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Barcelona encontrava-se no meio de um clima confuso e incerto quando o Observador lá aterrou. Já era quase uma da manhã (o voo atrasara), os taxistas estavam em greve e o caminho para o hotel Monument, em pleno Passeig de Gràcia, foi mais demorado do que se previa. A noite seria para descansar e carregar baterias para o dia seguinte: o de conhecer o Lasarte, restaurante que já foi o único da cidade catalã a ter três estrelas Michelin (a 22 de novembro de 2017 ganhou um parceiro, o ABaC, do chef Jordi Cruz) e que é orientado por Martín Berasategui, o cozinheiro com mais astros gastronómicos em Espanha — oito no total, divididos por dois restaurantes com três estrelas e um com duas.
“Costumamos ficar por aqui até tarde, não há problema”, tranquilizou, por mensagem, António Coelho, o sommelier e chefe de sala português que nos iria receber. Depois de uns quantos quilómetros chegámos, finalmente, ao hotel. A meio do check-in ouve-se falar português: “Muito bem-vindos ao hotel Monument e ao Lasarte!”, disse um jovem de fato que trazia na lapela um saca-rolhas brilhante, pequeno, em formato de pin. “O meu nome é Marc Pinto e sou sommelier aqui no Lasarte. O António pediu para vos receber”, clama. Em poucos minutos acertámos que o dia seguinte começaria pelas 10h, “a hora a que costumamos chegar, normalmente”, justificou. Assim foi.
Dia seguinte: tranquilidade, esse adjetivo que Paulo Bento popularizou, era o estado de espírito que imperava no elegante e totalmente renovado hotel. Embalados pela “música de elevador” que se ouvia nos corredores, fomos dar com António Coelho, o nosso anfitrião, à porta do Lasarte, que fica paredes meias com o Oria, o bistrô onde costuma ser servido o pequeno-almoço. De ar futurista e todo “pintado” de branco e creme, a sala de refeições surge depois da garrafeira, um imponente “U” em vidro, onde uma pequena parte da adega aparece exposta. É nela, e em redor de uma mesa alta e comprida, que toda a equipa de sala costuma reunir antes dos serviços — “discutimos alguns pormenores da ementa, a cadência do serviço…”, explica António.
Por esta altura, as poucas pessoas que se encontravam pela sala dedicavam-se às limpezas. “Lavamos tudo no início de cada dia e à tarde, antes do jantar”, conta o anfitrião. Havia quem engomasse toalhas brancas e imaculadas em cima das mesas, quem polisse talheres, pessoas de aspirador em riste — e até deu para ver um homem que, do lado de fora do edifício, numa claraboia “que dá uma luz natural agradável”, limpava o vidro com um rodo enorme.
O Lasarte é um dos espaços mais concorridos da cidade: o prestígio das três estrelas e o nome de Martín faz com que nunca haja um dia calmo. Tem capacidade para 45 pessoas, mas António explica que nunca aceitam tanta gente, preferem privilegiar “a atenção ao pormenor” e o “serviço personalizado”, daí nunca receberem “mais de 35/40 clientes” de uma vez. Todos são recebidos à porta por uma das “cerca de 14 pessoas” que trabalham na sala todos os dias, e encaminhados para a sua mesa — “os VIP entram pela cozinha, para evitar confusões e manter a privacidade”, confidencia. Por falar em Very Importan People, convém explicar também que no Lasarte existem dois sítios mais recatados: um encontra-se numa secção fechada da sala de refeições e o outro, ainda mais exclusivo, é uma sala privativa, só com uma mesa comprida, que fica no cimo de umas escadas. Foi para lá que nos dirigimos.
O catalão que andou na tropa com Ferran Adrià
“Esta é a nossa chef’s table, é aqui que sentamos os nossos clientes mais ilustres, para terem mais privacidade”, conta António. À nossa frente estendia-se uma mesa longa (cabem umas 12 pessoas de cada lado) cujo tampo de madeira reluzia com a claridade que vinha do teto panorâmico, todo em vidro. Ao fundo, uma parede envidraçada mostra a cozinha, que fica lá em baixo. “Daqui vê-se tudo, os clientes gostam muito de observar o pessoal de cozinha a trabalhar”, vai contando António. No total trabalham aqui 24 cozinheiros e cozinheiras (alguns deles estagiários) que são comandados pelo italiano Paolo Casagrande, o chef que representa Martín sempre que este não está lá. Apesar de estar em contacto permanente com a sua equipa via WhatsApp, Berasategui ausenta-se muitas vezes: o cozinheiro basco tem 12 restaurantes espalhados pelo mundo e, em breve, deverá juntar pelo menos mais dois à contabilidade, um em Lisboa e outro no estádio Santiago Barnabéu, em Madrid. No dia da nossa visita, porém, o chef ia lá passar “mais ao fim da tarde.”
Antes de termos oportunidade de privar com o super-chef espanhol, faltava conhecer as outras personagens influentes do Lasarte. António Coelho, o mestre de cerimónias, já se havia apresentado ao Observador, mas o seu superior, Joan Carles, ainda não. “Podem falar já com ele porque daqui a bocado vai ter de se ausentar, tem uma cata [palavra espanhola para “degustação” ou “prova] de vinhos”, diz António.
Em pouco tempo estamos sentados com Joan Carles à mesa, a beber um café enquanto o catalão se apresenta. “Este é o meu sexto ano de Lasarte”, começa por dizer. O atual diretor de sala do Lasarte (abaixo dele está o mâitre, António Coelho, e o sommelier, Marc Pinto) já passou 30 anos a aperfeiçoar a “técnica de servir.” Com um discurso sempre cordial, este homem de 53 anos começa por recordar o início da carreira. “Quem já trabalhava em hotelaria e tinha de ir à tropa podia ser destacado para servir na casa do Almirante”, adianta. Com vinte e poucos anos, Joan decide, então, concorrer à equipa de serviçais do oficial que, na altura, era “um dos mais importantes de Espanha.” Apenas havia lugar para 12 rapazes (“três cozinheiros, dois pasteleiros e sete pessoas para a sala”) e muitos deles eram eliminados logo à partida, na fase dos testes psicotécnicos.
Joan foi um dos escolhidos, claro está, mas no grupo do qual fez parte havia um “tipo” muito particular. “Nesse tempo ele era só o Fernando, depois é que passou para Ferran”, diz. Refere-se ao mítico chef do El Bulli, Ferran Adrià. “Na altura, o que ele mais queria era cozinhar em cruzeiros!”, exclama entre risos. Fermí Puig — que hoje também é um chef conceituado — também fazia parte do jovem grupo de recrutas.
Bebericando de um copo de água, o entrevistado explica que Puíg era “um tipo endinheirado” e gostava de visitar restaurantes de luxo. Um dia decidiu convidar o “Fernando” Adrià a ir com ele ao El Bulli, que na altura era comandado pelo francês Jean-Paul Vinay (que conquistou a segunda estrela do restaurante, na década de 70). Adrià gostou tanto da experiência que, quando acabou a tropa, foi lá parar.
“Bons tempos, esses”, recorda com saudade. De entre as coisas que afirma nunca esquecer há todos os “reis, ministros, políticos, estrelas” que serviu durante esta recruta tão particular. “Aquilo foi como um mestrado para mim”, clama, antes de explicar que todos os “miúdos” eram supervisionados por dois mordomos, um inglês e outro francês. Foram precisamente estes dois que Joan relembrou. “Num dia de banquete especial, o staff de sala estava pronto para a revisão. Ficávamos todos alinhados e os mordomos inspecionavam-nos da cabeça aos pés! Desde o estado das nossas unhas à forma como penteavamos o cabelo”, conta. Nessa altura, Joan “era meio hippie” e gostava de usar “o penteado da moda”, ou seja, um vincado risco ao meio. “Quando me viram com o cabelo daquela maneira, agarraram-me pelo braço, levaram-me à casa de banho e molharam-me o cabelo todo. Depois sacaram de um pente e fizeram-me o risco ao lado mais perfeito que alguma vez tive”, termina, entre risos.
O seu percurso a partir daí desenhou-se por vários sítios, embora, no início, Joan sentisse sempre que a profissão de sommelier era pouco respeitada em Espanha — um dos primeiros empregos de escanção que teve foi no restaurante da discoteca Up & Down (“era super popular nos anos 80, todos os famosos iam lá. Punham-me sempre de avental de cabedal e com um taster ao pescoço”). “Senti que não estava a desenvolver o meu ofício da melhor maneira e decidi dizer “basta”. Queria crescer mais! Senti que tinha investido demasiado na minha educação para me desperdiçar ali”, remata. Foi nesta altura que o chef Santi Santamaria o foi “resgatar”, levando-o para o seu histórico restaurante, o Can Fabes.
“Peguei na minha mulher e no meu filho de um ano e seguimos para Sant Celoni de carro”, explica com entusiasmo. Segundo Joan, foi neste restaurante que se lançou “a sério” como sommelier: o espaço já tinha duas estrelas quando lá chegou (tinha 26 anos), era visitado por pessoas de todo o mundo e contactava com produtores de topo. “Aprendi imenso”, explica, destacando a importância que tudo isso teve na sua formação. A cereja no topo do bolo? “Em 84 ganhámos a terceira estrela, fomos os primeiros na Catalunha”, conclui.
Hoje, a sua vida no Lasarte (mudou-se para lá pouco depois da trágica e repentina morte do chef Santamaria) “está muito mais virada para o ensino”, tenta “mostrar um bocadinho de tudo aos miúdos” que passam por ali. Uma das coisas que lhes mostra, por exemplo, é algo que considera essencial — “a atenção ao pormenor.” Um guardanapo, por exemplo, não pode “ser atirado para a mesa”, deve ser colocado com cuidado porque “o cliente nota estas coisas todas.” São exemplos como este que provam a sua teoria de que “tudo é um ritual nesta profissão.”
Quando demos por nós, os ponteiros do relógio já tinham dado uma volta completa. “Não tenho muito mais tempo, as minhas desculpas”, avisou. Antes de sair confessou que nunca foi a Portugal, mas isso não afeta a grande admiração que tem pelo “país vizinho”. “Gosto muito dos vinhos do Dirk Niepoort, do Álvaro Castro, do Luís Pato…”, conta. “Acho que a vossa relação qualidade/preço é admirável!”, revela antes de abandonar a sala.
Champagne, Santa Maria da Feira e Barcelona
A sala (o tal mezzanine VIP) permanecia tranquila. Na cozinha o ritmo ainda era calmo, mas na sala de refeições continuavam a limpar isto, polir aquilo. “¿Puedes llamar Marc, por favor?”, pede António a um rapaz muito jovem. Com um kispo no lugar do casaco de fato da noite anterior, Marc apresenta-se de sorriso na cara. “É ‘Marc’ sem ‘k'”, explica, já sentado à nossa frente. Esta particularidade foi logo a primeira a ser discutida.
“Eu nasci em França, numa vila chamada Soissons que fica na região de Champagne”, adianta. Marc, um sommelier nascido numa das zonas vinícolas mais prestigiadas do mundo, explica que esse foi o seu berço porque os pais imigraram para a região algures entre os anos 70/80. “Eles prometeram que quando tivessem o segundo filho voltavam para Portugal”, e assim foi. Regressou muito jovem, “tinha uns seis, sete meses”, para a zona de Santa Maria da Feira, nos arredores do Porto, e foi lá que começou a dar os primeiros passos na área da hotelaria. Aos 19 anos, em 2009, ingressou na já extinta Escola de Hotelaria e Turismo de Santa Maria da Feira (onde o cozinheiro Leonardo Pereira, por exemplo, também se formou), “sempre na área do serviço de sala”.
Começou a trabalhar perto de casa, “no restaurante X, do António Vieira”, que já não existe, “porque foi levado pelas ondas.” Passou pelo projeto Bule, dos ex-futebolistas Pedro Emanuel e Vítor Baía, mas nessa altura “o bichinho dos vinhos” já começava a dar sinal. A sua vida mudou quando viu um anúncio que lhe chamou à atenção. “O Hotel Ritz Carlton de Barcelona estava à procura de estagiários e decidi concorrer.” Acabou por ser um dos selecionados e, em pouco tempo, já se estava a mudar para a cidade onde “só conhecia a Sagrada Familia, o Camp Nou e pouco mais.”
O restaurante de hotel para onde foi trabalhar tinha duas estrelas Michelin, uma garrafeira com mais de 600 referências, e o facto de “não dominar bem a língua” e “não ter muita fluidez de discurso” tornou a experiência assoberbante. A juntar a isso, estava a “diferença mais social da coisa”: passou de um sítio onde “toda a gente diz bom dia e boa tarde” para uma cidade “mil vezes maior e mais cosmopolita.” Com um discurso eloquente e sempre cuidado, Marc atira a máxima que até hoje mantém: “Quando tens vontade, aprendes e adaptas-te rápido”.
Marc descreve a sua experiência de dois anos no restaurante do Hotel Ritz como sendo “extremamente enriquecedora”, mas a mudança para o Lasarte foi mais que bem vinda. No seu poiso inicial, aprendeu muito sobre a proximidade que o pessoal de sala deve ter com o cliente — “era uma empresa norte-americana e eles priveligiam muito isso” — mas com o tempo sentiu necessidade de um desafio menos “descontraído e friendly.” Queria trabalhar num sítio mais exigente e a casa catalã de Martin Berasategui era ideal.
Apesar de já estar em Espanha há seis anos, Portugal continua a ser o seu país, daí não esconder o desejo de “regressar a casa” para dar a conhecer tudo o que aprendeu “lá fora” (como a área dos chamados vinhos naturais e bio-dinâmicos, por exemplo). Confessa que não há muitos clientes do Lasarte a pedir especificamente vinhos portugueses, mas é a estes que recorre sempre que lhe pedem algo surpreendente.
O seu trabalho no três estrelas, para lá das funções normais de um sommelier durante os turnos de refeição, passa por tratar de tudo o que sejam encomendas, organização de adega e actualização de cartas. Quando fala sobre isto tira do bolso um pequeno caderno Moleskine onde aparecem, escritas à mão, várias referências vínicas: “Esta é a nossa carta de vinhos mais prática [têm outra maior que parece uma lista telefónica]. Como há pratos a mudar quase todas as semanas, adaptamos também os vinhos ao mesmo ritmo. Sempre que há uma alteração, propomos um vinho diferente”, explica. Como não seria prático imprimir e encadernar cartas tantas vezes, escrevem tudo à mão — “pedimos é que seja o Joan Carles a escrever. Ele tem a letra mais bonita”, confessa, entre risos.
A conversa chegava ao fim ao mesmo tempo que, lá em baixo, na cozinha, o ritmo começava a acelerar. Não é que existissem correrias, nada disso. Nesta cozinha não há confusões ou gritos mas um ambiente quase cerimonial, onde todos os procedimentos por trás de cada prato sucedem-se de forma graciosa. Os altos chapéus brancos que todos usam nem sequer chegam a abanar.
“Querem comer alguma coisa?”, pergunta António já depois de Marc ter abandonado a sala (ia juntar-se a Joan Carles na prova de vinhos). A barriga já dava horas e não é todos os dias que se tem oportunidade de comer num restaurante como este, daí a resposta ter sido aquele grito que Cristiano Ronaldo dá ao levantar mais uma bola de ouro.
“Qualquer coisinha para comer”
Tínhamos pela frente um menu de seis pratos e o primeiro contacto com a comida do Lasarte surgiu sob a forma de um recipiente de vidro onde morava uma pequena vieira salteada, coberta com espuma de couve-flôr, dois pontos pretos (o alho negro) e uns cogumelos. Leve e sedoso, este primeiro snack desapareceu num instante, surgindo o segundo em pouco tempo — dois lombos de lagostim com uma gelatina de presunto ibérico (feita a partir do jarrete do animal) e com o toque àcido de um creme de limão a envolver.
“A sopa é um elemento essencial na tradição gastronómica ibérica”, disse António ao apresentar o prato que se seguiu. “Temos então uma sopa de jamón Ibérico com manjericão, pequenos tortelinis de beringela e uma espécie de cannelloni de rabo de boi. Disfrutem!” O caldo aveludado era intenso e a untuosidade do rabo de boi, por exemplo, quase que fazia com que a comida escorregasse mais rápido.
Passámos para o primeiro prato, um delicioso carpaccio de porco ibérico (três pratos seguidos com esta espécie de porco asseguravam de que estávamos mesmo em solo Espanhol) com tártaro de ostra, um bombom de foie gras e sorvet de mostarda. Outra mistura que desapareceu de uma vez — não por sofreguidão mas porque foi assim que nos disseram para a comer, “de uma vez só.” Chegámos ao prato de peixe, o último antes da sobremesa, que consistia numa posta de lubina (peixe semelhante ao robalo) com clorofila e caracóis — nova vitória. A refeição chegou ao fim com uma torija (a rabanada espanhola) acompanhada de gelado de rum e baunilha.
Olhando para tudo o que nos foi servido, deu para notar que as fortes influências mediterrânicas/ibéricas da cozinha de Martín casavam perfeitamente com os laivos italianos que, muito provavelmente, partiram de Paolo, o homem que se juntou a nós depois do almoço.
Ele só queria uma mota, mas acabou por ter uma carreira
Paolo Casagrande é um tipo de cozinheiro muito particular. De voz calma e muito serena, o homem que acompanha Martín Berasategui há 15 anos vestia uma jaleca branca, umas calças pretas de corte clássico e levava nos pés uns sapatos pretos, de fato, extremamente bem engraxados (nada de socas plásticas ou ténis). Começa a explicar que a cozinha é para ele uma constante desde muito novo, quando tinha 14 anos. “Nasci e cresci numa típica família italiana onde qualquer desculpa servia para nos pôr à mesa a comer”, diz enquanto agita o café. Paolo adorava ajudar “as tias, as avós, a mãe” a fazer um pouco de tudo, das massas à carne na brasa que faziam num fogareiro que mantinham no quintal.
Apesar de toda essa paixão já o fazer considerar um futuro na cozinha, Paolo decidiu ir trabalhar para um restaurante pela primeira vez por outro motivo: “Comecei na sala porque precisava de dinheiro para comprar uma mota [risos]. Mas não gostava muito.” Com o tempo, deixou-se levar pelos tachos e as panelas, pondo de parte o sonho de ser desenhador. Ao contrário de toda a família, que não tem qualquer ligação com a restauração, Casagrande decidiu apostar a sério nessa área. Diz que sempre trabalhou em restaurantes enquanto tirava o curso de cozinha, “até nas férias”, e isso, diz, “foi muito importante” porque o punha a aprender e a pôr em prática ao mesmo tempo. Quando saiu da escola decidiu abandonar a sua cidade natal de Treviso, perto de Veneza, e seguiu rumo a Londres, onde passou uma temporada antes de dar o salto para França: primeiro em Châteauneuf-du-Pape e depois Paris. Foi na capital gaulesa que percebeu que queria “algo mais” e tomou a decisão que mudou a sua vida: “O meu antigo chef disse-me ‘Tenho amigos em Nova Iorque e em Espanha (O Martín), para onde queres ir?” Pus-me a pesquisar na Internet, para conhecer melhor o trabalho dele, e apaixonei-me. Entrámos em contacto, apresentei-me, apanhei um comboio num fim-de-semana e fui lá. Isto aconteceu em Novembro e em Janeiro do mesmo ano [2003] já estava a trabalhar no Martín Berasategui original, no País Basco.”
A conversa seguia a bom ritmo, assim como a exaustiva limpeza que ia decorrendo na cozinha. Pausadamente, o chef começou a descrever o seu percurso dentro do mundo Berasategui: esteve três anos no restaurante primogénito de Martín, na localidade de Lasarte-Oria (daí o nome deste restaurante e do outro bistrô que também mora no hotel Monumental), mas depois mudou-se para Tenerife, onde abriu o MB em 2005 (actualmente tem duas estrelas) e se manteve durante quatro anos e meio. Depois de um interregno de dois anos, onde se atirou a título próprio num projeto em Itália (no Lago Como, em Milão), entra no Lasarte, espaço onde já trabalha há cinco anos.
A sua posição neste três estrelas pode dar azo a confusões, já que ele é chef, mas Martín (que também o é), está acima. Ora isto não é mais do que aquilo que se vê em quase todos os grandes projetos de chefes multi-estrelados: como não conseguem estar em todos os sítios ao mesmo tempo, elegem chefs executivos que ponham em prática as suas ordens e receitas. Mas isso quer dizer que não há liberdade criativa? Não, nada disso — e Casagrande explica porquê. “No grupo Martín Berasategui há um banco de prova que funciona o ano inteiro, pessoas que se dedicam exclusivamente a testar pratos”, diz. No Lasarte tentam inovar, criar coisas novas que aproveitem os “muitos produtos típicos daqui” que todos os dias lhes levam, e no final tudo vai parar ao mesmo sítio: “O que se faz no País Basco envia-se para Barcelona e vice-versa. Assim, ambos os sítios crescem mais depressa, todos juntos. Tentamos ser generosos naquilo que fazemos e partilhamos tudo”, afirma, antes de terminar dizendo que “se trabalhares em equipa, evoluis muito mais. É assim que as coisas funcionam na família Berasategui.”
“Garrote!”, uma forma de estar na vida
Quando a conversa com o chef Paolo terminou, já se sentia (e via) uma maior agitação na cozinha. Os fogões começaram a aquecer e o staff começava a preparar o jantar. No meio de tantas jalecas e aventais aparece um senhor vestido “à civil”, com uma caixa de esferovite na mão: “Chegaram os lagostins que vamos servir agora ao jantar”, conta o cozinheiro italiano. Debaixo da tampa estavam os reluzentes bichos vermelhos — “foram apanhados há horas”. É isto que acontece todos os dias, quando a importância e frescura do produto é regra sagrada. “Já nos chegaram a entregar coisas quando já tinhamos clientes sentados, prontos a iniciar a refeição”, acrescenta António, que já vestia um fato completo, azul escuro. Por fascinante que fosse ver todo o ciclo de cozinhados recomeçar, estava na hora de ouvir o super-chef Berasategui.
“Ele aterrou há bocado, foram-no buscar ao aeroporto mesmo agora”, diz Marc, que também já estava pronto para a ação. Em menos de nada, Martín estava sentado na sala. “Acabaram de me dizer que a Câmara Municipal de Barcelona vai dar o meu nome a um parque que fica mesmo ali ao lado”, diz. “Querem-me dar a Chave da Cidade em Março também”, acrescenta. Tendo em conta que o cozinheiro nem sequer “é filho da terra” — nasceu em San Sebastián, no País Basco –, não deixa de ser impressionante a relevância que lhe dão na Catalunha.
“Desculpa, dá-me só um segundo que a minha filha está a ligar”, explica. “Está tudo bem?”, pergunta pelo telefone. “Conta-me rápido que estou no meio de uma entrevista.” Pormenores de gestão estiveram por trás do telefonema, conta, reafirmando que chamadas, e-mails e constantes SMSs são a base do seu dia-a-dia: “É o que acontece quanto tens de estar em todo o lado ao mesmo tempo mas não podes, fisicamente, fazê-lo”, diz a sorrir.
“Eu cresci no meio da comida, este é o meu mundo desde que apareci na terra”, explica Martín. A sua família geria uma espécie de tasca (chamada Bodegón Alejandro) quando o basco nasceu. O pai, que era talhante de formação, ocupava-se da grelha a carvão, enquanto a mãe e a tia tratavam de tudo o resto. “Esse restaurante era a minha casa, a minha escola, a minha universidade, o meu tudo”, explica, emocionado.
Apesar das dificuldades inerentes a uma família modesta que tinha “deixado o monte” (assim se refere Martín à aldeia onde sempre viveram) para ir para San Sebastián, sabendo apenas falar basco, Berasategui diz que “guarda memórias muito, muito bonitas” desses tempos — mesmo tendo em conta o momento complicado em que viu o pai ficar doente. “Era adolescente quando o meu pai adoeceu”, confidencia. A enfermidade misteriosa atirou o progenitor à cama, onde acabou por morrer. Com algumas lágrimas a querer fugir dos olhos, o chef do Lasarte diz que o pai foi o único que não viu tudo o que ele hoje já conquistou… E é por isso mesmo que Martín já lhe dedicou tanto da sua vida. Para explicar isso, o chef tira o nosso caderno de apontamentos da mão e começa a escrever — a impulsividade é outro dos elementos que torna este cozinheiro tão único.
“O meu pai também se chamava Martín Berasategui. A assinatura dele era assim” — desenha-a nas páginas do caderno emprestado. “O que quase ninguém sabe é que a minha própria assinatura é igual à dele, tirando uns minúsculos pormenores”, e desenha a sua, para mostrar as tais diferenças. “É por causa dele que o meu primeiro restaurante se chama ‘Martín Berasategui’ e é també por ele que algumas letras dos meus restaurantes [refere-se ao lettering] são feitas a partir das letras da sua assinatura”, revela.
Com o tempo, Martín assumiu o controlo do restaurante familiar decidido a provar o seu valor. “Durante 12 anos seguidos passei todos os dias de folga e férias em França, a aprender um pouco de tudo”, clama. Todo esse trabalho foi recompensado quando em 1985, tinha Martín 25 anos, o tal bodegón recebeu uma estrela Michelin. “A primeira estrela foi uma total surpresa. Nunca imaginei que aquele sítio podia receber uma distinção dessas. Aquilo fez-me sonhar enquanto cozinheiro e percebi que aquele sítio era limitado para continuar a crescer. É aqui que nasce o projeto do Martín Berasategui que todos conhecem: a casa mãe em Lasarte – Oria”, termina.
Todo o crescimento e conquistas que se seguiram já estão na história. Berasategui tornou-se o chef espanhol com mais estrelas Michelin, tem restaurantes em Espanha e no México e isso, diz, “já ninguém me tira”. O futuro? Esse está nas mãos dos jovens que um dia o vão ultrapassar, “se tudo correr bem”. Por enquanto, prefere aproveitar a “frescura” que vê nos seus cozinheiros e que o próprio assume ser igual à que ele tinha no início, “quando era miúdo.” O que faz, entretanto, é aliar essa mesma ambição à sua experiência. “É preciso aproveitar o que os miúdos com garrote têm para dar”, conta. Foi neste momento que tivémos de perguntar: “O que quer dizer garrote?” A resposta, bem humorada como todas as outras, foi que essa palavra significa “positivismo, força, garra, fome de fazer as coisas bem”, e faz-se sempre acompanhar por um punho fechado e um braço no ar, ligeiramente fletido. Julgando pela quantidade de vezes que vimos o chef Martín a fazer “garrotes” à sua equipa, não é descabido dizer que essa interjeição já se transfomou na sua imagem de marca.
A despedida
Maria, a recepcionista da noite do Lasarte, tomava o seu lugar perante a chegada dos primeiros clientes para jantar. “Ela está connosco há pouco tempo, mas fala seis linguas: russo, francês, inglês, castelhano, catalão e tagalo [o dialecto das Filipinas]”, acrescenta António Coelho enquanto nos leva para a saída.
António já tinha revelado que o Lasarte recebe visitas muito famosas, como Mark Zuckerberg (criador do Facebook), Gerard Piqué ou Dani Alves (ambos jogadors de futebol), daí haver alguma curiosidade sobre como seriam os clientes que vinham a este restaurante. No geral, a ideia que se retirou foi a de que não é preciso ser-se um multimilionário extravagante para vir aqui comer. Os preços no Lasarte variam muito (há opção à carta e dois menus de degustação fixos, um com sete pratos a 185€ por pessoa e outro com onze, a 210€), mas nunca gastará menos de 100€ numa refeição.
Durante o decorrer do jantar deu para ver em ação a tal “atenção ao pormenor” que nos haviam falado no início do dia: uma sugestão de vinho, o servir do pão (que aqui é feito só depois dos primeiros pratos chegarem à mesa e que chega numa espécie de carrinho de mão e é cortado na hora). Numa das mesas, onde um casal jovem tinha acabado de devorar o menu de degustação mais completo, foi servido chá em vez de café. À mesa chegou outro “carrinho”, com uma parafernália de artefactos de ar frágil onde vinham as folhas secas do chá, um bule e até uma ampulheta especial que determina quanto tempo deve a mistura de plantas ficar em contacto com a água quente — “temos ampulhetas diferentes porque os chás não devem ser infusionados todos da mesma forma e durante o mesmo tempo”, explicou António.
No final, depois dos últimos clientes satisfeitos abandonarem a sala — pessoas que durante a refeição alternavam entre sonoros “Uaus!” e registos para a posteridade com smartphones — houve tempo para fotografar as pessoas que passámos o dia a conhecer. “Tirem agora uma comigo a agarrar nesta garrafa”, disse Martín, referindo-se a uma garrafa de vinho gigante, que estava exposta na tal mesa da garrafeira, e que foi feita especialmente para o Lasarte, por causa da conquista da terceira estrela.
Entre risos e muitos retratos, surgem as despedidas. Antes de rumarmos aos quartos, Martín atira: “Muito obrigado por nos terem vindo visitar e nunca se esqueçam… Garrote!!“