é o da ocultação da Igreja ao longo do tempo, e qual é o estado da arte neste momento em matéria de ocultação ou desocultação. Aqui, este modelo de intervenção que a Igreja tem estado a seguir é um modelo perigoso do ponto de vista da ocultação.

Porquê?
Se nós quisermos, se levássemos à letra algumas das intervenções que ouvimos e esta ideia de que não há prova, não se pode fazer porque não há prova, na altura em que o que se está a fazer é antecipar que não há prova — porque só se pode dizer que não há prova depois de se ter tentado encontrar a prova. Se antecipadamente se diz “não há prova, não há prova, não há prova”, podemos estar a chegar a uma situação que tem o seu quê de ridículo, que é a de dizer que num modelo anterior os abusos existiam, mas não se sabia; no modelo atual, sabe-se, mas eles não existem, ou seja, não têm a prova. E isto não pode acontecer, porque é outra forma de ocultação e nós não podemos aceitar que isso volte a acontecer.

Mencionou justamente a exigência da prova. Efetivamente, quando olhamos para a história dos abusos na Igreja, percebemos que a exigência da prova e, muitas vezes, a contraposição entre a palavra da vítima e a palavra do agressor foram uma estratégia da Igreja para ocultar os casos. Já que não há prova, não vamos fazer nada quanto a isto. Parece-lhe que insistir nesta questão da exigência de prova é regressar a uma estratégia de ocultação? E, por outro lado, o que é que se deve fazer com os bispos ocultadores? A comissão disse que havia bispos ocultadores.
Já vamos a essa questão. Na parte inicial, não quero atribuir a intenção de que isto seja uma estratégia para ocultação. Porque, então, tinha sido uma estratégia perfeitamente organizada. Tinha-se dito que há uma lista só com nomes, desvalorizava-se a informação que a comissão deu; depois, dizia-se que como não há factos não pode haver investigação, não pode haver prova, sem prova não se condena, presunção de inocência, não há nada a fazer. Tudo isto passava e nós ficávamos com a ideia de que tinha havido vários abusos sexuais na Igreja, mas não se sabia de quem, nem como, nem em que circunstâncias. Julgo que isto não passa pela cabeça de ninguém, nem em circunstância nenhuma passou pela cabeça da Conferência Episcopal, de modo nenhum. Mas há o perigo de se passar assim. E há sobretudo o perigo de as vítimas pensarem que é assim que vai ser. Ora, não pode. Perguntar-me-á: mas acabou de dizer várias vezes que não pode garantir que venha a haver prova que leve à condenação. Pois não posso. E pode até não haver prova relativamente a ninguém que leve à condenação. Mas há uma prova que está provada exuberantemente: é que houve pelo menos cerca de 5 mil casos de abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa durante estes anos.

Muitos deles ocultados.
Muitos deles conhecidos dentro da Igreja, porque nós sabemos das transferências que houve de padres, e necessariamente muitos deles conhecidos pelos próprios bispos. Não sei por quais, mas pelos próprios bispos. Esta ocultação tem de ser colocada na linha da frente dos objetivos da mudança, no sentido de desocultar a ocultação. Ela faz-se, primeiro, confessando que ela existiu, e em segundo lugar garantindo que ela não vai continuar a existir. Aliás, há hoje na linha daquilo que foi a própria evolução do Direito Canónico, não apenas das intervenções sucessivas do Papa Francisco, mas a própria evolução do Direito Canónico vai claramente nesse sentido e coloca a obrigação de denunciar ao Ministério Público. Da mesma maneira também que é absolutamente fundamental que a vítima surja como a vítima deste tipo de abusos sexuais. Na tradição da Igreja, dos abusos sexuais de crianças, a vítima é a própria Igreja, através da violação do mandamento sexto do Decálogo, e através da violação dos costumes e dos bons usos da Igreja. E mesmo em trabalhos recentes, em textos recentes, lá voltam a vir à frente sempre os costumes e o sexto mandamento. Ora, a vítima é uma criança. A vítima principal dos abusos sexuais é uma criança.

"A Igreja portuguesa tem nas mãos a possibilidade de dar um excelente exemplo de como pode intervir neste tipo de fenómeno. E de o apresentar justamente na Jornada Mundial da Juventude."

Relativamente aos bispos que se sabe que poderão ter ocultado casos, o relatório menciona algumas situações.
Nós só indicámos à Igreja o nome dos alegados abusadores. À Igreja e ao Ministério Público, mas ao Ministério Público é apenas para informação, mais nada. Mas não indicámos nomes de ninguém em circunstância nenhuma. Nem dos abusadores, nem das vítimas, nem evidentemente, se houvesse casos, dos ocultadores. Por outro lado, acho que poderia haver um resultado perverso dessa indicação. É que a questão da ocultação é uma questão da Igreja e a Igreja tem de a assumir como questão sua. Encontrar três ou quatro ocultadores poderia parecer que não é uma questão da Igreja, que é uma questão apenas daqueles três ou quatro bispos que ocultaram. Portanto, nós entendemos que esta questão é fundamental porque ela transforma realmente, ou não, os abusos de pessoas da Igreja em abusos da própria Igreja — e isso aí nós todos tendemos a apoiar as ações que a Igreja queira desenvolver para deixar que não seja essa a imagem que resulta depois.

Prometi que íamos ainda à Jornada. Disse recentemente que seria uma oportunidade de a Igreja Católica aparecer como um exemplo a seguir. Depois de tudo o que ficámos a saber, primeiro com o relatório, e depois de tudo o que vimos de reações da Igreja, nomeadamente os bispos, sobre as quais temos estado a falar, ainda lhe parece que a Igreja em Portugal poderá dar um exemplo nesta matéria?
Não sei se tem na vontade. Se tiver na vontade, e acredito que tenha, tem nas mãos essa possibilidade. Porque tudo o que tem acontecido até agora tem sido — estou a hesitar muito na palavra, porque não queria adjetivar —, tem sido negativo, tem sido infeliz. Mas não transitou em julgado, é agora a minha vez de poder usar a expressão. Portanto, diria que esta posição da Igreja depois da conferência de imprensa do dia 3 não transitou em julgado. O senhor D. José Ornelas diz que em abril vão fazer uma nova conferência de imprensa e diria que aí é que transitará em julgado a posição da Igreja. Esse é talvez o momento decisivo. E porque é que quero dizer isto? A Igreja portuguesa tem nas mãos a possibilidade de dar um excelente exemplo de como pode intervir neste tipo de fenómeno. E de o apresentar justamente na Jornada Mundial da Juventude.

Até porque o assunto vai marcar o evento.
A Igreja não tem de temer que este tema surja na JMJ. Só tem de temer se ela estiver mal colocada nele. Mas se ela estiver bem colocada nele, e colocar-se nele é estar colocada ao lado das vítimas, e estar colocada ao lado das vítimas é desencadear em ações práticas — e até lá tem tempo para o fazer — um conjunto vasto de medidas que, inclusivamente, estão nas recomendações e nas sugestões. É pô-las em prática. E, depois, mostrar publicamente que é isso que está a fazer. Mesmo que, eventualmente, seja censurada por aquilo que aconteceu até agora. Todos nós cometemos erros, todos nós temos períodos mais infelizes. A Igreja está a trabalhar numa área que é muito crítica para ela e, portanto, também não tem uma coesão total formada até aqui. Agora, tem de saber qual das duas posições em confronto a Igreja quer representar. Já agora, deixe-me só dizer um aspeto, porque fica esclarecido, que é a história do pedido de perdão na JMJ. Aquilo que julgo que deve acontecer não é o memorial — o memorial é outra coisa e, porventura, se existir, ficará situado algures, não é ali que tem necessariamente de ficar. Aquilo que sabemos é que a equipa organizadora da JMJ vai instalar uma praça do perdão, com esta designação.

Com os confessionários.
Com cerca de 100 confessionários onde os fiéis vão confessar os seus pecados e pedir a remissão. Ora, não consigo perceber como é que pode haver uma praça do perdão sem haver um placard qualquer no qual a Igreja peça perdão. Como é que perante tudo isto a Igreja instala uma praça do perdão em que ela se assume apenas como titular do poder de perdoar, repercutindo a culpa, o pecado, sempre para fora dela, quando ela tem também agora aqui uma parte que deve colocar em conjunto. Isso far-se-á com um placard, muito simples, em que a Igreja Católica portuguesa pede perdão às vítimas pelos abusos sexuais cometidos. De forma que se veja. Isto então é que é uma praça do perdão. De outra forma, não.

A nível pessoal, como é que este trabalho de um ano o impactou?
Posso dizer, se quiser, ao contrário. Quando fui convidado pelo dr. Pedro Strecht para integrar a comissão, disse-lhe: “Aqui está um convite que nunca gostaria de ter recebido e aqui está um convite ao qual não posso dizer que não.” E, a partir do momento em que disse que sim, ele impactou-me muito, sempre, por aquilo que era a repercussão de tudo isto nas vítimas. Repito sempre, porque a questão das vítimas é sempre pouco tudo o que nós dissermos relativamente a elas. O que foi este sofrimento brutal que foi sentido ao longo de tantos anos. Há, às vezes, uma censura aqui ou ali pelo facto de nós termos apresentado os testemunhos que apresentámos quando fizemos a apresentação do relatório. Há hoje quem diga até que talvez pudessem ser bastante menos, em vez de terem sido tantos. Nós discutimos muito isso. Isso, sim, foi um trabalho muito discutido — mais uma vez, sem oposição — para avaliarmos o que isso significava nas vítimas, porque elas iam ter outra vez a possibilidade de se confrontarem com a sua própria situação, embora só cada uma é que o soubesse. E nós optámos por ter feito assim e cada vez mais me convenço que foi muito bom termos feito assim.

Porquê?
Porque, de outra forma, nós a pouco e pouco íamos deixando cair. “Deixamos cair, também não vale a pena, são exageros, isto no fundo são percentagens, são gráficos”, e tudo passava rapidamente. Tudo para dizer que hoje sinto que valeu a pena ter feito este trabalho. Outro o faria, com toda a certeza outro faria melhor, calhou-me a mim fazer. Valeu a pena ter feito e a maneira como ele me impactou tem muito a ver com isso. Com uma dimensão profunda de cidadania, de respeito pelas pessoas, de afirmação dos direitos da criança. Isso está muito do relatório, era muito importante que isso fosse expandido através do conhecimento do relatório. Portanto, verdadeiramente estive a trabalhar numa área onde ao longo da vida muitas vezes fui trabalhando — nesse aspeto não me chegou nada de particularmente novo —, mas tive a possibilidade de poder ter participado neste trabalho, que julgo que valeu a pena. Nessa medida, também me impacta positivamente. Embora, repito, o grande impacto é o das vítimas, às vítimas é que nós temos de agradecer.

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