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Café, sumo de laranja, croissants, álcool-gel. Foi em torno de uma mesa repleta destes elementos que se reuniram os seis candidatos do Les Républicains (LR) às primárias presidenciais do partido, juntamente com o presidente Christian Jacob, em outubro. “É unidos e juntos que vencemos”, declarou Jacob no Twitter, onde publicou a foto que permite ver Xavier Bertrand, Michel Barnier, Valérie Pécresse, Éric Ciotti, Philippe Juvin e Denis Payre sorrindo à mesma mesa. Uma visão rara nos últimos meses, período em que o grande partido do centro-direita francês (a antiga UMP) tem estado dividido numa guerra quase fratricida.
Je réunissais ce matin les candidats au #CongresLR.
C’est unis et rassemblés que nous gagnerons.
C’est dans cet état d’esprit unanimement partagé que chacun s’engage dans cette campagne. pic.twitter.com/qf9vt8vw9P
— Christian JACOB (@ChJacob77) October 19, 2021
A campanha só arrancou oficialmente esta quinta-feira — e Payre já anunciou a sua desistência por não ter conseguido o número de assinaturas necessárias —, mas a campanha informal para ser o escolhido pelos militantes para disputar a presidência contra Emmanuel Macron já decorria há muito. A decisão final dos militantes será anunciada a 4 de dezembro. Até lá, o LR lutará para provar que ainda é relevante no espaço político da direita, cada vez mais disputado quer por Macron, quer pelos representantes da extrema-direita (Marine Le Pen e Éric Zemmour).
Eleitores não faltam. Nos últimos meses têm sido publicados vários estudos eleitorais em França que dão conta de que a maioria do eleitorado do país está claramente à direita — 37%, segundo a Fondapol, 4 em cada 10, de acordo com a Sciences Po (o centro e a esquerda dividem os restantes). E o LR vem de um excelente resultado eleitoral, tendo vencido as eleições municipais e regionais de 2020. Mas isso não significa que a grande casa do centro-direita francês esteja de boa saúde: o partido está na oposição há dez anos, teve um resultado lastimável nas eleições europeias (8%) e agora corre o risco de não conseguir que o seu candidato presidencial passe à segunda volta das eleições.
“Há uma dicotomia entre aquilo de que o Les Républicains é capaz a nível local e a nível nacional. Eles têm bons resultados regionais, mas não conseguiram capitalizar com os Coletes Amarelos, por exemplo, e tiveram um fiasco nas europeias”, resume ao Observador Sarah Belouezzane, jornalista do Le Monde que acompanha o partido. O historiador David Bellamy, que passou anos a estudar a direita francesa e, em particular, De Gaulle, ajuda a escrever o obituário político: “O eleitorado francês já é ‘de direita’ há muitos anos. Mas o Les Républicains, o partido da direita por excelência, não obtém nenhum benefício com isso.”
Um problema chamado Macron ao centro…
Tanto Bellamy como Belouezzane têm um nome na ponta da língua para explicar este paradoxo: Emmanuel Macron. “O partido nunca mais recuperou do choque político que foi a eleição de Macron em maio de 2017. Desde então que muitos dos eleitores à direita se têm virado para ele”, diz o professor da Universidade de Picardie Jules-Verne ao Observador.
Usando as palavras da jornalista, Macron fez com que os Republicanos parecessem “fora de moda”. “Ele partiu o partido e roubou-lhe muitos dos seus maiores ativos: o seu primeiro-ministro atual (Jean Castex), o ministro da Economia (Bruno Le Maire), o ministro do Interior (Gérald Darmanin)… Ele é muito apelativo para uma direita não muito conservadora e economicamente orientada para as empresas. Macron bem pode dizer que não é de direita, mas um eleitor de direita pode facilmente identificar-se com muitas das suas ideias”, afirma Belouezzane.
A equipa do Presidente sabe-o e vai preparando o terreno para as presidenciais: foco nas reformas económicas e piscares de olho aos conservadores com linguagem mais dura nos temas da imigração e do Islão. “Queremos atrair a direita económica, sendo que dois terços dela já nos é favorável”, resumia uma fonte da campanha ao Midi Libre ainda em outubro. “Mas o nosso principal foco agora é o terço que falta, que continua a votar nos Republicanos”.
São os indefetíveis, os apoiantes históricos que veneram De Gaulle, Chirac e Sarkozy. Mas não é certo que se mantenham para sempre com o LR. Sarah Belouezzane aponta um sinal preocupante: “Entra-se num círculo do inferno quando não se consegue vencer. Quando não ganhas, as pessoas deixam de votar em ti.” Florian Silnicki concorda. O antigo conselheiro do partido, que agora lidera uma agência de comunicação, não vê com bons olhos a corrida que se perfila dentro de Les Républicains: “Este é o enorme paradoxo desta campanha presidencial: nunca a sociedade francesa esteve tão virada à direita e nunca a direita foi tão fraca”, resume ao Observador.
E Silnicki não hesita em fazer o diagnóstico que justifica essa fraqueza: “Com os olhos postos na mesma audiência e sem vontade de se destruírem, os candidatos à nomeação quase não se diferenciam em termos de ideias e os seus programas, tirando umas pequenas nuances, revelam unanimidade em temas como a segurança, a imigração, as pensões, a descentralização, a Europa ou até a questão energética. E isto tudo sem contar com Éric Zemmour, que está a destruir todos os limites da decência…”
…e outro à direita chamado Zemmour
Se Emmanuel Macron come eleitorado aos Republicanos pelo centro, Zemmour é o grande fantasma que assombra a corrida do LR à direita. A polémica estrela televisiva ainda não se assumiu formalmente como candidato à presidência, mas é o nome que ameaça Macron e Marine Le Pen, ao mesmo tempo que condiciona toda a campanha dos Republicanos.
“Este início de campanha ficou marcado pela chegada deste protagonista sem precedentes, Éric Zemmour, cujo discurso se afirma como sendo de uma velha direita, mais autêntica, ligada ao antigo RPR”, resume Silnicki, referindo-se ao antigo partido gaulista impulsionado por Jacques Chirac. “Ele personifica a reação extremada de uma França tradicional, católica e burguesa, mas desta vez sem um candidato do LR. Depois de dez anos na oposição, a direita não tem um candidato natural nem um homem forte. Zemmour floresce nesse vácuo, porque a política tem horror ao vazio.”
Dentro dos Republicanos, as campainhas soaram com o crescimento da popularidade do antigo jornalista. “Achava que era uma bolha que ia rebentar. Agora já não acredito nisso”, lamentava-se um membro do partido ao Les Echos no final de setembro.
Em reação ao novo fenómeno da extrema-direita, os candidatos do LR começaram também a extremar o seu próprio discurso. Valérie Pécresse quer alterar a Constituição para que passe a ter uma quota máxima de imigrantes em França. Michel Barnier renega o passado como comissário europeu e negociador para o Brexit e admite que é necessário resgatar a soberania francesa das garras de Bruxelas. E Xavier Bertrand, o candidato mais bem colocado, pede “uma restauração da autoridade” para evitar que o país mergulhe numa “guerra civil”. “Ainda há uns dias Bertrand ousou propor uma medida digna da extrema-direita: que a justiça deve ser feita não por juízes, como em qualquer país democrático, mas pelos procuradores”, aponta David Bellamy. “Isso reflete o seu nervosismo e a corrida ao eleitorado da direita dura.”
Sarah Belouezzane concorda: “Creio que é uma forma de tentarem derrubar Zemmour, uma forma de dizerem ‘também somos capazes de ter posições duras’, ao mesmo tempo que atacam Macron por ser ‘fraco’. Mas a verdadeira questão é: isso convence os eleitores? O núcleo mais duro do partido sim, mas e os outros?”
O Les Républicains demonstra desnorte sobre como lidar com Zemmour, homem que reúne agora o apoio de 25% dos eleitores de François Fillon (candidato do LR à presidência em 2017), de acordo com a Harris Interactive. Alguns, como o eurodeputado François-Xavier Bellamy, consideram que Zemmour deve ser escutado pelo LR e que até devia ter sido incluído na corrida à nomeação do partido; outros, como o presidente do partido, Christian Jacob, rejeitam terminantemente a ideia.
“A direita em França não consegue resistir se não tiver um líder extraordinário”
Ao mesmo tempo, vozes como Nicolas Sarkozy chamam a Zemmour um “sintoma” do vazio do partido. Um alerta de peso se tivermos em conta que, como lembra Florian Silnicki, Sarkozy foi eficaz a lidar com a Frente Nacional no passado: “Ele basicamente propôs àqueles eleitores o mesmo acordo que François Mitterrand fez com os eleitores do Partido Comunista nos anos 70: ‘Não represento todas as vossas ideias, mas represento parte delas. Preferem ficar com todas e nunca chegar ao poder ou ter algumas no poder, comigo?’ Dessa forma, ele captou o eleitorado da Frente Nacional. Nenhum candidato do LR neste momento conseguiu ainda fazer isso”, afirma o antigo conselheiro do partido.
“O problema é que não temos nenhum Sarkozy. Xavier Bertrand, Valérie Pécresse e Michel Barnier são centristas”, desabafava um representante do partido à RTL há uma semana. Talvez por isso, todos estejam a radicalizar o discurso — mas, em parte pelos seus percursos, correm o risco de não convencer os eleitores de que são genuínos ou até de parecerem “hipócritas ou oportunistas”, como aponta Silnicki: “Eles têm de ter cuidado e manter as suas posições consistentes. É certo que na política aquilo que é verdade num dia já não é necessariamente verdade no outro. Porém, a posição de um político tem de ser percetível.”
Não se pense, contudo, que o LR está condenado à irrelevância. Os militantes olham com expectativa para a série de debates que se avizinha antes do voto do dia 4. Se surgir uma vaga de fundo em torno de um dos candidatos, os Republicanos alimentam a esperança de afastar Zemmour e Le Pen e ainda vir a discutir a segunda volta contra Macron. E aí, sem uma figura da extrema-direita à espreita, quem sabe se o atual Presidente continua a parecer quase invencível.
“Os Republicanos são uma formação política que, apesar de tudo, tem resistido melhor do que o Partido Socialista”, aponta Silnicki, recordando que se Macron afetou a direita, também infligiu um rude golpe ao PS francês. E Belouezzane aponta a estratégia que alguns candidatos como Xavier Bertrand estão a montar: “Se Zemmour e Le Pen se neutralizarem mutuamente, a fasquia para passar à segunda volta pode baixar e isso abrir uma oportunidade ao candidato do LR. Bertrand acha que, se conseguir fazê-lo, pode reunir o apoio de muitos dos que estão desiludidos com Macron, inclusivamente do centro-esquerda, razão pela qual tem usado um discurso mais social em termos económicos. Mas isto ao mesmo tempo que o seu discurso sobre a imigração continua a ser difícil de engolir à esquerda”.
Os próximos meses são, por isso, o tempo do tudo ou nada para o Les Républicains. Se um candidato crescer e fizer sombra ao Presidente, ressuscita e reenergiza o LR; se não, arrisca enterrar de vez o grande partido do centro-direita francês. Para evitar esse destino, o nomeado terá de conseguir sair do colete-de-forças em que foi colocado por Macron e Zemmour. “Por enquanto, ainda não conseguiram fazê-lo”, sentencia Florian Silnicki, que não consegue deixar de sublinhar o “paradoxo” que é “o LR parecer frágil como nunca numa altura em que as ideias de direita parecem quase hegemónicas em França”.
David Bellamy, que passou a vida debruçado sobre o percurso de Charles de Gaulle e dos seus filhos políticos, é claro ao vaticinar que a direita moderada tem tendência a apoiar Macron e a direita mais dura Zemmour. E o historiador é categórico ao afirmar que grande parte do problema do LR é a falta de carisma dos seus quadros: “Desde que Nicolas Sarkozy foi derrotado em 2012 que o LR não tem nenhum líder carismático. Nunca mais se levantou. E o que isso prova é que a direita em França não consegue resistir se não tiver um líder extraordinário.”
Bertrand, Barnier e Pécresse são os favoritos. Têm-se desdobrado em visitas a militantes do partido por toda a França, ao mesmo tempo que fazem chover declarações com as suas ideias — mesmo que por vezes ziguezagueantes. Por agora, têm apenas de convencer os militantes do LR. Depois do dia 4, o vencedor terá de assumir um novo discurso e convencer os franceses. Pode o centro-direita francês ter uma mensagem que cative os eleitores e resgate o partido da irrelevância?
Sarah Belouezzane, que tem acompanhado a campanha interna do partido ao pormenor, não arrisca qualquer prognóstico: “Por agora, tudo está demasiado embaciado, não conseguimos perceber o que querem realmente os franceses”, afirma. “Só uma coisa é clara neste momento: querem uma política mais dura na segurança e na imigração.” Guinada à direita, portanto. Emmanuel Macron e Éric Zemmour já o perceberam há algum tempo. Os Republicanos continuam à procura do seu espaço entre eles.