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Bruno Ázera/Asinus Atlanticus

Bruno Ázera/Asinus Atlanticus

Leite de burra inspira negócio com marca açoriana que resistiu ao falhanço

Ainda mal tinha arrancado o projeto e um incêndio numa máquina do laboratório ia condenando o negócio ao falhanço. Agora querem levá-lo mais longe, tão longe como a alimentação dos bebés.

Clarissa é uma burra esperta. Talvez por isso seja a nova líder do grupo. Tornou-se especialista em abrir portões e, certa noite, resolveu levar a manada para um passeio. Por volta das três da manhã, quando a equipa da Asinus Atlanticus chegou ao local, já as burras estavam a chegar à estrada. O que vale é que são animais dóceis e não foi difícil levá-las de volta à exploração. Clarissa é uma das 55 burras que a empresa açoriana tem. O objetivo é a exploração de leite de burra para a cosmética e alimentação humana. O consumo não parece ser prejudicial, mas as alegações de benefícios para a saúde ainda carecem de mais estudos científicos.

A ideia do leite de burra surgiu depois de verem uma reportagem sobre o assunto. Susana de Couto Rico e Rute do Couto tinham algo em comum: “a vontade de ter um negócio diferente e que trouxesse valor acrescentado”, conta ao Observador o outro ponto comum entre ambas, Marcos do Couto, irmão e marido, respetivamente. Estudaram várias hipóteses — ovelhas e cabras — até que viram a tal reportagem e souberam que era esse o caminho a seguir.

A família Couto tinha comprado recentemente um burro e uma pequena carroça, mas ao animal que seria companhia para as crianças foram-se juntando outros à medida que o projeto crescia. As ideias começaram a tomar forma em 2011 e, dois anos depois, no final de 2013, nascia a Asinus Atlanticus em plena pastagem de Angra do Heroísmo.

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A primeira dificuldade começou logo com a compra dos animais. Um dos requisitos era que fossem raças autóctones e em Portugal só existem duas — o burro de Miranda e o burro da Graciosa. O outro era que os animais fossem comprados na ilha. Mas os burros eram escassos na Terceira ou até nas outras ilhas açorianas. E os que existiam tinham muitos problemas de saúde e não se conseguiam reproduzir convenientemente.

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Foi uma altura difícil”, conta Marcos do Couto. “Ser empreendedor em Portugal é difícil, mas nos Açores é muito mais.”

Sem burras capazes de gerar descendência, não havia hipótese de produzir leite. E esse era o foco do negócio. A equipa não teve outra hipótese senão ir comprar animais ao continente. Além disso, nas ilhas as notícias correm depressa e de cada vez que iam à procura de burras para comprar elas estavam sempre mais caras. “No início, as duas primeiras, custaram 200 ou 250 euros, passado uns tempos já estavam a 500 euros, mas ao fim de três meses já custavam 700 euros”, conta Marcos do Couto. No continente foi possível comprar animais de maior porte — os de raça mirandesa ou sem raça — por um preço mais em conta (400 a 600 euros).

Mas no meio dos azares também existem histórias felizes. “Pequenos sinais que mostram que temos de seguir com o projeto”, conta o professor de Educação Física. Havia uma burra à venda por 500 euros, mas já não havia margem para esta compra — o investimento inicial no projeto contava apenas com as poupanças dos quatro sócios. Foi o Totoloto salvou a situação. A única vez que Marcos do Couto ganhou um prémio deste tipo. E logo 500 euros. A burra passou a ser uma Asinus Atlanticus.

Os primeiros burros começaram por fazer companhia ao animal comprado para as crianças, mas depressa se tornou claro que era impossível manter os burros em casa. Andavam de pastagem em pastagem, nos terrenos de quem lhes cedesse o espaço. Um dia, quando ainda ocupavam uma das pastagens emprestadas, no limbo de continuar ou não com o projeto, o dono do terreno chegou e disse: “Vendi a propriedade. Têm uma semana para levar daqui os burros”.

Sexta-feira, no limite do prazo, e já a pensar o que haviam de fazer aos animais, tiveram a ajuda de João Rego Botelho, um amigo de Fabrício da Costa Rico, o quarto sócio da empresa. A família Rego Botelho é um dos grandes latifundiários da Terceira e produtores de leite de vaca. Finalmente tinham conseguido alugar o terreno, o mesmo onde ainda hoje se encontram. A antiga vacaria foi recuperada para receber as burras, para ter um local para a ordenha mecânica, um espaço para as ecografias das burras prenhas e uma maternidade que lhes dê aconchego quando as condições no exterior não são favoráveis aos partos (como muita chuva e vento).

"“Os Açores têm uma grande vivência na exploração do leite de vaca, mas as diferenças na exploração do leite de burra são muitas.”
Marcos do Couto, sócio da Asinus Atlanticus

Explorar leite de burra não é como explorar leite de vaca

“Os Açores têm uma grande vivência na exploração do leite de vaca, mas as diferenças na exploração do leite de burra são muitas”, diz Marcos do Couto. As diferenças começam logo no maneio dos animais, em especial a ordenha. As burras são muito mais sensíveis que as vacas e a ordenha mecânica não pode ser feita da mesma maneira. “Tivemos de aprender muito. Muito na base da tentativa erro, mas também com a colaboração da Universidade dos Açores.”

As burras, como as vacas, só produzem leite se tiverem crias, mas se a gravidez das vacas são cerca de nove meses, nas burras são mais três. A burra, tal como a vaca, consegue produzir leite durante 10 meses, mas os dois primeiros meses são exclusivamente para as crias. A principal diferença, no entanto, está na quantidade de leite: a raça mirandesa produz cerca de quatro litros por dia, enquanto as vacas produzem mais de 20 litros. O que faz, naturalmente, encarecer o leite de burra. E muito.

A comercialização do leite de burra também apresenta uma grande diferença. A Asinus Atlanticus só vende leite em pó, liofilizado (desidratação que faz com que a água passe diretamente do estado sólido ao estado gasoso). Este processo foi mais um teste para o projeto. Conseguiram um financiamento europeu — 60% dos 100 mil de investimento inicial — para montar o laboratório onde fazem todo o processamento do leite e comprar a primeira máquina de liofilização. Mas, como se não bastasse a liofilização ser um processo suficientemente complexo e terem tido de o adaptar ao leite de burra, ainda tiveram problemas com a máquina. “O equipamento incendiou-se e quase levou à extinção da exploração”, conta o sócio da empresa.

Em agosto de 2014, a Portugal Ventures, pelo Fundo de Capital de Risco dedicado ao investimento no arquipélago dos Açores (o FCR Azores Ventures) apareceu na vida desta empresa. Os 85 mil euros investidos pela sociedade pública de capital de risco permitiram que a Asinus Atlanticus comprasse um novo liofilizador para substituir a máquina que tinha ardido. Com a máquina nova e muito conhecimento acumulado no processo, Marcos do Couto afirma que dispõe de informação valiosa, que poucos grupos têm, e que já são consultados por produtores de outros países por causa disso.

Um ano parado deixou a empresa com graves problemas financeiros. Os restantes 75 mil euros investidos pela Portugal Ventures permitiu à Asinus Atlanticus recuperar desse período, manter Marcos do Couto um ano a trabalhar em exclusivo para a empresa e permitir que a empresa participasse em feiras internacionais para potenciar a exportação do produto. A sociedade de capital de risco viu potencial neste negócio. Por um lado, “nos últimos anos tem-se observado um renovado interesse por parte da comunidade científica em relação às propriedades do leite de burra, quer para a área cosmética, quer para alimentação humana“, diz ao Observador a Portugal Ventures. Por outro, “esta atividade económica demonstrava-se adaptada à região dos Açores, oferecendo um produto de alto valor acrescentado, com múltiplas aplicações e passível de vir a ser comercializado no mercado internacional”.

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O liofilizador novo, comprado com este investimento, pode ser muito bom e o processo estar bem oleado, mas antes disso é preciso cumprir outro passo importante: a pasteurização. Este processo prevê que o leite seja aquecido a uma determinada temperatura, por um certo tempo, para que mate os microorganismos que possam estar presentes. O leite de vaca também é sujeito à pasteurização. Mas se para o leite de vaca o processo está mais que estudado, para o leite de burra foi preciso fazer vários ensaios até conseguir o melhor método de pasteurização que permitisse manter o máximo das propriedades do leite num produto que fosse seguro para o consumo humano. Para isso, a Asinus Atlanticus contou com a colaboração da Faculdade de Ciências Agrárias e do Ambiente da Universidade dos Açores.

Dar leite de burra aos bebés

Neste momento, 99% da produção destina-se à exportação, para cosmética, em França, e para consumo humano, em Hong Kong, Taiwan e Itália. O objetivo da empresa é que o leite de burra passe a ser recomendado como alternativa ao leite de vaca a partir de um ano de idade. A proteína do leite de burra é diferente da proteína do leite de vaca e ainda não demonstrou provocar alergia nas crianças. “Em teoria sim, mas não me parece que os estudos sejam conclusivos”, diz ao Observador, Nuno Borges, nutricionista e professor na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto. O que faz com que a comunidade médica ainda não esteja aberta a esta possibilidade.

Marcos do Couto conta que a Asinus Atlanticus já cedeu leite no estado líquido a duas crianças da ilha que tinham alergia à proteína do leite de vaca. As mães das crianças reportaram uma boa reação ao leite, mas quando foram às consultas de rotina com as crianças, os médicos aconselharam que deixassem de usar leite de burra.

É preciso ultrapassar a barreira cultural para se apostar no consumo, investigação e desenvolvimento de uma fórmula infantil.”

Para o sócio da empresa, era importante demonstrar que o leite de burra é seguro e aconselhado para bebés e crianças, mas diz que em Portugal, quando comparado com a Itália ou Suíça, ainda há muita resistência a recomendar o leite de burra ou mesmo a fazer ensaios clínicos com este produto.

Num próximo passo, a equipa espera encontrar um parceiro que esteja interessado em extrair a proteína do leite de burra e que crie uma fórmula adaptada para bebés, à semelhança dos leites de substituição que existem no mercado. Só tem um problema: o leite de burra é tão pobre em gorduras que é insuficiente para responder às necessidades nutricionais das crianças em desenvolvimento. Esta fórmula teria de contar com um suplemento em gordura.

"O leite humano tem bactérias e componentes imunitários próprios que não se conseguem encontrar no leite de outros animais."
Nuno Borges, professor na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto

De resto, o leite de burra é muito semelhante ao leite materno. O nutricionista Nuno Borges confirma que, sob o ponto de vista nutricional, “é bastante parecido”. “Mas o leite humano tem bactérias e componentes imunitários próprios que não se conseguem encontrar no leite de outros animais”, acrescenta. Aliás, algumas das propriedades que foram identificadas no leite de burra em cru podem ser perdidas na pasteurização. Também por isso se aconselha que o leite materno não seja fervido nem aquecido no microondas: para não perder as qualidades que tem.

Sobre as características do leite de burra que se podem perder com a pasteurização, Marcos do Couto não consegue acrescentar informação. Este tipo de trabalhos de investigação são muito caros e a empresa não os consegue suportar. Caros são também os trabalhos de investigação e ensaios clínicos que Nuno Borges considera necessários para se fazer recomendações sobre o leite de burra para bebés e crianças. “Faltam estudos. Sobre o crescimento, desenvolvimento, incidência de algumas doenças, etc, etc.”

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O nutricionista lembra também que os leites que podem ser consumidos por humanos, como o leite materno, de vaca, de burra ou de cabra “não são assim tão diferentes”. Tendo em consideração que as fórmulas de substituição existentes já foram feitas para serem “perfeitamente adequadas a um crescimento e desenvolvimento normais” e “dada a dificuldade em se fazerem ensaios clínicos em crianças tão pequenas”, é pouco provável que se venha a demonstrar que um dos leites é melhor do que o outro. Marcos do Couto mantém que a vantagem seria a utilização por crianças com alergias ao leite de vaca. Mas admite que a desvantagem é que seria “muito mais caro”.

O empreendedor não deixa de referir outras vantagens do leite que produz. “Somos os únicos produtores de leite de burra biológico em Portugal”, afirma. As burras andam sempre no campo e mesmo durante a noite podem optar entre ficar por baixo do telheiro ou andar na pastagem. Como se alimentam maioritariamente das ervas fresca das pastagens açorianas, as burras, à semelhança das vacas das ilhas, produzem leite com alto teor em ómega 3, importante, por exemplo, para o desenvolvimento do sistema nervoso central.

E é nestas pastagens verdejantes que é possível encontrar Zambra, sempre pronta para a fotografia, ou Nina, a burra fundadora. Mesmo sem querer mostrar preferências a engenheira zootécnica do projeto, Rita Rodrigues, acaba por confessar: “Não há amor como o primeiro”. A burra fundadora que tem agora cerca de nove anos e as primeiras filhas também já produzem leite para exportação.

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