José e António Lello eram dois irmãos cultos, bem-sucedidos e habituados a erguer bons negócios. Mas era impossível prever que a Livraria Lello & Irmão, que os dois inauguraram a 13 de janeiro de 1906, seria hoje uma das principais atrações dos milhões de turistas que todos os anos visitam o Porto. Para começar, se alguém lhes tivesse dito que só em 2014 passariam pela cidade mais de dois milhões de turistas — muitos deles chegados numa novidade tecnológica chamada avião — José e António Lello teriam levantado os olhos com desconfiança, pensando tratar-se de alguma invasão hostil.
Provavelmente, também ficariam espantados ao saberem que existe um meio de comunicação chamado Internet que permite a gente de todos os pontos do planeta a possibilidade de verem fotografias da livraria que eles construíram. E de se maravilharem com ela. E de, quando decidem viajar até Portugal, fazerem o desvio até ao número 144 da Rua das Carmelitas para poderem percorrer a sala cheia de livros e de bustos (da autoria do escultor Romão Júnior) com alguns dos mais importantes escritores portugueses, como Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Guerra Junqueiro ou Tomás Ribeiro. Hoje, quem entra também pode ver os bustos de António Lello, à direita, e de José Lello, à esquerda, adicionados em 1981.
Há exatamente 110 anos, ninguém podia saber que a Livraria Lello & Irmão iria ser eleita, em 2008, a terceira mais bela do mundo pelo jornal britânico The Guardian (que já existia no tempo de José e António). Somam-se distinções: uma das mais “cool” do mundo em 2015 para a revista Time e para a CNN (esta última escreveu mesmo que era “a mais bela livraria do mundo”). Não era possível antecipar tamanho sucesso, mas o projeto para o exterior e para o interior do edifício foi pensado para deixar os visitantes de queixo caído.
“Queriam fazer uma coisa extraordinária. Não houve aqui nenhuma modéstia”, diz José Manuel Lello, diretor da livraria e bisneto do fundador José Lello. Conhece o negócio como a palma da mão: dos 57 anos de vida, 33 foram passados a trabalhar ali a tempo inteiro. Bem antes disso já ajudava ocasionalmente na contabilidade, “para ganhar um pocket money“, recorda.
António e José já se dedicavam ao negócio da edição e venda de livros, num espaço situado nos números 18/20 da Rua do Almada, quando, em 1894, decidiram comprar a importante Livraria Chardron. Foi fundada pelo francês Ernesto Chardron, o responsável por algumas primeiras edições de escritores como Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Guerra Junqueiro e do futuro Presidente da República Teófilo Braga. Até que morreu inesperadamente aos 45 anos. Com este novo espólio nas mãos, os dois irmãos quiseram construir uma morada à altura.
Francisco Xavier Esteves (1864-1944) foi o engenheiro responsável pela construção do edifício que ainda hoje maravilha portuenses e visitantes ocasionais. Por incrível que pareça, foi tudo feito em menos de dois anos. A fachada de estilo neogótico foi inspirada no Mosteiro da Batalha. A missão era erguer “um templo às artes”, diz José Manuel Lello. De cada um dos lados está uma pintura do professor José Bielman: de um lado a arte, segurando uma escultura, do outro a ciência, com uma referência à antropologia.
A inauguração foi um grande acontecimento na cidade. Entre as 12h00 e as 13h00 acorreram políticos, homens de letras, professores universitários, artistas, jornalistas e demais personalidades, entre as quais António Arroio, Bento Carqueja, Abel Botelho, Júlio Brandão, Afonso Costa, João Grave e Guerra Junqueiro. Foi o jornalista e poeta o primeiro a assinar o Livro de Ouro. Pelos nomes percebe-se que, a poucos anos da revolução de 1910 que implantou a República, a Lello estava intimamente ligada à causa republicana. Depois de visitado o edifício, com a sua escadaria hipnotizante, o corrimão em talha de madeira e os apontamentos art déco nas paredes, foi servida na galeria uma taça de champanhe aos convidados. Quem não pôde estar presente enviou um telegrama, casos de Teófilo Braga, Sampaio Bruno, Júlio de Matos ou Xavier da Cunha. No dia seguinte, a imprensa dava conta da novidade. “As letras em Portugal já têm um templo”, podia ler-se na Revista Occidente.
O Jornal de Notícias fazia uma adivinhação acertada: “Ella ficará sempre como um dos mais belos edifícios do paiz e, com ufania, diremos que do estrangeiro, pois que ninguém nos informa havel-os lá que lhe sobrevelem”. Sobre o tecto, onde ainda se mantém o monograma e a divisa da livraria, Decus in Labore (dignidade no trabalho): “(…) é de um lavor complicado e raro, corre em toda a extensão e largura; as scintillações de oiro põem-lhe uma nota de riqueza que maravilha.” O vitral tinha tons “de grande riqueza”.
Também Abel Botelho, coronel e escritor, gravou no Livro de Ouro uma premonição: “N’um paiz de analphabetos, erigir um tão formoso templo ao divino culto da Emoção e da Idea, é um grande acto de benemerencia, e que, pelos seus largos e fecundos resultados, ha de ligar perduravelmente os nomes de Lello & Irmão ao reconhecimento nacional.”
Em 110 anos de história houve períodos melhores do que outros. “Períodos maus, só durante as duas grandes guerras“, reconhece José Manuel Lello. Destaca também o final da década de 1960, quando a editora Lello criada no Brasil faliu e deixou um rombo ao grupo.
Em 1994 foi formada a sociedade Prólogo Livreiros, S.A., e fizeram-se as grandes obras de remodelação para devolver o vigor que o espaço tem atualmente. Antero Braga, que recentemente deixou a sociedade, recorda um período de quase falência. Mas o descendente dos fundadores não gosta de falar em momento baixo, nem quer entrar em pormenores. “Isso é uma história mal contada”, diz. “Construiu-se uma narrativa de salvamento de uma sociedade que estava falida, e isso é falso. [pausa] Foi uma época difícil mas também muito festiva”, conclui.
“Acho que este é o momento mais feliz da livraria”
É engraçado ficar a ver a reação dos turistas quando entram no edifício. Face ao entusiasmo e às interjeições — “oh!”, “uau!”, ou, como ouvimos de um visitante brasileiro, “caraca!” –, a funcionária faz um simpático”schh” para lembrar que os livros pedem algum silêncio. A escadaria é a principal atração para as fotografias. Não só por serem muito bonitas, mas também porque terão servido de inspiração à escritora J.K. Rowling para as escadas de uma livraria descrita nos livros de Harry Potter. A britânica foi casada com um português e vivia no Porto na primeira metade dos anos 90, altura em que estava a escrever o primeiro livro da saga, Harry Potter e a Pedra Filosofal.
Entrada livre e 11 horas de festa esta quarta-feira
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O ministro João Soares abriu as portas às 10h00. Ao longo do dia quem lá for pode cruzar-se com Florbela Espanca e Camilo Castelo Branco, numa das performances previstas, e vão ser oferecidos 110 exemplares do poema “A Lágrima”, de Guerra Junqueiro. A Banda Sinfónica Portuguesa atua às 11h30, 17h30 e 19h30. O brinde faz-se com vinho do Porto e há também pastéis de nata de Alcobaça, jesuítas de Santo Tirso ou as bolas de Berlim do Natário de Viana do Castelo. O aniversário termina às 21h00 com um concerto de órgão de tubos da Irmandade dos Clérigos com a cantora soprano na Igreja dos Clérigos. Tudo gratuito.
Dentro da mais antiga livraria do Porto também se vende merchandising da Lello, desde material escolar a camisolas e guarda-chuvas. Numa das prateleiras há uma pequena montra da Confiança, com sabonetes, águas-de colónia e cremes. Também há CDs de música portuguesa, com o fado de Amália, Ana Moura e Carlos do Carmo em vantagem. No piso de cima há três mesas para tomar café com uma vista privilegiada sobre uma das livrarias mais bonitas do mundo.
Ser bonita ajuda, só que não é solução por si só. No final de julho, a Lello deu que falar por ter começado a cobrar entradas aos visitantes: três euros por cabeça. A medida foi “ousada, mas muito pensada”, admite José Manuel Lello. Era preciso solucionar a situação “insólita de uma casa que era invadida por quatro a cinco mil pessoas por dia, que entravam, tiravam selfies, saíam, não compravam nada e degradavam o espaço”. Meio ano depois, o diretor só vê resultados positivos. Desde logo, houve uma baixa de afluência, com cerca de 2400 visitantes em média por dia no verão e 1400 durante o inverno, altura em que os turistas na cidade do Porto também diminuem. O menor fluxo cumpre um dos objetivos iniciais da medida, o de trazer mais calmaria ao espaço.
Além disso, a entrada é convertida em vouchers, que podem ser usados na compra de livros. Se uma família tiver pago três entradas, pode juntar os vouchers e levar para casa um livro de nove euros, por exemplo. Resultado: “A venda de livros disparou. Com esse valor na mão, as pessoas não querem sair daqui sem levar o livro. Então, uma das nossas preocupações foi adaptar a oferta, com mais livros em diferentes línguas. A maior parte das pessoas que paga entrada aproveita o crédito”.
“Acho que as pessoas perceberam que não havia aqui um espírito ganancioso e que era preciso conciliar a atração turística com a vida normal de uma livraria”, diz. Considera que a entrada paga “só afasta as pessoas que não têm interesse, nem na parte arquitetónica, nem na parte dos livros”.
Em seis meses, a equipa passou de oito funcionários para 20 e o horário foi alargado, abrindo agora também aos domingos. Há poucos meses, o sócio administrador Antero Braga vendeu a quota. Atualmente, José Manuel Lello trabalha com um novo sócio, Pedro Pinto, a quem deixa um elogio. “A chegada dele trouxe uma revolução em termos de gestão e de sistema de controlo.”
A festa de aniversário da Lello faz-se esta quarta-feira entre as 10h00 e as 21h00. Um dos convidados a soprar as velas é o ministro da Cultura, João Soares, que por ali vai passar de manhã e assinar o Livro de Ouro, tal como fizeram no passado Guerra Junqueiro, José Saramago, Agustina Bessa-Luís e tantas outras personalidades.
A frequência da Lello vive muito dos números turísticos do Porto. Em primeiro lugar estão os espanhóis, depois vêm os franceses e, a partir daí, o público vai-se dividindo entre brasileiros, italianos, russos, polacos e muitos asiáticos, desde coreanos a chineses. E, claro, muitos portugueses. Exemplares sobre o Porto, sobre a cultura e gastronomia portuguesa e a literatura nacional em língua estrangeira são os mais procurados. “Nós passámos a ser um enorme embaixador da cultura e da temática para o estrangeiro”, afirma com orgulho.
E como a maior parte das pessoas aproveita o dinheiro da entrada para fazer uma compra, as vendas aumentaram, em média, de menos de 200 livros por dia para mais de 500. Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, aumentou as vendas em 18 vezes face ao passado. “Passámos a ter mais livros em espanhol, depois de sermos apanhados muitas vezes de surpresa, e de 2014 para 2015 aumentamos 45 vezes as vendas”, esclarece. Os livros em inglês quase decuplicaram. Muitos deles são editados em Portugal. As novidades literárias em inglês e em francês também saem bem. “Já que têm os três euros para gastar, levam daqui em vez de comprarem em casa.”
Obras de restauro e cartão de fidelização
Entre os estrangeiros que visitam a Lello estão muitos portugueses, mas a maioria também vem em turismo. “Reganhar os clientes portuenses” é um dos objetivos para o futuro, assume o diretor. A simpatia, acessibilidade e conhecimento dos funcionários é um ponto a favor, assim como a oferta de mais de 100 mil livros, com as novidades literárias mais frescas do mercado. Outro ponto favorável é o regresso de uma certa pacatez, mais adequada ao ambiente de uma livraria, conseguido através do modelo de cobrança de entradas e que se irá manter.
Há mais a fazer. Para os clientes habituais, existe um cartão de cliente “Amigo da Lello”, extensível a quatro membros da família, que permite entradas ilimitadas (e prioritárias) em troca de 10 euros por ano (dedutíveis numa compra). O próximo passo é criar um sistema de fidelização para os Amigos da Lello, que poderá passar pela atribuição de pontos por cada compra, “para que as pessoas tenham vantagens em comprar aqui e não noutro lado qualquer”, adianta.
Também já está “praticamente escrito” um novo livro sobre a história da Lello, em várias línguas, que vai substituir aquele que existe atualmente junto ao balcão de pagamento. Secções de livros em alemão e holandês vão ser criadas, com a oferta de literatura portuguesa nestes dois idiomas como principal atração.
Mas a primeira coisa a ser feita são obras. O edifício, que em 2013 foi classificado como de interesse público pela Secretaria do Estado da Cultura, “está num estado de conservação que não é o melhor e vamos fechar durante alguns dias”, adianta. “Estamos mesmo na reta final para começar, a obra vai ser adjudicada dentro de 10 dias e arrancará de imediato.” As intervenções serão no telhado, na pintura da fachada e na tentativa de solucionar o problema do calor no verão. Seguir-se-ão, mais à frente, obras de restauro no interior.
“Acho que este é o momento mais feliz da livraria”, diz, com Rui Veloso como música de fundo. “Em termos de vendas, sem dúvida nenhuma”. Sabe do que fala. Para além dos mais de 30 anos de trabalho diário, começou a frequentar a Livraria Lello ainda em criança, durante as férias grandes da escola, levado pelo pai e pelo avô (embora, como qualquer criança, preferisse ir brincar para o Bazar Paris, a histórica loja de brinquedos criada em 1913 na Rua de Sá da Bandeira).
Nega que tenha sido educado desde cedo para vir um dia a assumir a Lello. Contudo, os trabalhos que foi fazendo durante as férias da escola para ganhar algum dinheiro tornaram-no próximo do negócio. Aos 24 começou a trabalhar mais a sério. Se a Lello vai continuar na família nas próximas gerações, só o tempo o dirá. O filho, de 32 anos, é visita recorrente na livraria, mas não trabalha lá. “Não sei. Por enquanto não trabalha aqui, tem outros projetos. Mas sim, eu gostava.”